28 de outubro de 2007

A Feira

Jornal O Estado do Maranhão
A Feira. É dessa forma que deveríamos nos referir à Feira de Livros de São Luís, encerrada ontem na Praça Maria Aragão e cujo patrono foi Josué Montello, porque ela o foi de verdade, e das melhores. Foi uma promoção da Prefeitura Municipal de São Luís, contando com vários parceiros locais e nacionais e com o apoio institucional da Academia Maranhense de Letras e de entidades ligadas à produção de livros no Brasil.
Como disse Jomar Moraes, em sua crônica da última quarta-feira aqui n’O Estado do Maranhão, ela não foi a primeira em ordem cronológica, porque outras já houve.Não há de se duvidar, todavia, de sua primazia, quando se consideram a qualidade e a dimensão de que se revestiu e o ambiente de entusiasmo que gerou, refletido nos comentários dos seus freqüentadores. Foram observações feitas por escritores famosos nacionalmente, como Moacyr Scliar, que me revelou sua agradável surpresa com a dimensão nacional e boa organização do encontro, por intelectuais maranhenses, por militantes da área cultural, por livreiros, mas também por freqüentadores anônimos, comuns, mas, nem por isso menos importantes, unânimes em elogios, num exemplo eloqüente de que nem sempre a unanimidade é burra, como não foi desta vez.
Acontecimento como esse não tem por fim a mera venda de livros, embora, evidentemente, a comercialização, ao colocar ao alcance das pessoas publicações que elas não teriam a oportunidade de conhecer sem a Feira, cumpra a importante função de ajudar na formação de novos leitores – especialmente entre os jovens alunos da rede municipal de ensino, que lá estiveram o tempo todo, em todos os horários –, formação fundamental no fortalecimento cultural de qualquer sociedade, e gere, ainda, a comercialização, incremento de renda para os agentes econômicos locais, objetivo econômico de que tanto se fala no discurso porém pouco se promove na prática.
Quem por qualquer contingência não pôde visitá-la, terá idéia aproximada dos outros objetivos e da amplitude das atividades ali desenvolvidas por uma simples listagem: seminários, palestras de escritores maranhenses e nacionais, oficinas, encontros, exposições, lançamentos de livros, atrações dirigidas ao público infantil, espetáculos teatrais, apresentações de grupos da cultura popular maranhense, espetáculos musicais populares, exibição de filmes, vídeos e performances poéticas, bem como diversas atividades que, embora fazendo parte da programação, foram realizadas em diferentes locais, como no Núcleo de Cultura Lingüística, na Praça Gonçalves Dias, e no auditório do Sesc, na avenida Silva Maia.
Foram discutidos temas – dou apenas pequena amostra – como políticas públicas do livro, técnicas de construção naval artesanal do Maranhão, o arquivo como espaço de leitura, a linguagem cinematográfica na escola, o fortalecimento e a democratização dos sistemas de bibliotecas públicas, arte sacra e a imaginária em São Luís, o Plano Nacional do Livro e a Leitura, e dezenas de outros ligados tanto à cultura popular quanto a cultura erudita.
A Feira mostra com perfeição as potencialidades e a riqueza da cultura maranhense e resulta da soma de felizes circunstâncias e do concurso de vontades de bem realizar. O prefeito Tadeu Palácio demonstrou sensibilidade para sua realização. E tanto que a instituiu por lei, tornando ilegal sua interrupção nos próximos anos por seus sucessores. A de 2008 já me parece certa.
Não estaria completa esta breve notícia se não fizesse menção ao presidente da Fundação Municipal de Cultura – Func, Edirson Veloso, por todos apontado como a alma do evento, ao lado de Lúcia Nascimento e Teresa Valois, coordenadoras gerais, competentes planejadoras e eficientes executoras da árdua, contudo recompensadora tarefa de fazer viver a Feira.

