19 de outubro de 2003

Rei morto

Jornal O Estado do Maranhão 
Apresentava-se sempre como rei. Quando cruzávamos com ele pelas ruas do Monte Castelo – pois ele agia como um rei escandinavo, facilmente acessível a seus súditos sem os rapapés da corte, sem trombetas a anunciarem sua passagem, sem escolta ou proteção de espécie alguma, numa atitude de plebeu mais do que de soberano – quando cruzávamos com ele, observávamos seus ternos de um tecido grosso, apesar do calor, infalivelmente folgados e desabotoados, a despeito da majestade dele, os sapatos privados de qualquer graxa e um tanto gastos, as meias e calças largas, estas, porém, um pouco curtas, as mãos nos bolsos e o cinto ligeiramente apertado sobre uma barriga em crescimento com o passar dos anos.
Seria difícil adivinhar quantos anos deveria ter. Entre nós, alguns achavam mesmo que sua idade nunca tinha mudado, desde quando pela primeira vez o tínhamos visto, surpresos, havia alguns anos. Sabíamos, sim, da constância do seu passeio. Ficávamos ali reunidos à noite na pequena praça em frente ao cinema. Dali, podíamos ver quando se aproximava, em sua ronda solitária e digna, tão certa quanto certo era falarmos de nossas peladas de futebol, de namoradas, então dificilmente peladas em qualquer circunstância, da primeira viagem do homem à lua e da próxima ida no fim de semana ao bar Deus é Grande, que depois passou a ser o Bar do Nezinho, a fim de tomarmos – quatro ou cinco de nós – um litro inteiro de rum Montila com uma única e escassa garrafa de coca-cola, porque o dinheiro não dava para mais, e, em seguida, terminarmos a noite em alguma festa, sabe-se lá onde, até tarde, jamais pensando na imensa preocupação de nossas mães pela demora.
Quando nos encontrava, ele se esquecia de seus insondáveis sonhos, parava de repente, olhava-nos com uma certa condescendência real, escolhia um de nós ao acaso e dava uma ordem, com sua voz grave e firme, pronto a calar contestações com seu olhar superior: “Me dá um dinheiro, aí. Eu sou o rei dos homens”.
Era assim, uma das figuras mais populares de São Luís naqueles anos. Todos o conheciam como Rei dos Homens e essa era sua maneira de referir-se a si mesmo. Contudo, seu verdadeiro nome era Ivonaldo. O apelido veio das histórias contadas por ele sobre suas aventuras amorosas. Nelas, feito um potentado oriental, apesar de ser filho de um português, ele possuía todas as mulheres que desejasse, sinal seguro, de qualquer maneira, ainda que somente na imaginação, de ser herdeiro dos feitos amorosos dos lusitanos nestes trópicos.
 Havia outros tipos também muito conhecidos em toda a cidade. Nesse tempo, eles podiam andar pelas ruas, livres do risco de sofrer assaltos ou ser assassinados. Desapareceram todos com o crescimento da cidade e da violência urbana. Retirados das ruas, passaram a ser supostamente amparados por um sistema de saúde que não sei se lhes proporciona uma sobrevivência decente, com exceções, como a do Hospital Nina Rodrigues, dirigido pela doutora Teresa Viveiros.
É quase certo que a mudança não os tornou mais felizes. Mas, é incerto o alcance da felicidade pela cura da mente. Afinal, onde fica o limite entre a insanidade e a sanidade mentais, quando se vê diariamente essas barbaridades cometidas no mundo inteiro pelos fazedores da guerra, que matam em nome da racionalidade do dinheiro, com as mais poderosas armas de destruição dos mais fracos?
Rei dos Homens, e outros como ele, eram inofensivos, engraçados e parte do espírito da cidade, e do nosso dia-a-dia, apesar do drama carregado penosamente por cada um deles. Mas, não tínhamos consciência disto. Não pensávamos na tristeza e no sofrimento de suas famílias e de todos que lhes estavam próximos e os amavam.
Passei muitos anos sem notícias dele. Agora, Dr. Raimundo Viveiros, diretor do Hospital Aldenora Bello, excelente cirurgião, velho amigo de infância, me diz que Rei está morto há três anos. No entanto, o velho ditado “rei morto, rei posto” não se cumpriu, pois ele continua a reinar na imaginação de seus contemporâneos.

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