26 de setembro de 2004

Herança maldita

Jornal O Estado do Maranhão 
Leio nas páginas amarelas da revista Veja entrevista do antropólogo Roberto DaMatta, professor recém-aposentado da Universidade de Notre Dame, em Indiana, Estados Unidos. Eu estudei economia nessa instituição, na área de organização industrial. Mais especificamente, como parte de um projeto financiado pelo Ministério do Trabalho dos Estados Unidos, analisei as implicações para a criação de emprego das tecnologias utilizadas no Brasil pelas empresas multinacionais, comparadas com as nacionais, agrupadas por setores econômicos segundo critérios do IBGE.
Quanto maior uma empresa, mais tecnologias intensivas em capital, que geram pouco emprego em comparação com as intensivas em mão-de-obra, serão utilizadas, independentemente da nacionalidade da empresa. As multinacionais, conforme meu estudo mostra, são maiores em comparação com as brasileiras do mesmo setor e usam tecnologias mais intensivas em capital. Justificam-se, portanto, políticas governamentais, de um lado, de apoio às empresas nacionais e, de outro, de suporte aos setores onde estas constituem a maioria, se o objetivo principal das políticas governamentais é a maximização da criação de empregos, na ausência de mudanças nos outros parâmetros da economia.
Mas, eu queria dizer que na entrevista à Veja, o professor DaMatta destaca o que ele chama com muita propriedade de as duas faces do governo petista. Moderna e liberal, uma, capaz de lidar com eficiência com a economia brasileira, impedindo a transformação em realidade das mais pessimistas previsões de caos econômico para o período posterior à posse do presidente Lula. A outra face é a autoritária, corporativista, estatista, coletivista e, eu diria, estalinista e ditatorial, expressa nas tentativas de controle da liberdade de expressão, como aconteceu há pouco com o projeto de cerceamento das atividades jornalísticas através do malfadado Conselho Federal de Jornalismo.
Há somente três semanas eu dizia aqui: “O governo continua acertando na economia, que mostra sinais de recuperação, ameaçada, no entanto, pela alta do preço do petróleo, e errando no resto”. Qual dos dois lados irá prevalecer no futuro? Vencerá a modernidade ou as forças do atraso, a visão retrógrada do mundo, terão a última palavra, com seu imenso cortejo de pobreza e miséria? Teremos de esperar mais algum tempo a fim de saber.
Aponta com toda razão o professor, do ponto de vista de quem é brasileiro e observa de fora seu país, o surgimento de uma onda positiva em torno do Brasil. As pessoas no exterior se surpreendem ao descobrir que produzimos, por exemplo, aviões e que somos competitivos com nossos produtos agrícolas, como a soja e muitos outros.
É, como se vê, o bom desempenho na economia, possibilitando a melhora de nossa competitividade nos mercados globais, a fonte da transformação positiva de nossa imagem. O interesse por nós aumenta com o aumento das exportações de nossos produtos.
Porém, quantas críticas recebemos da imprensa mundial, de governos estrangeiros e de organizações internacionais, por causa dessa tendência antidemocrática do Partido dos Trabalhadores, representada à perfeição pelo chefe da Casa Civil do governo Lula? Essa triste característica, de cunho político-ideológico, ameaça quebrar a onda em favor do Brasil. Não mereceremos o completo respeito da comunidade internacional enquanto não nos livrarmos dessa herança maldita dos tempos de oposição do PT. Se na época isso era só uma atitude inofensiva, embora lamentável, agora, no governo, é inaceitável.
Mudo de assunto e termino com uma pergunta que anda na cabeça de muita gente. Será o Maranhão o Iraque, pois aqui, como lá, ocorrem decapitações, como fizeram com a estátua de Odorico Mendes?

