27 de abril de 2003

Maranhão ao natural

Jornal O Estado do Maranhão 
Depois de tudo já dito por tantas pessoas de peso no nosso mundo cultural, numa unanimidade incomum, desta vez sem a burrice sempre apontada por Nélson Rodrigues quando essa raríssima concordância ocorria no seu tempo, existe ainda algo novo a dizer sobre Natural do Maranhão, exposição e álbum fotográfico de Christian Knepper, realizados com o patrocínio do governo do Estado, Alumar, AmBev e Petrobrás?
Não muita coisa, além do julgamento já feito por toda essa gente sobre a arte dele, que vem nos encantando há anos e agora está a nós sendo apresentada em sua forma mais sistemática e elaborada, como uma síntese da visão do fotógrafo sobre nossa terra e sua gente sofrida. Mas, arrisco-me a imaginar a misteriosa e insondável conspiração do destino que levou Christian, um jovem alemão, a deixar seu país e radicar-se em São Luís do Maranhão, deixando para trás uma economia vigorosa, em verdade a mais forte da Europa, onde as oportunidades de emprego e de realização profissional são muito mais promissoras do que entre nós, deixando igualmente uma rica e milenar cultura, geradora de expoentes do pensamento, contribuintes importantes às tradições literária, filosófica e artística universais no passado e no presente, como Bach, Schiller, Goethe, Nietzsche, Marx, Thomas Mann, Kafka, Musil, Brecht.
Melhor para os maranhenses, beneficiários dessa trama imprevista, de autor, o destino, sempre disposto a fazer-nos surpresas, porque passamos a contar entre nós com um artista originalmente estrangeiro que, de tão integrado a nossas paisagens natural e humana, retrata-nos sem nenhum exotismo, como ocorre com aqueles que vêm de fora e se deslumbram ante a exuberância do nosso ambiente. Essa fascinação não é forçosamente negativa, mas pode, em determinadas circunstâncias, falsear a verdade social, nem sempre tão esplendorosa quanto a natural. Quem já viveu em um país estrangeiro sabe bem avaliar as atribulações de uma adaptação a uma cultura diferente daquela de sua formação e as dificuldades de sua correta compreensão. Ao mesmo tempo, no entanto, valoriza a capacidade de algumas pessoas de transitar com facilidade de uma para outra, de um mundo a outro, como o faz esse artista.
Christian usa no seu trabalho dois equipamentos complementares: suas máquinas fotográficas, dependentes de tecnologias modernas sempre em evolução, e seu olhar sereno, simples, contido mesmo, mas profundo e independente de qualquer técnica, sobre nossa espaço geográfico e humano. Máquina e homem trabalhando em sincronia. Sua visão brota tanto de sua sensibilidade estética apurada quanto de sua integração com o meio e a sociedade maranhenses.
Do uso combinado e habilidoso daquelas duas ferramentas, resulta um trabalho que não é apenas de registro da realidade imediata, como a importante obra feita sobre nosso país por artistas estrangeiros, como, por exemplo, Rugendas, Hercule Florence, Adrien Taunay e Debret, viajantes, sós ou na companhia de cientistas europeus, como Langsdorff, pelo Brasil, em expedições de estudo, após a vinda da família real portuguesa para o Brasil em 1808, época em que os brasileiros começávamos a nos ver como uma nação unida em torno de um destino comum.
Ele tem, a meu ver, a capacidade de revelar, muito além daquela percepção imediatista da realidade (o que é afinal a realidade?), muito além da mera fotografia, inesperadas e essenciais visões da vida e do mundo, comumente encobertas pela enganosa banalidade das coisas e acontecimentos do cotidiano. Para descobri-los, basta saber olhar, como ele sabe. Penso que a essência dos bons artistas está, em boa parte, aí, nessa habilidade de falar do universal através do particular e aparentemente desimportante, de usar os limites da sua aldeia para abarcar o mundo.
Tudo isso, com certeza, tem atraído tanto entusiasmo pelo trabalho de Christian, aqui no Maranhão e em outros lugares, e proporcionado a ele um reconhecimento amplo e merecido pelo seu trabalho.

