25 de fevereiro de 2007

Conversa fiada

Jornal O Estado do Maranhão

Entre as barbáries dos últimos tempos, o assassinato do menino João Hélio, de seis anos de idade, arrastado por automóvel dirigido por bandidos ao longo de sete quilômetros no Rio de Janeiro, foi a que mais chocou a nação. Nessas ocasiões, a resposta da hora toma a forma de indignação e revolta com imposição irrefletida de “rigorosa” legislação como se o problema fosse de falta e não de excesso de leis bem como de ausência de cumprimento delas. Além disso, poucos incentivos ao crime são tão eficientes quanto a certeza da impunidade, ocorrência ordinária no Brasil Mesmo essa reação inócua tem sido passageira e costuma ressurgir apenas quando nova barbárie ocorre. As taxas de criminalidade no país são altas principalmente porque poucos sofrem punições por seus crimes, sejam eles sanguessugas, mensaleiros, traficantes, ladrões de galinha (se alguém ainda se dá o trabalho de roubar essas pobres aves, com tantas oportunidades mais lucrativas de roubo disponíveis), golpistas da Previdência Social e tudo mais imaginável. Tal situação não deveria nos surpreender em vista das características da justiça: lenta, burocratizada, presa a formalismos exagerados, a pontos e vírgulas, ao papelório inútil e kafkiano, a recursos excessivos, ao latinório démodé, a códigos atrasados, à semana de poucos dias, ao ano de poucos meses, à baixa produtividade, enfim à concepção meramente formal de justiça. E o que dizer das deficiências do aparelho policial, prisioneiro do mal de ser dois, um civil e outro militar, e em permanente conflito, e do horror do sistema penitenciário? Certa esquerda costuma socializar a criminalidade e, portanto, a diluir culpas, afirmando que tão-só com a eliminação das mazelas sócio-econômicas poderemos resolver o problema ou reduzi-lo a proporções civilizadas. Esse modo de ver a situação pressupões serem os pobres mais propensos ao crime do que os ricos. Talvez esse pessoal seja levado ao engano pela participação desproporcional de pobres na população carcerária, produto de distorções de outra ordem, e não de tendência inata. É consenso entre os estudiosos do assunto que as causas são múltiplas e complexas, assim como é consensual a necessidade de punição efetiva. Talvez devêssemos levar em consideração, ao analisar os perpetradores de crimes hediondos, a perspectiva da biologia cognitiva, conforme expresso, entre outros, pelo biólogo americano Marc Hauser. A idéia é que a humanidade foi equipada pela evolução com uma capacidade instintiva de fazer julgamentos morais, segundo regras universais, ou segundo uma gramática moral universal, embora nem sempre ajam de acordo com eles. Teríamos, portanto, um instinto moral de um lado e um comportamento moral de outro. Nem sempre o segundo segue as percepções do primeiro. Interessante exemplo disto é Rousseau. Ele se queixava com freqüência da hipocrisia dos franceses de sua época. Todavia, abandonou cinco filhos recém-nascidos sem remorso aparente. Quando, segundo pesquisas recentes, áreas específicas do cérebro sofrem algum dano, um novo padrão de julgamento moral emerge, atípico em relação ao da maioria das pessoas. Mas, pode ocorrer também falta de sintonia destes, quando “normais”, com a linha de ação moral de cada indivíduo, como assinalei acima. Esta discrepância é mais difícil de ser explicada pela complexidade de que se reveste. Em outras palavras, os assassinos do menino, ou fazem julgamentos morais atípicos e são insensíveis ao sofrimento alheio, ou o comportamento moral deles não guarda, por razões que ainda não são claras para os pesquisadores, relação alguma com o julgamento moral que fazem. Nada disso, porém, dispensa a imposição aos criminosos, pela sociedade, da certeza da punição. O resto é muita conversa fiada.