21 de outubro de 2007

Em Revista

Jornal O Estado do Maranhão
Acaba de vir a público compilação de artigos publicados entre 1916 e 1920 na Revista Maranhense: Artes, Ciências e Letras. A publicação de agora, da Editora Uema, da Universidade Estadual do Maranhão, tem como organizadores os professores Antonio José Silva Oliveira, Ilma Vieira dos Nascimento, José Augusto Silva Oliveira e Maria Eliana Alves Lima e, na orelha, conta com esclarecedor texto do nosso confrade da Academia Maranhense de Letras, Marialva Mont’Alverne Frota, autor, entre outras obras, de Sousândrade: o último périplo. Os textos de 1887, primeira fase da Revista, que teve três números, não foram localizados ainda, apesar dos esforços dos pesquisadores. Os divulgados agora são da segunda fase.
Em 1916, vivíamos no Brasil experiência política de criação recente, pois tinha então apenas 27 anos a República brasileira. Esta nasceu sob influência do Positivismo, doutrina de cunho sociológico, com sua visão de estágios evolutivos da humanidade (teológico, metafísico e positivo), que, por sua vez, era parte do cientificismo daqueles tempos, percepção sobre a realidade social, ligada à ascensão da civilização industrial, alicerçada na convicção de que os problemas enfrentados pelas sociedades humanas poderiam sempre ser resolvidos com o auxílio das ciências da natureza ou das sociais.
No Maranhão, em luta com acentuado declínio econômico desde o século anterior e a despeito do ambiente nacional de entusiasmo pela ciência e pela necessidade de sua divulgação, predominavam as manifestações culturais literárias, caracterizadas por um saudosismo romântico a respeito das glórias do passado, ao tempo em que aquilo que se convencionou chamar de pré-modernismo já anunciava o modernismo brasileiro, que, como reação sistemática às formas de arte já superadas nos centros culturais do sul do país, aqui chegou só no fim da década de 40, após a volta, de Portugal, de Bandeira Tribuzi e do surgimento de uma nova e talentosa geração que divulgou entre nós o modernismo nacional, já em sua segunda geração.
A Revista Maranhense: Artes, Ciências e Letras, apesar do nome, tinha sua produção de artigos, embora diversificada, quase totalmente voltada para Artes e Letras, (80% de seus títulos eram de gêneros literários), ficando os de caráter científico em segundo plano do ponto de vista numérico, sendo evidente, no entanto, a importância atribuída por seus colaboradores à educação do povo, e não apenas das elites. Isso não significa dizer que assuntos científicos, especialmente os relacionados ao imperativo de seu ensino, não fossem tratados naqueles 80%. Não é demais enfatizar a prioridade da Revista à educação da sociedade, àquela altura com percentagem altíssima de analfabetos entre seus membros. Ou seja, havia um discurso consistente sobre a relevância de se ter formação científica moderna, mas poucos artigos científicos de fato, o que não é de causar surpresa pois não se dispunha de instituições de pesquisa naquele momento.
Um desses textos, de José Augusto Corrêa, saiu em fevereiro de 1917, propunha acharem-se quantias proporcionais tal que a soma dos extremos das proporções fosse 9, a dos meios, 6, e a soma dos quadrados dos quatro termos, 85. De resolução extremamente simples, mesmo na época, indica o nível dos artigos da Revista classificados como científicos.
Depurada de alguns defeitos editoriais, o que poderá ser facilmente feito em segunda edição, a publicação cumprirá melhor seu propósito de colocar ao alcance do público material importante para a compreensão de alguns aspectos de nossa vida cultural no início do século XX, período importante para o estabelecimento de uma reflexão informada sobre algumas características da sociedade maranhense hoje.
Está de parabéns a Universidade Estadual.

14 de outubro de 2007

Vou estar...

Jornal O Estado do Maranhão

Andou bem o governador do Distrito Federal ao decretar a demissão do gerundismo. Aliás, ele deveria estar fazendo isso, ou melhor, ele deveria estar tentando adotar a medida há muito tempo para evitar estarem falando mal do governo, os críticos de sempre.
Se pareço estar usando o gerundismo, é porque de fato estou. A doença é altamente contagiosa e verbalmente transmissível. Por isso, precisamos estar sempre de olho na sua insidiosa mania de se infiltrar no discurso alheio. Daqui até o fim prometo me policiar, com o fim de evitar o contágio.
O decreto se refere, em verdade, não ao gerundismo, mas ao gerúndio. Levado ao pé da letra, estaria demitida com a canetada uma das formas nominais do verbo na língua portuguesa, tarefa impossível. A intenção do ato foi banir o uso abusivo e errado do gerúndio e evitar que o gerundismo em suas formas mais abusivas sirva como desculpa para a incompetência e burocratismo. Mas, não pretendia apenas isso, pois não se pode supor que o governador ignorasse ser impossível legislar sobre gramática, embora, na prática, muitos militantes do PT tenham demitido há séculos o plural, que eles parecem odiar. Tenho comigo ser evidente a ironia do governador. Ele quis colocar em evidência, penso eu, o fato de o uso, aparentemente inocente, de modismos lingüísticos, servir ao fim de encobrir o descaso com a coisa pública e a inépcia estatal.
Assim como há leituras literais da Bíblia, há leituras literais de decretos, como a daquele professor de português que disse que o assunto deveria ser deixado por conta da Academia Brasileira de Letras. Por sinal, em momentos polêmicos surgem na televisão, não se sabe vindos de onde, especialistas em qualquer coisa, peritos em obviedades, se atentarmos bem.
“Fica proibido o uso do gerúndio para desculpa de ineficiência”, diz um artigo do decreto. Isso evitaria diálogos deste tipo: “Como estão as obras em Taguatinga?”, poderia perguntar o chefe do governo do Distrito Federal a um de seus secretários de Estado. Poderia ouvir como resposta isto: “Vou estar providenciando um relatório imediatamente. Os técnicos vão estar produzindo um paper (esta palavra deveria ser demitida também), em menos de uma semana, governador”.
Vou estar traduzindo... Peço desculpas pelo escorregão, eu quis dizer, tão-só, dou a tradução: “Não providenciei a tempo a droga do relatório e agora vou ter de botar aqueles incompetentes pra inventar qualquer coisa, depois a gente faz um ajuste no fim da obra. O diabo é que justamente pela incompetência deles não sei quando isso vai estar ficando pronto. Governadores não deveriam sair de seus gabinetes e estar metendo o bedelho em obras públicas”.
Parece que os portugueses tiveram percepção mais aprofundada da equivocada polêmica com respeito à intenção do governador. Vejamos, na grafia portuguesa: “O decreto em que um governador brasileiro ‘demite’ o gerúndio é ‘irónico’, para além de não se poderem ‘demitir ideias, objectos ou conceitos’, salientam duas investigadoras do Departamento de Linguística da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa”, segundo resumo do jornal Expresso, de Lisboa.
Proponho um remédio contra a renitente praga do gerundismo. Em vez de se usar o gerúndio como no Brasil, verbo auxiliar+gerúndio, de uso bastante antigo na língua, por que não se adota a forma de Portugal, verbo auxiliar+preposição ‘a’+infinitivo, de uso muito mais moderno? Diríamos, então, estou a fazer, em lugar de estou fazendo. O diabo é que, como o vírus da doença é resistente e refratário a vacinas, alguém poderia estar querendo inovar (olha aí outro escorregão): Vou estar a estar fazendo... Sei lá, algo assim, bastante inovador, original.
É, vou ter de estar pensando numa solução melhor.

