25 de março de 2012

Relatos do absurdo

                                                                       Jornal O Estado do Maranhão
         
           Se prestarmos atenção cuidadosa aos fatos, veremos como vivemos num mundo de acontecimentos absurdos e inusitados.
          Os casais chineses têm permissão do governo de ter apenas um filho. Se não bastasse o absurdo da medida, pois as pessoas deveriam filhos de acordo com a própria decisão, há mais um controle, o da população de cachorros. Em cada residência pode haver no máximo um e os de raças de grande porte são eliminados. Os apreciadores da degustação de carne desses animais, hábito muito difundido naquele país, aprovaram a medida.
          Um livro do século XVII foi a leilão na Inglaterra. E daí, perguntarão os curiosos. E eu respondo: a capa dele é feita com a pele de um padre jesuíta condenado por conspirar para assassinar Jaime I, em 1605. Para completar a história macabra, a obra trata exatamente da execução do padre que, mais tarde se soube, não participou do plano católico de matar o rei.
          Esta outra foi na África do Sul e é semelhante à que ocorreu no Big Brother Brasil. Um dos participantes do BB sul-africano, estudante de cinema, quem sabe do tipo ultrarrealista, estuprou uma auxiliar de enfermagem também participante do reality show, bêbada no momento da agressão. Ele se justificou assim mais tarde: Bem, isto é a África. Aqui a mesma frase poderia ser dita pelo estuprador brasileiro, apenas substituindo o nome do país.
          Agora esta que se imaginava não acontecer nos Estados Unidos, paraíso da medicina, do progresso tecnológico e da competência técnica. Um homem foi internado num hospital de Louisville, no Kentucky, para uma circuncisão. Amputaram-lhe o pênis. Depois da cirurgia, dele não se poderá dizer nem “coitado”, pois ele nunca mais praticará o coito. No máximo será um cortado. Se você, macho brasileiro, for àquelas terras, tome bastante cuidado, se lá lhe sugerirem uma cirurgia desse tipo, com louvações às virtudes da medicina americana. Não acredite. Em qualquer país você pode ser alvo de um ataque médico como esse. 
          Um homem de 99 anos foi espancado em Nova York. Isso acontece com certa frequência, dirá o leitor. Qual a novidade? A novidade é esta: o agressor era um jovem de 83 anos. Ele estacionou seu automóvel na porta da garagem da vítima, que, desejando desobstruir a passagem, pediu a ele a retirada do veículo de lá. Irritado, o infrator deu várias pancadas com uma barra de ferro na cabeça do quase centenário. Lamento do agredido: “Ele é muito mais jovem do que eu, muito mais forte. Ele poderia ser o meu filho.” O jovem foi convidado a lutar no UFC.
          Na França, um presidiário, bem ao estilo Roberto Jefferson, aquele deputado que denunciou o mensalão e tem seus piores instintos despertados pelo ex-ministro José Dirceu, do PT, matou um companheiro de crime na cadeia porque não ia com sua cara, que lhe despertava também instintos assassinos. Depois, abriu-lhe o peito para comer o coração. Em vez disso, anatomista incompetente, acabou devorando, cru, um dos pulmões. Ele então fritou o outro e comeu o petisco com cebolas. “Eu queria a alma dele”, disse, pensando ter degustado o coração bondoso do morto.
          Essas histórias estão no sítio Page Not Found, do jornalista Fernando Moreira, em http://oglobo.globo.com/blogs/pagenotfound/. Eu acrescentei a elas um pouco de ficção e algumas observações. Inusitadas e, sobretudo, absurdas, não estão, porém, muito distantes das vistas com frequência em todo lugar no Brasil.
          Como a do cidadão que no SUS tenta marcar uma cirurgia de urgência e consegue agendá-la para 6 meses depois, quando já estará morto; não obtém para o filho uma vaga perto de sua residência, na escola pública; é enganado pelos prestadores de serviços de telefonia, televisão a cabo e tudo fica por isso mesmo. Qual a diferença entre os dois grupos de histórias? Nenhuma. Ou melhor, existe uma: os relatos do primeiro são absurdos e inusitados, os do segundo, absurdos e corriqueiros, tão corriqueiros que às vezes não parecem absurdos. Parecem normais, como se encher de cerveja e sair dirigindo por aí. Espera aí, alguém aqui do meu lado diz que dirigir bêbado não é normal!

