6 de janeiro de 2002

Argentina

Jornal O Estado do Maranhão
Duas fundações teve Buenos Aires, para não restar dúvidas sobre sua vontade de viver. Duas vidas que são mais do que sete fôlegos. São sete vidas. Mais ainda, vidas dentro da vida. Como no labirinto de que nos fala o poeta portenho, o maior da língua de Cervantes, Calderón, Góngora, Quevedo, Lope de Vega.
A primeira fundação, realizou-a D. Pedro de Mendoza, de Granada, em 1536. Puerto de Nuestra Señora Santa María del Buen Aire. Depois Buenos Aires. Bons Ares. Os conquistadores expulsos pelos índios e pela falta de comida. Mas, é ir lá e ver os bons ares dos vários rios, o Paraná, o Uruguai e o Salado, que formam um só, o da Prata, chegando todos, quase juntos, ao estuário. Bons também são os ares das ruas cheias de livrarias, de bioys casares e de borges, de tangos, de gardéis, de futebol, de maradonas, de elegâncias ostensivas, não discretas como as do Caetano de inspiração paulistana. Azul e branco em tudo.
A segunda fundação foi por Juan Garay, em 1580, a fim de a cidade cumprir o destino de permanecer. Veio o vice-reino do Prata, para impedir a expansão lusitana ao sul do Brasil. Vieram as invasões inglesas e a Junta de Buenos Aires, de 1810. Depois, a independência e a tentativa de união das províncias no congresso de Tucumán, de 1816. Em seguida, a anarquia, entre 1820 e 1834. Rosas virou ditador, até ser derrotado por Urquiza em 1852. Este convocou uma conferência de governadores que criou a Federação Argentina, hoje República Argentina. A província de Buenos Aires só aceitou a constituição depois da derrota de Urquiza por Mitre, em 1861.
O país começou a crescer a partir dos anos oitenta do século XIX, com a imigração, principalmente italiana, e a exportação de carne e trigo. Passou a fazer jus ao nome Argentina, do latim argentum, prata, símbolo de riqueza. Na primeira metade do XX, tornou-se um país rico, educado, uma Austrália sul-americana menor. A relação com o Brasil foi sempre de admiração e inveja recíprocas.
Que ares maléficos sopraram na Argentina desde então? Por que o país ameaça negar o seu nome, a ponto de alguns de seus índices de desenvolvimento econômico e social regredirem, humilhando seu povo?
Com a ascensão do coronel Domingo Perón, em 1946, a sociedade argentina optou pela adoção de políticas populistas. Elas puderam ser sustentadas temporariamente pelo aumento dos preços dos produtos de exportação e pelas reservas acumuladas durante a Segunda Guerra Mundial. Com essa precária base econômica, o governo peronista nacionalizou a economia e deu à massa dos trabalhadores benefícios que não puderam ser mantidos quando os preços caíram e as reservas se esgotaram. O colapso econômico e a inquietação social foram inevitáveis. Começou aí a decadência argentina.
Sucessivas crises políticas levaram a regimes militares, interrompidos pela volta, em 1973, do próprio Perón que havia sido deposto em 1955. Ele morreu em 1974. Foi sucedido pela mulher, Isabelita, também afastada pelos militares. A volta do governo civil, com Raúl Alfonsín, em 1983, não pôde fazer o país crescer novamente. Eleito Menem, foi adotado um regime cambial que atrelou o peso argentino ao dólar. A hiperinflação foi estancada. Não se resolveram, no entanto, os problemas estruturais da economia. O desemprego cresceu, a produtividade caiu e a economia estagnou. A eleição e renúncia de De la Rúa são símbolos dessa situação. É impossível, hoje, uma cura indolor dos males argentinos. Não há saída fora da desvalorização do peso.
O problema é, principalmente, político. A sociedade argentina terá que decidir se irá viver com as ilusões do populismo, com o extremismo do FMI ou, sem fugir da inevitável participação na economia globalizada, com um modelo próprio. Como antes, a Argentina sobreviverá com suas cicatrizes. Mas, voltará a ser a Argentina de invejáveis cultura e história. Sobre esta, é ainda Borges quem nos diz: “Parece-me história o começo de Buenos Aires:/julgo-a tão eterna como a água e o ar”.

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