20 de abril de 2003

Tios e sobrinhos

Jornal O Estado do Maranhão 
O garoto, nos seus quinze anos, deitava-se em uma alvíssima rede, acariciado pela brisa salgada da praia de Itapeua, em Cajapió, e lia a tarde inteira. Usaria os óculos de lentes grossas e armação fina que ainda usa setenta anos depois, a destacarem-lhe o nariz de remotos antecedentes judeus, prováveis cristãos novos em Portugal, ou quem sabe de árabes? Seria possível usar tal objeto naquelas terras tão pobres, em tempos tão antigos, mas tão recentes, hoje, na sua memória?
A fascinação pela leitura veio, por certo, quase ao mesmo tempo da consciência de ver a luz e de estar no mundo. Quase não se lembrava de ter aprendido a ler. Era como se, ao nascer, já possuísse todas as letras da língua portuguesa. Embora sem a mesma fascinação, seu pai, Luís, era um grande leitor. De suas idas a São Luís trazia os romances, jornais e revistas que a família lia. Viajava nos precários igarités e lanchas que atravessavam bravamente o terrível Boqueirão, destruidor de embarcações e criador de histórias fantásticas, iguais às dos livros.
Dali do alpendre de uma fazenda quase a beira-mar, o garoto sentia o cheiro das marés, que lhe impregnaria o olfato para sempre, e via correrem as garças, as jaçanãs e os maçaricos na areia, com suas pernas diáfanas, de passos curtos e rápidos, e pescoços que pareciam tirar movimento do seu roçar numa roda dentada invisível, dando a impressão de avançarem, os pássaros, em pequenas paradas e arrancos ali na Baixada Maranhense, um pequeno Pantanal Mato-Grossense no Maranhão.
Pensaria no tio paterno, Inácio? Talvez nem o conhecesse. Apenas ouvia falar dele, mas não o tirava da cabeça e dos sonhos. Jornalista de oposição em São Luís, poeta, romancista, emigrara para Vassouras, no Rio de Janeiro. Era um sábio, pensava o garoto. Vencera com a força herdada de seus maiores e a sabedoria adquirida em suas leituras. Se o tio fora capaz, ele seria. Outros, os heróis dos romances e contos, igualmente andaram por terras distantes, sem medo do desconhecido. Ele também, a fim de não se dobrar ao destino, se libertaria da pequenez de seu ambiente, sem ninguém saber de nada até sua chegada à terra prometida, a grande cidade, distante milhares de quilômetros daquelas pobres terras.
Choraria sua pequena, mas sempre forte mãe, Marcelina, até o ponto de salgar mais ainda aquelas águas próximas, tal como as mães dos heróis de Portugal, terra dos pais dela, de que nos fala Pessoa? Passaria “além da dor”? Entenderia o desejo dele de elevar-se acima daquele indigente chão com seu tempo mais eterno do que os tempos do mundo lá fora, de tão igual a si mesmo, como o garoto parecia senti-lo?
Experimentaria um vago e frágil consolo o pai, de mistura com a aflição de separar-se do filho mais velho, ao sentir na fuga um prenúncio de vitória longe de sua proteção, um sinal de coragem de quem não hesitaria ante “o perigo e o abismo”? Haveria espanto e mudez nos irmãos? Como saberia o garoto, estando depois tão longe?
Ele foi sem se despedir, clandestino, talvez, no navio até o Rio de Janeiro, mas passageiro de primeira classe na vida e na literatura. Foi fazer aquilo que sempre quis, tornando-se uma autoridade brasileira na obra de Graça Aranha, especialista em Clarice Lispector, jornalista, subsecretário de Cultura do Rio, diretor do Museu Histórico Nacional e do Conservatório Nacional de Teatro. Quis, dessa maneira, chegar perto da sempre esquiva felicidade, mantendo intacto até hoje seu amor pelos livros. Teve outro grande amor, Elza, com quem se casou. Tiveram Eunice, Luís e Ruy, meus primos cariocas.
Não sei, porém, se terá claro este outro feito seu, tão admirável quanto o outro de realizar sua vocação: meu tio José Cursino dos Santos Raposo, a quem a família reencontrou muitas décadas depois, mostrou a todos, assim como o fizera seu tio Inácio Raposo, a verdade dos versos do poeta, de que “tudo vale a pena se a alma não é pequena” e a este sobrinho que não é vã a luta com as palavras.

