14 de abril de 2002

Falsidades

Jornal O Estado do Maranhão
Vem da rica e culta Alemanha uma história inusitada. O primeiro-ministro daquele país, Gerhard Schroder, foi “acusado” de pintar seu cabelo, antes supostamente grisalho. Os alemães estão em campanha para eleições gerais. No vale-tudo próprio do período, os partidos de oposição a Schroder, aproveitando-se de uma informação de um desses jornais popularescos, comuns no mundo todo, dizem ser ele tão enganador quanto seus cabelos pintados. Ele não teria sido honesto o suficiente para revelar o trato que dera no cabelo, para simular ser mais jovem do que realmente é. Se ele engana com o cabelo, enganará também com o dinheiro público, parece ser o raciocínio alemão. É como se o sujeito que pinta o cabelo não passase de um vulgar estelionatário, pelo uso de uma imagem falsa. O primeiro-ministro reagiu imediatamente e processou, ou ameaça processar, o jornal que deu a informação, esta sim falsa, segundo ele.
Isso me faz lembrar a primeira candidatura de Richard Nixon, nos anos 60, à presidência dos Estados Unidos. Seus adversários divulgaram um desses filmetes de propaganda eleitoral, tão ao gosto dos marqueteiros atualmente. Nele perguntavam se os eleitores teriam coragem de comprar dele um carro usado. Como a venda de carros usados nem sempre segue um modelo de honestidade, a insinuação era de Nixon, como Schroder hoje, não passar de um falso, estelionatário que vendia e entregava a mercadoria danificada. Anos depois, o escândalo de Watergate, envolvendo Nixon, na ocasião presidente dos Estados Unidos, mostrou o acerto de seus adversários.
Se modificar a aparência com o fim de paracer mais jovem ou mais bonito for critério para classificar alguém como falsário, então muita gente vai ter que se cuidar daqui por diante. Imaginem o desastre com as louras do Brasil. Antes tão admiradas, elas passariam a ser execradas, rejeitadas, condenadas, quem sabe até apedrejadas como reles pecadoras bíblicas. Como se sabe, 90% das louras não são de verdade, são falsas, de faz-de-conta. – Olha aquela falsa ali – diriam à sua passagem as verdadeiras e também as outras, não louras. Uma verdadeira guerra de guerrilha estaria instalada entre esses grupos, com escaramuças a toda hora, em qualquer lugar.
Mais angustiante, porém, seriam as dúvidas sobre outras partes do corpo. Passa uma mulher deslumbrante, daquelas de provocar engarrafamento, assovios e olhares cobiçosos. Surge a dúvida. Os seios são verdadeiros ou são de silicone? É pura falsidade aquelas formas? Trata-se de uma estelionatária merecedora da condenação geral? Deve-se censurá-la por tentar enganar a platéia dessa maneira tão despudorada? Ou será melhor fazer um exame in loco para tirar a dúvida, evitando a condenação de uma inocente?
E o bumbum? Aquelas curvas são ilusórias, enganosas? Foram feitas pela natureza ou não passam de mais uma empulhação barata? Vêm do Paraguai ou de onde? Resultam de horas e horas de incansável malhação, de rigorosas dietas mágicas, para evitar a agressão estética vista às vezes por aí, dos bumbuns caídos? Ou é de novo um estelionato? Mais uma vez o silicone é o responsável por esse crime inafiançavel contra a boa fé do nosso povo? Devemos condenar a falsa boazuda por fazer propaganda enganosa? Falsidade, é tudo falsidade. Ou melhor, como no Eclesiastes: vaidade de vaidades, é tudo vaidade. De certo, sabe-se apenas que é deste mundo o reino do silicone.
Mas, o diabo não é tão feio quanto se pinta. Ou melhor, o cabelo não é tão feio quando se pinta. Se os eleitores alemães reprovam com tanta veemência o pobre primeiro-ministro só por causa de uma inocente pintura, o que não diriam daquela delegação de deputados brasileiros que foi passear e, não se sabe fazer mais o quê, no exótico Marrocos recentemente? Será que achariam que os nossos representantes estavam planejando introduzir no Brasil uma lei permitindo, como naquele país de maioria muçulmana, os homens terem quantas mulheres, siliconadas ou não, pudessem sustentar?

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