19 de setembro de 2004

Almas Generosas

Jornal O Estado do Maranhão 
Nas últimas semanas, como estivesse de mudança para nova residência, abandonando o outrora charmoso bairro do Olho d’Água, tive de examinar velhos papéis, antes no fundo de velhas gavetas, o melhor lugar onde não achá-los quando deles se precisa e, no entanto, o primeiro em que os guardamos. Minha intenção era selecionar, aproveitando a inevitabilidade do manuseio, durante a confusão mudancista, os poucos que ainda possivelmente servissem para alguma coisa e jogar fora a maior parte, na suposição de serem agora desnecessários às necessidades práticas da vida. Coisas como antigos recibos, notas fiscais, declarações de imposto de renda da era pré-informática, feitas à mão na vigência de moedas já mortas e enterradas, antediluvianos manuais de obsoletos aparelhos eletrônicos despachados para os museus há séculos.
Vã intenção, pois sempre que estou a ponto de tornar real uma separação como essa, verdadeira perda de pequenos pedaços de minha própria história, por um lado, e, por outro, ilusão de ganho de espaço onde ele é escasso, tenho a sensação de estar cometendo, senão crime doloso, pelo menos alguma contravenção, sendo eu mesmo a inescapável vítima.
Então, eu mudo de plano e, pensativo e mudo, guardo os papéis novamente por um período cuja duração nunca sei qual será. Contraditoriamente, todavia, me assalta nesses momentos fundo sentimento de culpa, semelhante ao de olhar na estante os livros não lidos ainda, apesar de todas as resoluções de lê-los na semana seguinte, o que, se feito mesmo, me pouparia de responder à freqüente pergunta de muitos sobre “todos esses livros” da minha biblioteca. Não, não li todos, respondo. Mas, terei tempo de fazê-lo, pois viverei mais de cem anos.
Mas, esse ritual de separação, uma realidade apenas virtual, pois nunca se materializa, como as promessas eleitoreiras e as de salvação eterna em troca de votos, talvez se pareça com a perda de amigos diletos, com quem, como no caso dos papéis velhos, trocamos idéias e de quem também não queremos nos separar para sempre. Com uma diferença, porém. Os dois amigos desaparecidos recentemente, Djalma e Oliveira Ramos, não estavam jogados em nenhuma gaveta do esquecimento.
Djalma, meu barbeiro havia muito (barbeiro, não cabeleireiro), era o mais intelectual entre os de sua profissão e talvez mais do que muitos considerados como tal. Lia regularmente os bons autores de língua portuguesa, Eça de Queiroz, Machado de Assis, Rachel de Queiroz, Aloísio Azevedo, bem como os cronistas maranhenses, sobre os quais, enquanto exercia sua arte em salão no prédio do antigo Hotel Central, fazia bem humorados e originais comentários. Estava a ponto de se iniciar em José Saramago. Fiquei lhe devendo os empréstimos do Ensaio sobre a cegueira e O Evangelho segundo José Cristo, os dois romances de que mais gosto, do escritor português.
Oliveira Ramos tinha uma característica raríssima, a de rir até de suas próprias desventuras, das quais não se lamentava, como não culpava ninguém por elas, embora tivesse bons motivos para isto e para denunciar as perseguições que sofreu. Com agudo senso de humor, verve especial, imaginação incomum, facilmente aproveitável na ficção, e domínio profundo dos labirintos gramaticais do nosso idioma, ele era um excelente artesão da crônica, muitas vezes a arte de aparentemente falar sobre nada, com o fim de expressar muita coisa. Em vários momentos, escreveu peças memoráveis nesse gênero provisório, mas difícil, como nos seus últimos textos publicados aqui em O Estado do Maranhão, perpassados de uma certa tristeza, mas não de amargura, ressentimento ou ódio, emoções de almas pequenas.
Meus dois amigos tinham isto em comum: eram homens de almas imensas e generosas.