13 de abril de 2003

Dependente do boi

Jornal O Estado do Maranhão 
Tem gente que olha para as rádios AM com uma atitude de superioridade. Segundo esse pessoal, elas não passam de um lugar de desinformação ou de informação superficial e incompleta, de uma conversa entre vizinhos. Essa turma acha-lhes todos os defeitos do mundo, sem se lembrar dos bons serviços prestados diariamente por elas. A vida inteligente teria de lá desaparecido há milênios, sem esperança de retorno nas próximas mil gerações. É claro, porém, não ser possível concordar com esse preconceito. Este, sim, nasce da desinformação, muito comum nos nossos dias.
Todavia, é verdade também que algumas vezes ouvem-se nelas coisas inusitadas, como uma pergunta formulada por um ouvinte de um programa muito popular que eu vinha ouvindo outro dia no rádio do carro, a caminho do serviço: “A brincadeira de bumba-meu-boi pode provocar dependência psicológica em seus brincantes?”.
Expressa aqui e agora, assim dessa forma, sem a impostação de voz solene dele ao telefone, a pergunta não parece tão transcendental. Mas é. Foi, posso dizer, como se o motorista ao meu lado, ante um obstáculo imprevisto, tivesse freado repentinamente o carro para evitar um acidente. Um travão, como diriam nossos irmãos portugueses, suficiente para interromper as profundas reflexões filosóficas que eu vinha fazendo a respeito da importância do cafezinho no desempenho do setor público. Foi essa a minha sensação, tal o inesperado da interrogação. Houve, desse modo, um despistamento do meu raciocínio anterior. Eu nunca mais consegui recuperá-lo, apesar de muitas tentativas.
Claro, todo mundo conhece os males causados às pessoas pela dependência psicológica em muitas coisas, nem sempre mencionáveis de público. Um deles resulta em inconvenientes cuja esperança de eliminação está no viagra. Contudo, há um outro, do tipo que pode causar prejuízos incalculáveis, sem possibilidade nenhuma de reparo. É a do sujeito viciado em sexo.
Um conhecido ator de filmes americano confessou publicamente sua tentativa de livrar-se desse vício. Aliás, até ser advertido por sua gentil genitora, após uma festa dada por ela para ex-colegas de turma, na California, em comemoração aos cinqüenta anos da formatura delas em Direito, ele considerava isso um bem, com a concordância de algumas de suas amigas, inimigas por sua vez das primeiras dez esposas dele. Não se sabe ainda o resultado do tratamento.
Mas, voltando à vaca magra, isto é, ao boi magro. Eu jamais havia pensado na brincadeira do bumba-meu-boi como capaz de causar problemas a quem quer que fosse, acompanhada ou não de cachaça, um fator agravante do mal, segundo as palavras do ouvinte. Em verdade, alguém lhe havia feito anteriormente a mesma pergunta transcendental e ele estava agora tentando respondê-la na AM da maneira mais científica possível, sem preconceitos, de maneira totalmente independente.
O brincante que não resiste ao boi (não me venham com insinuações sobre a macheza desse homem nem pensem em alguma vaca tresmalhada envolvida nisso) apresenta um comportamento semelhante ao dependente de qualquer droga. De manhã cedo, quando sua mulher o procura e encontra somente o travesseiro vazio, ou a rede, um tiroteio começa: “Assim não agüento mais. A gente dá as costas e ele some. Esse sem-vergonha foi pro boi de novo. Esse negócio de dependência é papo furado. Ele não passa de um safado. Isso é desculpa pra tá na rua toda hora. Com essa história de boi ele vai acabar com chifres. Eu mostro pra ele.”
No entanto, o problema é sério. Quando a situação chega a esse ponto, não há outra saída senão procurar ajuda de um profissional especializado no tratamento da doença. Será tão difícil encontrar quem esteja capacitado a tratar desse distúrbio psicológico?
­– Doutor, o senhor não vai acreditar, mas eu tenho dependência psicológica com respeito à brincadeira de boi, agravada pela cachaça.
– O senhor também não vai acreditar, mas eu não trato desses casos. Sou especializado em vacas de presépio.

