19 de setembro de 2004

Almas Generosas

Jornal O Estado do Maranhão 
Nas últimas semanas, como estivesse de mudança para nova residência, abandonando o outrora charmoso bairro do Olho d’Água, tive de examinar velhos papéis, antes no fundo de velhas gavetas, o melhor lugar onde não achá-los quando deles se precisa e, no entanto, o primeiro em que os guardamos. Minha intenção era selecionar, aproveitando a inevitabilidade do manuseio, durante a confusão mudancista, os poucos que ainda possivelmente servissem para alguma coisa e jogar fora a maior parte, na suposição de serem agora desnecessários às necessidades práticas da vida. Coisas como antigos recibos, notas fiscais, declarações de imposto de renda da era pré-informática, feitas à mão na vigência de moedas já mortas e enterradas, antediluvianos manuais de obsoletos aparelhos eletrônicos despachados para os museus há séculos.
Vã intenção, pois sempre que estou a ponto de tornar real uma separação como essa, verdadeira perda de pequenos pedaços de minha própria história, por um lado, e, por outro, ilusão de ganho de espaço onde ele é escasso, tenho a sensação de estar cometendo, senão crime doloso, pelo menos alguma contravenção, sendo eu mesmo a inescapável vítima.
Então, eu mudo de plano e, pensativo e mudo, guardo os papéis novamente por um período cuja duração nunca sei qual será. Contraditoriamente, todavia, me assalta nesses momentos fundo sentimento de culpa, semelhante ao de olhar na estante os livros não lidos ainda, apesar de todas as resoluções de lê-los na semana seguinte, o que, se feito mesmo, me pouparia de responder à freqüente pergunta de muitos sobre “todos esses livros” da minha biblioteca. Não, não li todos, respondo. Mas, terei tempo de fazê-lo, pois viverei mais de cem anos.
Mas, esse ritual de separação, uma realidade apenas virtual, pois nunca se materializa, como as promessas eleitoreiras e as de salvação eterna em troca de votos, talvez se pareça com a perda de amigos diletos, com quem, como no caso dos papéis velhos, trocamos idéias e de quem também não queremos nos separar para sempre. Com uma diferença, porém. Os dois amigos desaparecidos recentemente, Djalma e Oliveira Ramos, não estavam jogados em nenhuma gaveta do esquecimento.
Djalma, meu barbeiro havia muito (barbeiro, não cabeleireiro), era o mais intelectual entre os de sua profissão e talvez mais do que muitos considerados como tal. Lia regularmente os bons autores de língua portuguesa, Eça de Queiroz, Machado de Assis, Rachel de Queiroz, Aloísio Azevedo, bem como os cronistas maranhenses, sobre os quais, enquanto exercia sua arte em salão no prédio do antigo Hotel Central, fazia bem humorados e originais comentários. Estava a ponto de se iniciar em José Saramago. Fiquei lhe devendo os empréstimos do Ensaio sobre a cegueira e O Evangelho segundo José Cristo, os dois romances de que mais gosto, do escritor português.
Oliveira Ramos tinha uma característica raríssima, a de rir até de suas próprias desventuras, das quais não se lamentava, como não culpava ninguém por elas, embora tivesse bons motivos para isto e para denunciar as perseguições que sofreu. Com agudo senso de humor, verve especial, imaginação incomum, facilmente aproveitável na ficção, e domínio profundo dos labirintos gramaticais do nosso idioma, ele era um excelente artesão da crônica, muitas vezes a arte de aparentemente falar sobre nada, com o fim de expressar muita coisa. Em vários momentos, escreveu peças memoráveis nesse gênero provisório, mas difícil, como nos seus últimos textos publicados aqui em O Estado do Maranhão, perpassados de uma certa tristeza, mas não de amargura, ressentimento ou ódio, emoções de almas pequenas.
Meus dois amigos tinham isto em comum: eram homens de almas imensas e generosas.

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