12 de setembro de 2004

Letras e números

Jornal O Estado do Maranhão 
As eleições deste ano trouxeram à discussão o analfabetismo dos candidatos a vereador e prefeito, bem como outras curiosidades que, entra ano sai ano, divertem o eleitor, a exemplo dos nomes e apelidos folclóricos e das propostas, mais folclóricas ainda, de melhoramento de suas cidades.
Eles não prometem tão-só o paraíso na Terra, desejo de todos, pois entre esperar a felicidade no além ou tê-la nesta vale de lágrimas terreno, não há quem não prefira a segunda opção, de gozo imediato. Tenho a impressão de serem muitos deles uns grandes gozadores com a boa fé dos eleitores. Eles chegam perto de garantir, com a inflação de postulantes auto-intitulados evangélicos, a salvação eterna em troca de voto que, afinal, devem pensar, só custa o trabalho de ir a um local de votação e apertar alguns botões de máquinas eletrônicas.
Parece não haver dúvida sobre a proibição, pela Constituição de 88, em seu artigo 14, parágrafo 4º., da eleição de pessoas incapazes de ler e escrever: “São inelegíveis os inalistáveis e os analfabetos”. Na prática, a Justiça Eleitoral, na ausência de comprovação de alfabetização, não recusa o pedido de registro da candidatura. Em vez disso, pelo menos em alguns Estados, examina o pretendente, por meio de provas escritas, e toma uma decisão.
No entanto, como não existe ainda uma forma padrão de realizar os testes, cada juiz, diante de casos concretos, avalia esses autênticos vestibulandos da vida política como lhe parece mais adequado. Desse procedimento imposto pelas circunstâncias, pode surgir muita confusão. Digamos que um juiz avalie como alfabetizado um ansioso aspirante a prefeito. Não causaria surpresa a ninguém um colega do magistrado considerar analfabeto o mesmo postulante.
A explicação dessa divergência está na forma de avaliação adotada pela justiça. Os testes aplicados em cada município ou em cada comarca são diferentes em forma e conteúdo, porque diferentes são as pessoas que os elaboram e diferentes será confuso, portanto, o conceito de analfabetismo de cada uma delas, na falta de critérios objetivos de julgamento. Ou seja, a subjetividade prevalece numa situação como essa. Saber ler e escrever, embora precariamente, seria suficiente para alguns juízes como prova de alfabetização, enquanto bastaria, apenas, saber assinar ou desenhar o próprio nome no entendimento de outros.
Talvez tudo resultasse mais simples se a interpretação da exigência constitucional fosse menos liberal e a simples falha em apresentar certificado de conclusão do primeiro grau, por exemplo, eliminasse imediatamente o potencial candidato. Casos excepcionais poderiam merecer um exame dentro de regras claramente estabelecidas.
Em que pese, todavia, a legítima preocupação da justiça e de muita gente neste país com a escolaridade de nossos representantes municipais, origem de toda essa discussão de forma alguma ociosa, arrisco-me a dizer que o maior problema não é de falta de luzes. Ao contrário, é de excesso, não com respeito às letras, mas aos números. Essas pessoas, ou melhor, parte delas, para não ser injusto com os inocentes, apesar do analfabetismo e da aparente cegueira intelectual, têm os olhos bem abertos para as coisas práticas e uma habilidade muito útil no combate à pobreza deles. Eles são muito bons em aritmética, elementar e avançada, a bem dizer.
Essa destreza lhes permite subtrair com muito engenho, somando bens ao patrimônio privado. Se não é o milagre da multiplicação dos pães, prova da existência de milagres, é a multiplicação da própria riqueza, ainda que adicione à miséria e descrença alheias. Está certo que, às vezes, ficam divididos e chegam a confundir o seu com o dos outros. Mas, quem nunca ficou confuso com a tabuada algum dia?

