27 de maio de 2001

A culpa é dele

Jornal O Estado do Maranhão
Encontro na imprensa o informe publicitário “Hemetério José dos Santos, o demolidor de preconceitos”, do professor Antonio Martins de Araújo. Ele, uma das mais respeitadas autoridades brasileiras em filologia, mostra, parece-me, louvável intenção de divulgar o nome do nosso conterrâneo de Codó, Hemetério dos Santos, dando notícia de seus méritos. Não ousarei, nem ousaria, avaliar o conteúdo do informe. Limito-me a acrescentar informações sobre um episódio que envolveu o codoense e o nome de Machado de Assis.
Em 29 de novembro de 1908, dois meses, somente, após a morte de Machado em 29 de setembro, Hemetério publicou na Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, uma carta na qual atacava o autor de Dom Casmurro. Dizia que o “[...] segredo da arte de Machado de Assis é primário e rudimentar [...]” e que “[...] o seu vocabulário tem o resumido número deste escritor que começa, e a sua sintaxe geralmente se insubordina às leis surpreendidas.”
Hemetério não hesitou, ainda, em lançar dúvidas sobre o caráter de Machado, ao dizer que conhecera “[...] essa boa mulata velha [a madrasta de Machado, Maria Inês], comendo de estranhos, com conforto máximo, chorando, porém, pelo abandono pegajoso em que a lançara o enteado de outrora [...]”. A madrasta teria sido “o anjo tutelar de Machado”, depois da morte da mãe dele.
É claro que seria absurdo questionar o direito do nosso conterrâneo de achar mil defeitos na obra de Machado. Outros acharam também: Silvio Romero, Luis Murat, Augusto dos Anjos. O que se pode é confrontar sua avaliação equivocada com a da posteridade. Esta se encarregou de tornar evidente que o segredo da arte de Machado era mais do que “primário e rudimentar”. Prova-o sua fortuna crítica.
J. Galante de Sousa, em Fontes para o estudo de Machado de Assis, anota, para o período entre 1857 e 1957, cerca de 1900 referências bibliográficas a seu respeito. Jean-Michel Massa, na sua Bibliographie descriptive, analytique et critique de Machado de Assis (1957-1958), dá-nos outras 713, somente para os anos de 1957 e 1958. De lá para cá, esses números nunca pararam de crescer. A obra dele vem sendo avaliada por sucessivas gerações. Resistiu sempre à corrosão do tempo.
Questionável, sim, lamentável, é a atitude de Hemetério no âmbito pessoal. Os ataques públicos, não os fez em vida do escritor carioca. Por quê? Melhor, mais de acordo com a noção que todos temos de valores éticos, seria calar as restrições pessoais que por acaso tivesse. O morto era recente e seria difícil aos amigos contestar o acusador em assunto de natureza familiar.
Mas, a história das relações de Machado com sua madrasta é bem diferente da que Hemetério nos conta. Jean-Michel Massa, no seu A juventude de Machado de Assis, mostra que a dívida do enteado era pequena. Quando sua mãe, Maria Leopoldina, morreu, em 1849, ele tinha dez anos. Seu pai, Francisco José, só se casou com Maria Inês quando Machado tinha quinze anos. Ele iniciava, então, a publicação de suas primeiras poesias. Como poderia a madrasta ter lhe ensinado “[...] todas as noites, e às escondidas, o pouco de suas letras [...]”, como diz Hemetério, se ela começara a conviver com o enteado quando ele já fazia versos?
O ressentimento do codoense provém de uma cobrança descabida. Ele gostaria que Machado, mulato como ele, fosse um ativista da abolição da escravidão. Como o romancista carioca não o era, por índole e reflexão, o outro não o perdoou desse pecado. Daí os ataques. No entanto, basta conhecer um pouco da obra de Machado para ver sua preocupação com o assunto que envergonhava tanto ele como a sociedade brasileira. O conto “Pai contra Mãe” e o romance O memorial de Aires são dois exemplos entre incontáveis outros.
A ironia é que, se Hemetério é, hoje, eventualmente lembrado, deve-o, quase unicamente, ao “efêmero”, “passageiro”, Machado de Assis. Um tipo de carona literária. Sem ela, seu nome já teria, há muito, desaparecido completamente. Se ainda não foi, a culpa é de Machado.

