11 de junho de 2017

O Paraíso-presídio

Jornal O Estado do Maranhão

          Em verdade vos digo, limpeza ética total, de anúncio de detergente, não foi feita para este mundo sublunar, é tão só tarefa do mundo de Janot e de seus bem-aventurados companheiros de MPF. Ninguém tão puro como eles. E eis que, comovidos, assistimos à tentativa deles de criar no trópico o “novo homem”, à sua imagem e semelhança, perfeito, na rua, na chuva, na fazenda ou numa casinha de sapê, em tudo diferente do velho conhecido nosso, já nascido em pecado, feito de desejo e de pó, como no poema de Auden, com defeito e virtude, egoísmo e altruísmo (mesmo que este possa ser uma forma disfarçada de egoísmo, como dizem os céticos extremados).
          Falta a esse pessoal o estudo da História, com agá maiúsculo. Os bolcheviques russos também cederam à tentação dessa utopia e partiram para a criação do novo homem e do paraíso proletário sobre a Terra. Mas, erraram a mão, usaram o que a história mostra ser a receita da tirania: negaram-se a criar instituições capazes de domar os instintos humanos mais nocivos à vida social e deixar florescer em liberdade os demais, benéficos. Quando perceberam resistência do homem de antes, mandaram às favas a solidariedade e decidiram ir em frente. O sofrimento gerado pela fome e tortura dele seria preço justo pela felicidade das novas e radiosas gerações. No fim, criaram, sobre os cadáveres de milhões, o homem novo e infeliz e se fizeram casta à parte, uns iluminados pela barbárie e pela convicção da justeza de sua missão redentora. Pelo que, em língua inglesa, se chama pejorativamente “self-righteousness”, a certeza da superioridade moral sobre o homem médio, nós, pobres cidadãos comuns.
          Aqui também, agora, se gesta o embate dos poucos bons em prol do novo homem e contra tudo o que há de degradado nos filhos de Eva. E ai de quem recalcitrar, agarrado à tábua das leis. Ele não será ouvido e sua voz soará no deserto. E ninguém fiscalizará os fiscais, na nobre missão. Alegria é soltar os mastins, que trabalharão, sem freio nenhum, varrendo da Terra Brasilis os impuros de coração, os pecadores sem remissão. De quebra (resta sempre em nós um pouco de nossos pais), ficará na boca aquele gostinho perverso de vingança.
          O trabalho será para infindáveis gerações. Feita a primeira limpeza, com o afastamento dos corruptos, uma segunda, uma terceira e infinitas outras serão necessárias, pois, como Janot sabe, a espécie humana é o que é. Não o bom selvagem de Rousseau nem o homo lupus hominis de Hobbes. Somos os dois. Limpeza assim talvez termine criando um paraíso-presídio, ou limpando para sempre o território da espécie zoológica homo sapiens.
          A fim de escapar à dependência dessa natureza boa e má, melhor seria acordar, encarar a tarefa do modo certo e edificar não um mundo-presídio, mas algo cuja arquitetura institucional desencoraje o mal e incentive o bem geral, sem necessidade de messias nem de mastins nem de professores de moral nem de antônios conselheiros. Mas com trancas e cadeados nos lugares certos. Assim, Janot, esse anjo atormentado, enfim nos deixará em paz.

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