7 de março de 2010

Lembrança e Realidade



Jornal O Estado do Maranhão, 7/3/2010

Narrei algumas vezes nesta coluna algumas lembranças de minha infância, adolescência e parte da vida adulta. Quase sempre nessas ocasiões expressei dúvidas quanto à natureza e realidade delas. O que eu descrevia tinha, de fato, acontecido daquela maneira? A memória havia me traído e eu simplesmente estava reconstruindo, pelo uso de mecanismos da psicologia humana, o passado a partir de fragmentos de histórias ouvidas por mim posteriormente no ambiente familiar e no grupo de amigos com quem eu convivera por anos e anos compartilhando experiências de crescimento e amadurecimento? Difícil responder. Era "realidade", invenção inconsciente? Afinal, o que é "real"? É tudo autoengano? Perguntas cujas respostas não me atrevo a dar. A própria filosofia não ainda chegou a uma conclusão definitiva sobre a questão.
Eu, que não sou especialista nesses mistérios da mente, dou um exemplo dessa dúvida insanável. Eu me recordo, vez por outra, de meus anos americanos. Do meu ponto de vista de agora, essa lembrança é, em parte, uma lembrança de lembranças, logo de segundo grau, ou, ainda, lembrança dentro de lembranças, como num jogo de espelhos. Dito de outra forma. Eu me lembro das lembranças que do Brasil e, em especial, do Maranhão, eu tinha quando estava nos Estados Unidos. Depois de alguns anos, minha memória passou a selecionar somente as coisas boas daqui, esquecendo-se das más. Estas se apagaram, não se deixavam ver ou eu as olhava, contudo não as sentia.  Talvez esteja nesse mecanismo psicológico, um entre vários, a explicação da dificuldade emocional de emigrar, sentida pela maioria das pessoas. Não meu caso – eu já disse isso uma vez aqui – não me foi fácil tomar a decisão de voltar e abandonar um dos melhores, ou o melhor, ambiente educacional do mundo, que estaria ao fácil alcance de minha família, num país de oportunidades sem igual no mundo inteiro. Talvez se a memória não tivesse feito essa seleção darwiniana de lembranças, eu teria lá permanecido. Ao adotar apenas algumas, trouxe-me de volta ao Brasil e ao Maranhão.
Mas, eu queria dizer o seguinte. Essas lembranças de lembranças estão sujeitas, de forma semelhante às originais, neste exemplo aquelas que eu tinha lá, à regra de serem, provavelmente, não apenas reconstruídas. Elas o são o tempo todo. Sucessivas evocações de um acontecimento diferem umas das outras, embora a nós pareçam as mesmas. Aquela de reconstrução mais recente é a edição mais atualizada do acontecimento, como a última edição de um livro. Em outras palavras, o passado está sempre sendo reescrito. Ele é produto do presente tanto quanto ajuda a construí-lo, dialética nem sempre percebida com facilidade.
Isso tudo pode levar um ingênuo extremista da objetividade a declarar impossível um livro de memórias. Consideradas as diversas "edições", como afirmar a veracidade das memórias da última edição, aquela do livro de memórias publicado em certo momento? Podemos fazer um paralelo com o estudo da história. Suas fontes primárias, constituídas dos documentos existentes nos arquivos, passam pelo crivo da subjetividade de quem os escreveu a partir de memórias que ele tinha dos acontecimentos. Lembrar o fato de o autor do documento-fonte ter também consultado documentos não ajuda porque se percorrermos distância suficiente ao longo dessa corrente em direção ao passado chegaremos ao primeiro relato escrito com base apenas em memórias.
Narrativas de lembranças assim como da história precisam apenas ser verossímeis, Não podem ser reconstituições fiéis no sentido fugidio de retratar o que "realmente" aconteceu. Eles configuram em verdade um processo criativo inconsciente, exceto para os estudiosos do assunto. Mesmo assim, estes não conseguem dele escapar. Não fora assim, narrar nossas próprias memórias, expressão de nossa individualidade, seria uma tarefa impossível de ser levada a cabo e, assim, desintegradora da personalidade, como seria igualmente impraticável a tentativa de narrar a história das sociedades.

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