20 de maio de 2001

Didi

Jornal O Estado do Maranhão
Sou de uma geração que testemunhou o crescimento e consolidação do prestígio do futebol brasileiro. Quando o Brasil ganhou a primeira Copa do Mundo, na Suécia, em 1958, eu tinha 10 anos de idade. A Itália e o Uruguai já haviam vencido, então, duas vezes cada. A Alemanha, uma.
A participação brasileira nas competições anteriores, no entanto, tinha sido boa. Ficamos em terceiro lugar em 1938, quando o artilheiro foi um brasileiro, Leônidas da Silva, e em segundo lugar na Copa seguinte, em 1950, quando também tivemos o artilheiro, Ademir. Neste último ano, possuíamos um time excepcional, mas perdemos para o Uruguai, no Maracanã.
O fracasso gerou um derrotismo no torcedor brasileiro que somente começou a ser superado com a vitória de 1958. Depois, consolidamos nossa posição com as vitórias em 1962, 1970 e 1994, o segundo lugar em 1998, o terceiro em 1978 e o quarto em 1974. Em dezesseis campeonatos, o Brasil esteve entre os quatro primeiros colocados nove vezes.
Dos grandes craques brasileiros da campanha da Suécia, um dos mais talentosos era Didi, chamado por Nélson Rodrigues de “príncipe etíope de rancho”. Não príncipe etíope, apenas, mas, de rancho. Creio que o grande dramaturgo brasileiro queria enfatizar a elegância e o orgulho racial do negro, espontâneos em Didi, em contraste com a falta de naturalidade de um príncipe qualquer, de verdade, porém artificioso, submetido a mil etiquetas e protocolos.
O príncipe de rancho, como o mestre-sala de escola de samba, desfila com uma naturalidade que vem da intuição que tem de seu poder mágico de encantar, de cativar, de provocar admiração. Assim era Didi a cada minuto de jogo, improvisando gestos de efeitos surpreendentes com a arte nascida do seu jogo elegante.
Didi jogava olhando a linha do horizonte, como se observando e admirando o vôo leve de um pássaro ao longe. Chegava perto de colocar a mão em concha acima dos olhos para ver melhor. Não se dignava de baixar a cabeça para ver a bola escravizada, ou os adversários. O que ele fazia era vislumbrar o colega e enfiar um passe de 30 ou 40 metros. A bola, outro pássaro, amestrado, em suave e serena trajetória, dava a impressão de querer ir além da intenção dele, somente para diminuir a velocidade e jogar-se aos pés de um agradecido companheiro.
Foi dele o gol que classificou o Brasil, em jogo em que vencemos o Peru por um a zero, nas eliminatórias para a Copa de 1958. Em cobrança de falta, ele marcou com um chute de curva, conhecido como folha-seca porque a bola subia, dando a impressão de querer passar por cima das traves, e, de repente, caía dentro do gol. Marcou outro gol histórico: o primeiro do Maracanã.
A importância de Didi pode ser avaliada pelo seu salário. Quando ele se transferiu do Fluminense para o Botafogo, em 1956, passou a receber 70 mil cruzeiros por mês. Para comparar, vejam que Garrincha ganhava 16 mil. Conseguiu um aumento para 18 mil, por causa do príncipe. Nílton Santos, outro craque, passou a ganhar 30 mil cruzeiros, menos da metade do salário de Didi. O jogador mais bem pago, até então, era Zizinho: 30 mil também!
A vida do craque com sua mulher, Guiomar, era esmiuçada permanentemente pela imprensa, o que não acontecia com nenhum outro jogador. Dizia-se que “Risque”, canção do tipo dor-de-cotovelo, foi composta por Ary Barroso para Guiomar, depois do casamento dela com Didi. O compositor perdera a esperança de ver seu amor correspondido por ela. Outra história dizia que, se o craque estava bem com a mulher, jogava bem; se estava mal, jogava mal. Mistérios do amor.
A morte recente de Didi servirá para renovar o exemplo de dedicação ao Brasil que ele deu às gerações que sucederam à sua. A geração atual, tão talentosa quanto qualquer outra, mas submetida à irresponsabilidade dos dirigentes, saberá superar a atual crise do nosso futebol. Ela passará. Voltaremos a nossos melhores momentos. Como os que Didi nos deu.