5 de setembro de 2004

Discursos

Jornal O Estado do Maranhão 
Muitas vezes Machado de Assis externou sua opinião sobre a influência maligna, segundo ele, da política sobre a atividade literária. Numa crônica de 31 de janeiro de 1870, ele fez uma análise de Entre o céu e a Terra, de Flávio Reimar, que não era outro senão o nosso Gentil Braga. O livro fora enviado pelo autor, com uma recomendação de um grande amigo de Machado, Joaquim Serra. Por sinal, quando este morreu em 1888, o escritor carioca escreveu uma das suas mais belas crônicas, das muitas que publicou, durante, praticamente, toda sua vida, em jornais do Rio de Janeiro, de onde nunca saiu, indo no máximo a Petrópolis.
Isto inspirou Luciano Trigo a escrever um ensaio chamado O viajante imóvel: Machado de Assis e o Rio de Janeiro de seu tempo, uma espécie de guia da cidade, do século XIX, com base nos romances, contos e crônicas de Machado. Este, apesar desse, digamos, provincianismo, foi o mais universal de nossos escritores. Viajava com a leitura de seus autores prediletos, Homero, Luciano de Samósata, Platão, Plutarco, Horácio, Tito Lívio, Petrônio, Shakespeare, Cervantes, Calderón, Erasmo, Stern, Pascal, João de Barros, Gil Vicente, Eça de Queiroz, Alexandre Herculano, sem contar os brasileiros.
Pois bem, ao fazer comentários sobre o livro de Gentil, disse ter este abandonado a poesia para entrar na vida pública, no Parlamento Geral, hoje Congresso Nacional, e na Assembléia Provincial. Mas, tinha esperança: “Não morreu este poeta, e escapou ao orçamento e ao esquecimento”.
  Em outra ocasião, em 2 de fevereiro de 1873, afirmou que a política militante desperdiça o tempo e destrói a criatividade: “Não lhe devorou ainda a imaginação, e bem o prova com este seu livro dos Quadros”. Reparem bem no ainda, como se não estivesse certo de, no futuro, a política não roubar a imaginação do autor, neste caso Joaquim Serra. Ele faz muitos elogios ao livro do amigo. Tantos que, lá no penúltimo parágrafo, se sente na obrigação de perguntar, num autopoliciamento caracteristicamente machadiano, se não diriam que não achava defeitos na obra. Vejam a resposta: “Acho; quisera que desaparecesse um ou outro descuido de forma, o que não é exigir o exclusivismo dela”. Ora, ele mesmo não se livrou de um ou outro descuido de forma, como ninguém se livra sempre. Para além dos méritos de Joaquim Serra, sente-se a amizade entre os dois.
As referências aos dois escritores do Maranhão não é um fato isolado. Ele tinha genuína admiração pelos intelectuais da brilhante geração do Grupo Maranhense, como Odorico Mendes, João Lisboa, o próprio Gentil, Sotero dos Reis. Fazia freqüentes referências a eles em sua crônicas, tendo incluído vários deles no seu clássico estudo Notícia da atual literatura brasileira: instinto de nacionalidade.
Sua ligação com nossa terra e seus homens de letras era forte. Prova é a presença em sua casa, no momento de sua morte em 1908, dos maranhenses Coelho Neto, Graça Aranha e Raimundo Corrêa. A Gonçalves Dias ele dedicava uma admiração especial. Disse em outra crônica: “Morreu no mar, – túmulo imenso para seu imenso talento”. Descreveu com evidente emoção a visão que teve do poeta na redação do Diário do Rio: “Entrou um homem pequenino, magro, ligeiro. Não foi preciso que me dissessem o nome; adivinhei quem era. Gonçalves Dias! Fiquei a olhar, pasmo, com todas minhas sensações e entusiasmos da adolescência. Ouvia cantar em mim a famosa ‘Canção do Exílio’”.
Mas, não sei se a política de algum modo atrapalha a literatura. A julgar por José Sarney, escritor e político, do Maranhão como Gentil Braga e Joaquim Serra, citados por Machado de Assis, não atrapalha. Mas, política e literatura são formas de discurso, um do poder, outro sobre o poder. Têm isso em comum.

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