18 de fevereiro de 2007

O Maranhão em Machado

Jornal O Estado do Maranhão

Já se afirmou acertadamente que a obra de Machado de Assis é inesgotável em suas implicações de toda ordem e sempre proporcionará um ângulo novo de análise ou um achado inesperado ao estudioso. J. Galante de Sousa, em Fontes para o estudo de Machado de Assis anota, para o período que vai de 1857 a 1957, cerca de 1.890 itens referentes a todo tipo de estudos a seu respeito. Jean-Michel Massa, somente para o ano de 1958, no seu Bibliographie descriptive, analytique et critique de Machado de Assis, nos dá outros 713. De lá para cá, esses números não pararam de crescer. Mais recentemente Ubiratan Machado em Bibliografia machadiana, cobriu os anos que vão de 1959 a 2003 e acrescentou mais 3.282 . São várias as razões para esse sucesso de crítica. A principal, penso eu, está no sentido verdadeiramente universal de sua obra literária na abordagem dos eternos temas do sentido trágico da vida e inevitabilidade da morte, das frustrações amorosas e da impossibilidade de verdadeira comunicação entre os seres humanos, do egoísmo e da vaidade, do jogo de aparências e de interesses, do bem e do mal, dos pequenos heroísmos e das grandes baixezas, tudo num estilo preciso, de sabor clássico e popular ao mesmo tempo, oral e exato. O fascínio da arte de Machado vem, assim, tanto da forma como da substância do seu trabalho, razão por quê a ação destrutiva do tempo não pôde fazê-lo voltar ao pó, senão fisicamente. Hoje – a quase 170 anos de seu nascimento a 21 de junho de 1839, no Morro do Livramento, no Rio de Janeiro, e a quase 100 de sua morte a 29 de setembro de 1908, na cidade onde nasceu, – a admiração dos leitores é ainda mais intensa e crescente do que o foi no seu tempo, a despeito das vozes discordantes que sempre houve e haverá. Não será exagero comparar tal destino, no que ele evidencia a capacidade que tem Machado de dialogar com as sucessivas gerações, ao de figuras universais como Dante, Cervantes, Shakespeare e Camões. Machado tinha forte ligação intelectual e sentimental com o Maranhão, o que pode ser exemplificado pela profunda admiração que tinha por Gonçalves Dias e pela sua amizade com Joaquim Serra, apenas um ano mais velho do que ele. Em muitas outras crônicas ele faz referências a pessoas e coisas do Maranhão. Em uma crônica de 5 de novembro de 1893, recorda a primeira vez que viu o poeta maranhense, na redação do Diá rio do Rio: “Entrou um homem pequenino, magro, ligeiro. Não foi preciso que me dissessem o nome; adivinhei quem era. Gonçalves Dias! Fiquei a olhar, pasmo, com todas minhas sensações e entusiasmos da adolescência. Ouvia cantar em mim a famosa “Canção do Exílio’”. Quase 30 anos depois desse encontro a admiração continuava a mesma, senão maior. De Joaquim Serra disse em 1888, em bela crônica: “Quando há dias fui enterrar o meu querido Serra, vi que naquele féretro ia também uma parte de minha juventude. Logo de manhã relembrei-a toda. ... recolhi-me à memória de outro tempo, fui reler algumas cartas do meu amado amigo”. A morte do amigo maranhense o levou a externar publicamente sentimentos de que, até em sua vida pessoal, não se tem muitas notícias. Curiosamente há similaridade evidente entre certas características da sociedade maranhense ainda hoje e a ideologia do favor, vista, por modernas análises da obra de Machado de Assis, como uma importante referência interpretativa. Projeto interessante, embora de realização difícil, seria a edição de um livro, agora que nos preparamos para os cem anos da morte de Machado no próximo ano, que contivesse todas as crônicas em que Machado se refere ao Maranhão, cuidadosamente anotadas, para dar ao leitor de hoje condições de entendimento de referências de época.