6 de abril de 2003

Formigas, cobras e lagartos

Jornal O Estado do Maranhão 
Quem nunca ouviu falar de nepotismo? É aquele irresistível hábito de dar emprego aos queridos parentes, tão velho quanto o mundo e muito popular entre dirigentes brasileiros e de qualquer lugar do mundo. Se alguém convocasse todos os seus beneficiários a comparecerem simultaneamente a seus supostos locais de trabalho, haveria uma grande confusão sócio-burocrática.
Atendida a convocação ao trabalho, a ninguém causaria surpresa a visão de processos destruídos, ou usados em finalidades menos nobres, de cinzeiros arremessados pelas salas, de subordinados agredidos, de chefes ameaçados, de gritos, choros, ranger de dentes, tiros, pedradas, socos e pontapés.
É que, segundo estudos científicos com ratos, desses de laboratório, não os de duas pernas e muitos braços com longas mãos, o aumento da densidade da população de uma área, como aconteceria nesse caso, provoca o rápido aumento da agressividade dos indivíduos que a formam. Vejam o potencial desagregador dessa prática!
Pois bem. Um estudo publicado recentemente pela Universidade de Helsinque mostra que a proteção aos parentes não é exclusiva dos humanos. As formigas – isso mesmo – as formigas, insetos chamados de sociais pelos cientistas, como o são as abelhas e os cupins, adotam também esse comportamento, com a diferença óbvia de não precisarem dar explicações a ninguém.
O objeto da investigação foi a Formica fusca. Diferentemente da maioria das outras formigas, essas têm em seus formigueiros duas rainhas, que são as únicas a procriar, como acontece com a rainha única das demais espécies. Essa dualidade é prenúncio de intrigas na vassalagem, constituída de operárias, pois, como é notório desde Adão e Eva, não se pode servir a dois senhores, e menos ainda a duas senhoras, ao mesmo tempo.
Ciente disso, um grupo de operárias, ao perceber seu parentesco com uma das rainhas e entre elas mesmas, por meio de processos químicos em seus corpos, passou a reduzir a quantidade de alimentos das que não eram suas parentas e a da própria soberana “adversária”. Procuravam servir, agindo assim, tão-somente a uma senhora. Resultado: a maioria das novas formigas que chegavam à idade adulta eram filhas da rainha privilegiada, isto é eram próximas dela geneticamente e, claro, das outras do grupo.
Esse procedimento faz parte de um mecanismo de evolução das espécies, a seleção por parentesco. Por certo, deu origem ao antigo “primeiro os meus, depois Mateus”. A explicação de alguns estudiosos do fenômeno é de que a luta de cada indivíduo pela sobrevivência é equivalente à luta para passar adiante seus genes. Se tal ocorrer de fato, então privilegiar os parentes seria uma forma de garantir a transmissão da herança genética às gerações seguintes.
Mas, não se pense que apenas as formigas comportam-se como nós, quando o interesse próprio está em jogo. Lagartos da Califórnia, de um tipo com o nome científico de Uta stansburiana, revelaram-se mais interesseiros do que as operárias, a ser correto um estudo da Universidade da Califórnia.
Reparem. As fêmeas da espécie mudam-se sistematicamente para o território dos machos menores, antes considerados babacas, tão logo eles se tornam “proprietários” de melhores áreas. Melhores aí quer dizer locais com mais rochas. Estas permitem aos seus “donos” regular a temperatura do corpo bem como evitar os predadores. As cobras, por exemplo, comilonas de lagartos, aparecem mais nos terrenos com uma quantidade menor de rochas. Conflito de cobras e lagartos.
Fica evidente, assim, serem essas condutas inatas nos seres vivos. Eliminá-las seria contrariar a natureza. Há melhores formas, porém, de lidar com elas. Quanto ao nepotismo, seguindo inversamente a moda atual de cotas mínimas para as minorias, uma cota máxima de nomeação de parentes poderia ser estabelecida. Teríamos algo como um parentômetro. Pelo menos haveria um limite conhecido ao emprego de parentes. O remédio para o outro caso, de cobiça material, está na consulta ao novo código civil brasileiro.

Machado de Assis no Amazon