27 de novembro de 2005

Rotina

Jornal O Estado do Maranhão   
Num domingo de verão, fim da tarde, quando milhares de pessoas voltavam a Paris em seus automóveis, um engarrafamento paralisou na auto-estrada o trânsito em direção à cidade. Depois de algum tempo os motoristas se convenceram de não ser o problema temporário, mas de longa duração. Aos poucos, sem meios para escapar, depressa estruturaram uma pequena comunidade. Logo, porém, surgiram as mesmas relações humanas desumanizadas, se assim posso dizer, da sociedade maior de onde vinham, marca distintiva da vida nos nossos dias.
A primeira necessidade era estabelecer regras garantidoras da sobrevivência física de todos. Como assegurar o abastecimento de água e comida? Formaram-se grupos, surgiram chefes, conflitos, alianças. Muitos conversavam, falavam sobre suas vidas, desabafavam com gente nunca vistas em outra ocasião, pensavam nas obrigações que não poderiam cumprir, liam, sonhavam, amavam, odiavam. Criou-se um almoxarifado geral, organizou-se a distribuição de alimentos. Um homem se suicidou deixando uma carta a uma mulher e uma freira entrou em delírio. Ambos não haviam se adaptado à nova situação. Depois de vários dias os veículos começaram a andar, até se desfazer, por fim, o engarrafamento. Algumas pessoas, de tão acostumados à nova situação, aferravam-se à idéia de, no dia seguinte, desempenhar as mesmas tarefas do dia anterior na nova comunidade e não de seguir para casa “na noite entre automóveis desconhecidos onde ninguém sabia nada sobre os outros, onde todos olhavam fixamente para a frente, exclusivamente para a frente.”
Esse é o resumo do conto “A Auto-estrada do Sul”, do escritor argentino Julio Cortázar, morto em 1984. A história pode parecer inverossímil, mas não é. Agora mesmo, conforme notícias da imprensa, vários estrangeiros estão morando há semanas no aeroporto de Cumbicas, em Guarulhos, São Paulo, porque a documentação deles está irregular. Estão impedidos de entrar no Brasil e, ao mesmo tempo, de sair do país, numa sala da Polícia Federal de 25m2, com sete poltronas reclináveis. Dividem a pia do banheiro, na lavagem de roupa suja, e a comida fornecida pelas companhias aéreas, mas têm dificuldade de comunicação, pelo desconhecimento do português. A solução simples de seus problemas – mandá-los de volta aos países de origem, mesmo sem passaporte – não aparece assim aos olhos da burocracia estatal. No lugar de origem não seria menos complicado regularizar os papéis deles?
As duas situações são na aparência fora do comum, uma ficcional, outra da realidade imediata, mas na verdade são corriqueiras nas relações de caráter superficial que mantemos com os outros em nossa sociedade, embora não as percebamos dessa forma. Em uma, a tecnologia, neste caso embutida nos carros, desenvolvida com o fim de tornar mais fácil nossas vidas e potencialmente capaz de poupar-nos tempo que poderia ser usado na melhoria de nossos relacionamentos, se torna uma armadilha, fator de convivência forçada e artificial. A recomposição, em pequena escala, do grupo social e a imposição de nova ordem reproduzem as mesmas características dos arranjos sociais de antes.
A situação do aeroporto não é diferente, em essência, da arapuca da auto-estrada, em seu potencial de desnudar o desamparo do ser humano e a superficialidade da comunicação entre eles no mundo de hoje. O poder da burocracia que oprime o homem comum, em vez de ampará-lo pelo uso racional da tecnologia disponível, o convívio forçado de estranhos, que, com tempo suficiente acabarão criando outra miniatura da sociedade moderna, com todas suas estruturas opressoras, o instinto de dominação de uma pessoa sobre outra, que sem dúvida irá aflorar, tudo isso aproxima a estrada do aeroporto.
O incomum aparente é de fato nossa rotina.