15 de maio de 2001

Garimpo violento

Jornal O Estado do Maranhão
Maripasoula, na Guiana Francesa, fronteira com o Suriname, é uma região de garimpo. Muitos brasileiros têm ido para lá em perseguição do sonho de enriquecer com o ouro. Mas eles é que têm sido perseguidos cruelmente por chefes de garimpo. É o que se pode concluir de reportagens publicadas na imprensa local e no Le Monde, influente jornal francês.
Andréa Viana, de O Imparcial, recebeu, em maio deste ano, de dois jornalistas independentes franceses, Fréderic Farine e Laurent Marot, que preparavam uma reportagem sobre o assunto para uma rádio francesa, uma fita com o relato de um garimpeiro maranhense, de Santa Luzia do Tide, Isaías Sousa, sobre torturas contra ele e outros garimpeiros, e até assassinatos de alguns destes.
O deputado Gastão Vieira, no mês seguinte, junho, levou essas informações à Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados e fez um pronunciamento no Congresso Nacional informando os congressistas sobre a gravidade da situação. Em seguida, no dia 6 de julho, o Le Monde publicou reportagem dos dois jornalistas, na qual mencionou o discurso do deputado e apontou o crescimento da violência contra os brasileiros e a omissão das autoridades policiais da Guiana.
Na segunda-feira passada, 9 de julho, pude presenciar entrevista do deputado Gastão ao jornalista Fréderic Farine que está preparando nova reportagem para o Le Monde. Andréa deu notícia desse encontro, em O Imparcial, na última terça feira, dia 10.
O deputado chamou a atenção para a necessidade de criarem-se alternativas econômicas para a sobrevivência, no Brasil, dos garimpeiros brasileiros. Essa seria a melhor maneira de incentivá-los a permanecer em seus locais de origem. É demorada, porém, a obtenção de resultados com programas governamentais dirigidos a esse fim. Não é certo também que o governo queira ou possa fazê-lo.
Por isso, o deputado acha que uma ação do governo francês em defesa dessas pessoas terá de ser obtida imediatamente pela diplomacia brasileira. Para tal fim, irá pedir a convocação do ministro da Relações Exteriores, Celso Lafer, à Comissão de Direitos Humanos.
Os aspectos econômicos do problema são muito importantes. Brasileiros da Amazônia, sem oportunidade de obterem uma renda mínima que lhes garanta a sobrevivência, sentem-se atraídos pela ilusão do ouro. Procuram garimpos por toda parte. Foi assim em Serra Pelada, com resultados socialmente desastrosos. O mesmo ocorre em Maripasoula.
A verdade é que o ouro tem um poder de atração quase irresistível, com raízes na sua simbologia de riqueza e poder. Tão grande é o fascínio, que se torna boa matéria romanesca como em Saraminda. No imaginário popular, achar ouro no garimpo, “bamburrar”, representa, além de riqueza material, a promessa de felicidade. Sabe-se que a realidade não é essa e que, mesmo os que têm alguma sorte, não se livram sequer das dívidas com os donos de garimpo. Quando “bamburram” de verdade, voltam à miséria quase sempre.
A situação agrava-se porque são estrangeiros, brasileiros, os que chegam para “roubar” o ouro da Guiana Francesa. Como a região é dominada pela etnia boni, descendente de escravos, a disputa acaba ganhando um matiz étnico. É o “nós” contra “eles”.
Os dois governos têm se mostrado omissos. O da França limita-se a observar. Não toma nenhuma medida para impor a lei francesa, não faz nada para proteger os garimpeiros brasileiros, receoso de ser acusado de oprimir os bonis e para não dar a impressão de estar adotando uma postura de potência colonial que intervém em um conflito étnico que não lhe diz respeito.
 O do Brasil não tem sido capaz de implantar um modelo de desenvolvimento sustentável na região amazônica para fixar suas populações à terra e mantém-se indiferente ao drama dos brasileiros na Guiana. Será que não os considera dignos de atenção?
Resta-nos a esperança de que a iniciativa do deputado dê resultados e que os dois países cumpram suas obrigações, adotando soluções permanentes para o problema.