11 de março de 2012

Dicionários e bebês

Jornal O Estado do Maranhão         

          O tal do “politicamente correto” está em todo lugar, sempre pronto a melhorar a sociedade. Vejam o exemplo edificante. Um procurador federal em Minas Gerais achou de pedir à justiça o recolhimento do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa porque a obra registra entre 7 acepções do termo cigano duas de sentido pejorativo: “[...] 5 pej. que ou aquele que trapaceia; velhaco, burlador 6 pej. que ou aquele que faz barganha, que é apegado ao dinheiro, agiota, sovina [...].”
          Todo mundo sabe, ou devia saber – este não é o caso do procurador –, que um dicionário registra as palavras conforme elas são utilizadas pelos falantes de um idioma, seus verdadeiros construtores. Os dicionários seguem sempre um passo atrás das mudanças na língua e não poderia ser de outra forma. No momento de sua publicação, eles já estão defasados. Eles não inventam palavras e expressões nem lhes dão sentidos que não os do uso costumeiro, inclusive os metafóricos. A não ser em casos bastante incomuns e mesmo estranhos, as pessoas os consultam depois, não antes, de encontrar uma palavra cujo significado não alcançam, mas de uso anterior e reconhecido na língua. Os dicionários não são agentes de divulgação de preconceitos de qualquer tipo, mas de conhecimentos ao anotarem significados já existentes, invenções de todos e de ninguém, parte do patrimônio cultural comum a todos os cidadãos.
          A prevalecer a posição do procurador de fazer essa assepsia e em vista da existência de milhares de palavras em situação semelhante terminaríamos a limpeza como uma versão inteiramente anódina e falsa da língua, que não serviria a quase nada no seu manejo. Ele quer matar o mensageiro portador da má notícia: existe muito preconceito por aí.
           Mas, passemos a um assunto mais sério e aterrador: a defesa do assassinato de recém-nascidos, publicada em artigo sob o título Aborto pós-nascimento: por que o bebê deveria viver? no conceituado Journal of Medical Ethics.
           O resumo do texto feito pelos dois professores é este: “O aborto é largamente aceito mesmo devido a razões que nada têm a ver com a saúde do feto. Ao mostrar que (1) tanto os fetos quanto os recém-nascidos não têm o mesmo status moral que têm as pessoas atuais (2) o fato de ambos serem pessoas potenciais é moralmente irrelevante (3) a adoção não é sempre no melhor interesse das pessoas atuais, os autores argumentam que o que chamam de ‘aborto após o nascimento’ (matar os bebês) deveria ser permitido em todos os casos em que o aborto o é, inclusive naqueles em que o recém-nascido é saudável.”
          Ao falar de permissão “em todos os casos”, eles não abrem mesmo nenhuma exceção, incluindo na lista de possibilidades as crianças com deficiências bem como, como está explícito acima, as que não as têm, sendo o único critério de decisão a vontade dos pais. A possibilidade de adoção é descartada porque isso seria psicologicamente mais inseguro para os pais do que o infanticídio.
          Eles estão com a razão em um ponto: não há quase diferenças entre fetos e crianças. Assim, quem aceita a afirmação sobre a igualdade moral entre estes e aqueles e ao mesmo tempo defende o aborto, posição oposta à minha, deve, por coerência, aceitar também o assassinato de recém-nascidos. Se se permite esta prática, então nada impedirá a implantação, vamos imaginar, de uma fazenda modelo de abate de bebês, ao lado de uma de abate de gado, para a produção de órgãos destinados a transplantes. Essa seria uma das consequências lógicas do argumento pró-infanticídio, fundado na ideia de que tais pequenos seres não se qualificarem como “pessoas” no sentido moral do termo assim como, os pesquisadores afirmam, os fetos não se qualificam. Isso tudo repugna, como é de se esperar, os sentimentos morais das pessoas normais.
          O direito de “abortar depois do nascimento” deve abranger neste caso 40 anos, tempo suficiente para as mães dos proponentes dessa proposta imoral verificarem que eles nunca se tornarão pessoas morais. Então, elas poderão abortar ambos.
          É isso. O procurador deseja assassinar dicionários, os dois professores, bebês.

2 de março de 2012

Infanticidas sofisticados




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