11 de fevereiro de 2007

Cortar vínculos

Jornal O Estado do Maranhão

Mais de uma vez mencionei aqui os problemas criados à política de gastos do governo pelas vinculações constitucionais que forçam o administrador público a aplicar percentuais fixos de seus orçamentos em determinados setores, como em saúde e educação, exemplos mais conhecidos. Seus defeitos eram de todo invisíveis quando começaram a ser usadas, em poucas áreas e sem comprometimento de fração elevada do orçamento. Foram utilizadas a seguir com o fim de vincular tantas coisas, que hoje, a fatia de recursos livres de algum tipo de atrelamento setorial tornou-se pequena, deixando aos responsáveis pelas decisões de política econômica quase nenhuma possibilidade de adequar a composição dos gastos ao ambiente econômico, que pode mudar, e muda. Agora leio na revista Veja entrevista do ex-ministro Antônio Delfim Neto, em que ele fala de “uma lista enorme de emergências no setor público”, dando como exemplo precisamente a questão das vinculações: “No Brasil ela existe para a saúde, para a educação, para tudo”, diz ele com muita propriedade. Consideremos o seguinte. Se levarmos essa prática ao extremo e aceitarmos todas as suas implicações lógicas, chegaremos à conclusão de que todos os setores, não apenas alguns, deveriam ter garantia constitucional de recursos, em proporção à prioridade de cada um nos planos governamentais que, por sua vez, deveriam refletir as preferências da sociedade. Estabelecida assim a partilha, revisões anuais dos percentuais seriam feitas, de acordo com mudanças nas macrovariáveis econômico-sociais. Conceitualmente, isto seria equivalente a abolir as vinculações, como as conhecemos, e aumentar a racionalidade e flexibilidade da execução orçamentária, objetivo de todo bom administrador. No entanto, não se observa nenhum movimento nessa direção. Ao contrário, se fala em mais vinculações, não em menos, e num deletério orçamento impositivo, maneira infalível de criar problemas para a economia, pois seria um mecanismo a mais de rigidez, o que faz lembrar, em outra área de política econômica, o dispositivo enfiado na Constituição de 1988, mas, por felicidade depois retirado, de limitação da taxa de juros a 12% ao ano. Neste caso, o bom senso prevaleceu. As vinculações constituem péssima prática porque congelam para sempre as prioridades do momento de seu estabelecimento, como assinalou o ex-ministro, não importando eventuais mudanças nas circunstâncias e nos desejos dos cidadãos. Se, por exemplo, no próximo ano todos os problemas do sistema educacional brasileiro estivessem resolvidos, ainda assim o governo continuaria a aplicar no setor o mesmo percentual deste ano. Tal rigidez, que não leva em consideração diferenças regionais ou as necessidades locais, incentiva a ineficiência porque não estabelece relação alguma, ou o faz de maneira tênue, entre resultados e aplicação dos recursos. Estes, bem aplicados ou não, continuarão a fluir em igual ou maior volume no ano seguinte. É de se considerar também que um dos pressupostos da criação desse sistema foi a incapacidade dos governos de refletir as prioridades dos cidadãos, seus eleitores. No entanto, a ser isso verdadeiro, deveria se mudar o sistema político-representativo do país a fim de nele incorporar mecanismos que assegurem legitimidade à representação popular e atendimento das aspirações da sociedade, dentro, claro, das limitações do orçamento, que não deveria ser engessado. Esse é mais um exemplo de como boas intenções podem levar a resultado oposto ao pretendido. Essa não é uma discussão de cunho ideológico. Trata-se de aumentar o grau de racionalidade na administração de recursos públicos, no interesse de todos. É, afinal, obrigação dos governantes, pois esse dinheiro vem de nossos bolsos e de nosso trabalho.

4 de fevereiro de 2007

Dirigismo Cultural?