13 de maio de 2001

Elba abduzida

Jornal O Estado do Maranhão 
Abduzida, abdução? Sim, abdução. Parece estranha, a palavra, incomum. No entanto, ela existe. É de origem latina, abductione, segundo os dicionários. Seus sentidos são vários. Um deles, usado no curioso jargão jurídico, é de “rapto com violência, fraude ou sedução”. E daí? Daí que Elba Ramalho foi abduzida, provavelmente pelo uso de sedução. Por quem? Por ETs, ela afirma à revista Veja.
O caso é que, na 11a. Conferência Internacional de Ufologia, em Curitiba, ela disse que esses seres implantaram nela um chip que só pôde ser retirado com a ajuda de outros seres, celestiais, “ultra, supra, luminosos”. O local do implante, no corpo da cantora, não foi especificado. No cérebro? Elba teve mais sorte do que as outras quase cinco mil vítimas que tiveram de recorrer a duas videntes do interior de São Paulo para extração de chips. O dela saiu durante o sono, sem necessidade de cirurgias mediúnicas.
O que desejam, afinal, os ETs? Os do bem querem, naturalmente, o bem dos terráqueos que, de tão atrasados tecnologicamente, dependem de extraterrestres para uma coisa aparentemente tão simples como a retirada dessa, digamos, eletrônica embarcada. Mas os do mal, meus amigos! O primeiro estudo que fazem é o da genética terráquea. Conhecendo bem nossa natureza, nossos instintos mais primitivos, fica fácil a dominação de nosso planeta. A cantora afirma que existe um pacto secreto com vários países para a implantação dos chips. “Políticos brasileiros colaboram com esse governo oculto”.
Não estaria aí a explicação para a confusão em que políticos experientes e espertos como Antônio Carlos Magalhães e Jáder Barbalho, bem como o menos experiente, porém igualmente esperto, Arruda, se meteram? Não seria algo premeditado, uma conspiração? Não poderia tudo isso fazer parte de um plano alienígena para destruir as instituições políticas brasileiras?
A verdadeira história seria esta. Antônio Carlos, Arruda e Regina Borges, todos dominados pelos ETs, combinaram violar a votação que cassou o mandato do ex-senador Luís Estêvão e divulgar seu resultado que deveria permanecer secreto. O senador baiano vazou, de propósito, para os procuradores federais, que também têm ETs infiltrados entre eles, a informação de que uma lista existia, mostrando o voto de cada senador. A informação foi divulgada pela imprensa, levando a seu exame pela Comissão de Ética do Senado. Esta chamou os envolvidos, para depor.
O assunto, como se sabe, provocou a indignação da opinião pública, que se manifestou favorável à cassação dos senadores. Como parte do plano, porém, um outro pacto, também secreto, entre os partidos, foi firmado no Senado para impedir a punição dos envolvidos. Para que não sofresse a injustiça de ser penalizado sozinho, sem o consolo de uma companhia ilustre, Jader Barbalho, tido como fraudador da Sudam, também seria poupado. Resultado: descrédito e desmoralização do Senado.
Ora, como esperar, nesse ambiente, que as autoridades terráqueas – a ONU, os Estados Unidos? – ou, pelo menos, as brasileiras, todas chipadas, dêem “um depoimento lúcido sobre a presença de ETs”, como diz Elba? Pedir isso é também abdução, em outro sentido da palavra, o de “raciocínio cuja conclusão é imperfeita e, portanto, apenas plausível”. Pedido plausível, sim, merecedor de aplausos pela boa intenção. Mas impossível de ser atendido.
Resta-nos, por fim, uma esperança que também vem do espaço. É sabido que saturnino é o que nasce sob a influência de Saturno, o planeta dos anéis. O relator da Comissão é Saturnino. Logo, podemos supor com segurança que ele está fora do controle dos ETs de Elba. Assim, seu parecer bem que poderá ser a favor da cassação, atrapalhando o plano alienígena.
Se, por fim, houver resistência das forças do mal, o senador saberá manobrar para que, mesmo que se percam os anéis do planeta, fiquem os dedos dos senadores, para decidir em votação manual, sem segredos, sobre o destino daqueles acusados e acuados terráqueos.