7 de outubro de 2007

Um irmão

Jornal O Estado do Maranhão

O prédio fica na rua do Sol na esquina com a de Santaninha, onde hoje funciona um estaciona-mento para automóveis. Lá, sede do Banco de Desenvolvimento do Maranhão, nós, técnicos e funcionários, recebemos em 1970 ou 1969, não estou bem certo, a notícia da contratação de Bandeira Tribuzi para o órgão, não propriamente um banco, apesar do nome, mas uma agência de desenvolvimento semelhante a muitas criadas nos Estados a partir do final dos anos 60, que marcaram o início da euforia de acelerado crescimento econômico da presidência militar do general Medici.

Éramos muito jovens e víamos os governos como capazes de, por simples “vontade política”, num voluntarismo que a nós parece tolo hoje, transformar sem demora e mesmo revolucionar arranjos sócio-econômicos injustos de nossa sociedade e superar assim interesses políticos poderosos estabele-cidos há séculos no Estado. Em suma, achávamos fácil quebrar velhas estruturas e criar um novo mundo.
A essência desse idealismo juvenil permaneceu em nós. Não nos tornamos cínicos, por medo de sermos etiquetados como ingênuos, nem passamos a achar que nada muda e apenas a lógica do capital conta, embora ela conte muito. Antes, aprendemos não depender a luta por mudanças apenas do querer e percebemos ter a realidade do poder a capacidade de impor uma lógica conflitante com a justiça social em muitas circunstâncias da vida social.
Houve grande e genuína agitação no Banco: Tribuzi vai chegar! Para meus 22 anos de então, sendo eu ainda aluno da antiga Faculdade de Economia, a convivência com aquele homem reverenciado como um dos grandes nomes da poesia e da cultura maranhense, com uma história de perseguido político preso e demitido de seu emprego pelos militares, por causa de suas idéias libertá-rias e agudo senso de justiça social, sua família submetida a dificuldades em razão de sua recusa em renegar princípios, tudo isso era de admirar e inibir ao mesmo tempo. Mas, o que eu tinha em mente era tão-só a imagem do homem, não o próprio homem. Com este vim a estabelecer grande amizade que se prolonga até hoje nas periódicas conversas que tenho com Maria, sua viúva.
Essa proximidade com o ser humano Tribuzi, com a pessoa comum no sentido de ser como um de nós no dia-a-dia, com dores e alegrias, sentimentos e paixões, como pelo futebol, em especial pelo Moto Clube, zangado-se quando, ao fazermos o bolão da Loteria Esportiva, na época grande novidade, prevíamos a derrota desse time, a proximidade, eu dizia, criou as condições para a influência intelectual que ele viria a ter sobre a maioria de nós.
Em nossas conversas nos intervalos da elaboração de projetos, programas e planos, inclusive de planos estaduais de desenvolvimento de dois governos, fomos – pelo menos esse foi o meu caso – aos poucos moderando o ímpeto das críticas a tudo e a todos. Devagar ele foi nos mostrando os limites do voluntarismo e abrindo-nos os olhos para a necessidade de termos os pés firmes no chão sem abrir mão de valores morais.
Quando, em 1977, desejando fazer mestrado e doutorado em economia nos Estados Unidos, me candidatei a socorro financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, que tinha como dirigente da área de concessão de bolsas o hoje deputado federal Gastão Vieira, foi Tribuzi quem me orientou na elaboração de documento justificativo do pedido. Eu, por sugestão dele, pretendia estudar as implicações sócio-econômicas da implantação de uma grande siderúrgica em São Luís, projeto de que se falava já naquela época, há trinta anos. Trinta anos, e bem antes já se discutia com esperança e emoção o assunto!
Guardo com muito carinho um exemplar do seu último livro, Breve memorial do longo tempo, com a seguinte dedicatória: “A Lino, que é irmão”.

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