Jornal O Estado do Maranhão

Iniciativa do Ministério da Cultura propõe alterações na Lei no. 8.313 (Lei Rouanet), de incentivo à cultura, em vigor desde 23 de dezembro de 1991. A proposta gerou muita polêmica, desde o dia 23 de março deste ano, quando foi divulgada, e, depois, ao ser submetida a consulta pública, até o dia 6 de maio. Passada esta data, o ministro da Cultura iniciou visitas a diversos estados para conversas com os secretários de cultura e pessoas e entidades com atuação na área.
A resistência do Ministério e de gente de mentalidade estatizante à lei de agora, de excelentes resultados, está clara na transcrição, no site do próprio Ministério, de texto do jornal O Povo, do Ceará, estado onde houve discussões sobre o assunto: "O principal objetivo do Ministério com o projeto é que o Estado passe a regular o mecanismo de financiamento da cultura brasileira, hoje feito majoritariamente por meio de renúncia fiscal da iniciativa privada.". Afora a redação imprecisa, pois a renúncia não é da iniciativa privada, mas do poder público, é evidente a ideia de que tudo pode e deve ser regulamentado pelo Estado.
Como atualmente às empresas é dada a opção de aplicar, após prévia aprovação pelo Ministério, em projetos culturais de sua escolha, parte do imposto que teriam de recolher às abarrotadas burras governamentais, então o mecanismo não deve prestar. Quem tem a competência para decidir sobre o melhor para a sociedade são os burocratas. Eu de minha parte, prefiro que as escolhas continuem a ser feitas por elas. O governo é, por sua natureza, um monopolista. O setor privado, quando também o é, tem, como os estudos econômicos nos mostram incessantemente, vida relativamente curta pois monopólios tendem a se esfacelar com o passar do tempo. Mais ainda. Corporações empresariais, há muitas, concorrendo umas com as outras. Governo, só um.
Uma comissão composta, entre outros, por membros da sociedade, segundo a nova lei, ficaria encarregada de aprovar os projetos merecedores de ajuda, procedimento já adotado presentemente, porém em fase anterior à escolha das empresas. Ou seja, estas nos dias atuais já tomam decisões com base em decisões do próprio governo. A diferença na proposta, é que o poder público ficaria com a palavra final. Elas teriam então de aplicar tão somente em determinado projeto indicado pelo Estado e não poderiam escolher em uma lista dos pré-aprovados pelo Ministério, como no presente. E mais, não poderiam fazer divulgação da aplicação. Aí está um bom incentivo, se o objetivo for fazê-las não aplicar nada e recolher sem chateações o imposto ao erário. Aliás, o Ministério deixou claro que o ideal seria ter a totalidade dos recursos para incentivo à cultura administrados por um fundo estatal.
O leitor terá uma noção do caráter estatizante da proposta pelo artigo 49: "O Ministério da Cultura e demais órgãos da Administração Pública Federal poderão dispor dos bens e serviços culturais financiados com recursos públicos para fins não-comerciais e não-onerosos, após o período de três anos de reserva de direitos de utilização sobre a obra". Em palavras mais claras, o governo irá expropriar a propriedade intelectual dos autores dos projetos.
Quanto à concentração na região sul-sudeste da aplicação de recursos, devemos observar que o problema não é da Lei Rouanet, mas da baixa capacidade de aplicação das empresas do restante do país. Seria preciso eliminar as desigualdades regionais do Brasil a fim de eliminar o problema. Também, aplicações nas outras regiões são contabilizadas como da sul-sudeste por nesta se encontrar a maior parte das sedes das aplicadoras.
De qualquer modo, essa tentativa de mudança estatizante levanta um complexo, eterno e, parece, insolúvel problema. O apoio estatal às atividades culturais não levaria a um dirigismo cultural? O fato de o poder público a elas alocar recursos não conduziria a manipulações em favor do príncipe? Essa, a discussão mais importante. Enquanto não se chega a uma conclusão, melhor é continuar com a Lei Rouanet.

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