6 de maio de 2001

Raça Brasil

Jornal O Estado do Maranhão
Há 25 mil anos um grupo humano emigrou da África para a Europa. A origem de toda a população européia de nossos dias está nesse episódio. A conclusão é de um estudo feito no Instituto Whitehead, nos Estados Unidos, apresentado na Escócia, durante reunião da Organização do Genoma Humano. Os cientistas compararam os padrões genéticos de pessoas da Nigéria, Suécia e Europa Central. Eles encontraram apenas pequenas diferenças e concluíram que as populações desses países e regiões têm uma origem comum em um conjunto de não mais do que uma centena de indivíduos.
Estudos desse tipo vêm contribuindo para o banimento definitivo das ideologias disfarçadas de ciência que proclamavam, e, por vezes, ainda proclamam, a superioridade de algumas raças, particularmente da branca, sobre as outras. Saber que os brancos europeus descendem dos negros africanos é um reforço importante para o combate ao racismo, no mesmo momento em que um membro da organização racista americana Ku Klux Klan é condenado à prisão perpétua pelo assassinato de quatro adolescentes negros em 1963 no Alabama.
A idéia de superioridade racial teve seu apogeu nas primeiras décadas do século XX. A política nazista alemã de aniquilamento dos povos judeu e cigano, bem como de perseguição a diversas minorias, é o exemplo mais conhecido da aplicação dessa idéia como política de Estado. Por ironia, na “civilizada” Europa.
No Brasil, já foi moda afirmar que a mistura de raças, uma traço tão marcante da cultura brasileira, iria gerar uma sub-raça degenerada. Ela herdaria as características indesejáveis das que a formassem. A influência desse pensamento pode ser vista até num intelectual da qualidade de Euclides da Cunha, especialmente em sua obra prima, Os sertões. O curioso é que, se essa teoria fosse verdadeira, seríamos, os brasileiros, uma raça degenerada, de “mestiços histéricos”. Não me parece ser esse o caso, apesar das aberrações, não biológicas, mas morais, que se têm visto na imprensa brasileira nesses últimos dias.
O racismo, como conhecido atualmente, é um fenômeno moderno, incômoda herança da expansão mundial do capitalismo ocidental, iniciada com as grandes descobertas de novas terras, em fins do século XV. A necessidade de utilização de mão-de-obra barata, não disponível nos países colonizadores, para a exploração econômica das colônias, levou à escravização dos nativos. A justificativa, diferentemente da utilizada no mundo antigo que discriminava com base em outros fatores, era de que aquelas eram raças inferiores. Estas, diziam as potências coloniais, estariam produzindo para o bem da humanidade, querendo dizer para a sua parte racialmente superior.
 Um nordestino, de Pernambuco, Gilberto Freire, foi um dos primeiros demolidores desse mito e o mais brilhante. Ele mostrou que o conceito de raça, além de incluir elementos de cultura, como bem assinalou Franz Boas, em adição aos de biologia, tem de ser visto como o resultado de uma relação dinâmica entre ambiente, história, migrações e etnias. Os próprios portugueses têm um passado bastante heterogêneo, com elementos africanos e europeus – ambientais, étnicos e culturais – que marcaram sua formação histórica.
Pode-se falar, então, de uma “raça histórica” brasileira, produto da mistura de diversas etnias, entre elas a portuguesa, a banto e a tupi, que se adaptaram às particularidades ecológicas dos trópicos para a construção de sua própria história. Falar de hierarquia de raças é tão absurdo quanto falar de hierarquia de ecossistemas, de histórias ou de migrações. Cada raça, como definida por Freire, é, somente, a combinação específica, particular, não repetível, desses elementos.
A “raça histórica” brasileira, a despeito das inúmeras dificuldades que enfrenta há longo tempo, já provou que se iguala a qualquer outra. Mas, simultaneamente, ela é diferente, singular, única, de extraordinária riqueza cultural. É isso que a levará à construção de um Brasil melhor e mais justo.

Machado de Assis no Amazon