20 de novembro de 2005

Memória

Jornal O Estado do Maranhão  
A lei estadual há poucos dias aprovada pela Assembléia Legislativa que tem como objeto retirar da Fundação da Memória Republicana a posse do Convento das Mercês é uma tentativa de atingir José Sarney. Não é uma disputa jurídica, pois a opinião dos mais qualificados juristas maranhenses e de outros Estados diz ser perfeito o ato que convalidou a doação do prédio para a Fundação. A Academia Maranhense de Letras recebeu em doação do governo do Estado, em 1951, o prédio de sua sede na rua da Paz. O governador Sebastião Archer da Silva cometeu alguma ilegalidade ao sancionar a transferência? Haverá neste momento a disposição de aprovar lei retornando a edificação ao patrimônio público, de onde foi retirada de forma legal e legítima, como foi o Convento? Por certo, nós todos seremos julgados com severidade no futuro se essa lei de fato vigorar. A justiça ainda irá se pronunciar com serenidade sobre ela.
 Onde está a razão dessa atitude capaz de ameaçar a existência do memorial, protegido por lei federal, de um ex-presidente da República? Em outros países, e mesmo aqui no Brasil, como no caso do Memorial JK, iniciativas como essas recebem o apoio do poder público que se esmera em apoiá-las, por serem importantes fontes de estudo da história. Minas Gerais seria indiferente ou hostil a receber o acervo documental do governo de seus conterrâneos ex-presidentes? Não só o de JK, mas de todos os ocupantes do cargo ao longo de nossa história republicana. E São Paulo e o Rio Grande do Sul? A Califórnia rejeitaria homenagens a Ronald Reagan, um político muito popular, embora não fosse unanimidade naquele Estado americano e nos Estados Unidos, como ninguém é em lugar nenhum?
É evidente que não se trata tão-só do prédio do Convento, de sua parte física, de suas paredes, de seus alicerces, de seu chão, por si só coisas de valor histórico. Está em jogo um patrimônio com suporte material na forma de milhares de documentos oficiais e de livros doados por Sarney de sua biblioteca particular, entre eles obras raras, mapas, vídeos, fotos, filmes, etc., mas, em essência, patrimônio imaterial, intangível, de valor inestimável para nossa identidade como povo, impossível de ser avaliado em termos financeiros. Desejamos apagar nossa própria memória, deletar o passado? O prédio – não se precisa afirmar a necessidade de preservá-lo – estaria em melhores condições se a ele não tivesse sido atribuída sua função de hoje? Será preservado, caso essa lei seja confirmada?
Pretendem atribuir a Sarney a origem dos males do Maranhão. Ora, ela está, em grande medida, no final do século XVIII, quando se consolidou no Estado uma economia bastante concentradora da propriedade da terra e da renda pessoal por conta da aplicação de políticas mercantilistas do governo português encarnado no marquês de Pombal, o que nos deu, na economia brasileira, uma posição secundária com início na Independência no primeiro quartel do século XIX, quando o espaço econômico da nova nação começou a ser unificado e seu centro dinâmico se fixou, por diversas razões no Sul. Sarney sempre fez o máximo em favor do Maranhão, lutando, isso sim, para quebrar limitações estruturais bisseculares da economia maranhense. É crime, isso, sem chance de absolvição? É pecado mortal? Sua biografia está feita e bem feita. Nada nem ninguém poderá mais reescrevê-la.
A política não deveria constituir motivo suficiente para se confundir disputas corriqueiras do jogo democrático, como acontece em todo o mundo, com um vale-tudo que acaba atingindo nossas próprias tradições de cordialidade e civilidade. Não podemos permitir que as novas gerações sejam aculturadas num ambiente desse tipo. Elas precisam ter referências históricas – a trajetória de Sarney na política e na literatura é uma delas –, e culturais a lhes guiar os passos pela vida. Só assim poderemos ter certeza de serem nossos problemas de hoje, apenas assunto de historiadores no futuro.

13 de novembro de 2005

Gato por Lebre

Jornal O Estado do Maranhão 
Nos velhos tempos, o Partido dos Trabalhadores desejava ser diferente. Ele teria virtudes ausentes nos outros e estes teriam defeitos dos quais ele não padeceria. E assim se passaram 25 anos. Durante esse tempo se ouvia sobre os seus adversários a acusação de que eram corruptos e não faziam o necessário para tirar o povo da miséria porque lhes faltava “vontade política”, não uma vontade qualquer, como a insinuar nos partidos “burgueses” a existência de outra, a de desviar dinheiro público, e como se a resolução dos problemas nacionais dependesse só dessa vontade.
Para quem se dizia socialista ou marxista achar que apenas tal predicado dos dirigentes resolve os problemas de um país revela um idealismo filosófico – idealismo não no sentido comum referente a pessoas desprendidas, indiferentes à riqueza e de nobres ideais, pois já se sabe não ser esse o caso dos petistas – muito distante das teses materialistas nas quais a sociologia desse pessoal supostamente se funda. Falo do idealismo que atribui primazia às idéias e não à realidade, na sua explicação das ações humanas.
Aliás, esse idealismo coloca em dúvida a possibilidade de conhecimento da própria realidade, servindo tal idéia, parece, à esperança de certo grupo do PT de nunca se conhecer a origem do dinheiro usado na compra de alguns deputados, operação executada pelo tesoureiro do partido, em benefício da aprovação de projetos de interesse do governo Lula, e apelidada de mensalão pelo ex-deputado Roberto Jefferson.
Seja como for – idealista ou realista – o PT sempre repeliu qualquer identificação moral com o resto da turma e disso se orgulhava. A estrela vermelha na lapela dos militantes era uma forma de afirmar a diferença, de anunciar uma nova sociedade, um admirável mundo novo, quando afinal o poder fosse alcançado, como principiava a acontecer, pela conquista de várias prefeituras ricas de São Paulo e de diversos Estados. Aí veio a conquista do poder federal.
A nova administração petista adotou de forma correta, mas contrariando expectativa de seus próprios simpatizantes, a rígida disciplina fiscal e monetária da política econômica anterior, antes execrada como neoliberal. Pelo menos acertou em alguma coisa, pois quem estuda história econômica nunca viu a irresponsabilidade nesse campo produzir alguma coisa que não altas taxas de inflação, prejudicial em especial aos pobres. No entanto, gente da própria administração, a ministra da Casa Civil Dilma Rousseff, ataca a política econômica, único e importante sucesso do governo até agora.
Na área social, onde todos, até seus adversários, esperavam bons resultados, o fracasso do Fome Zero, anunciado como redentor dos pobres do Brasil, exemplifica muito bem a decepção dos brasileiros. Se continua a existir, ninguém sabe a quantas anda. A fome de que falava era outra.
Por fim veio o mensalão. Considerando a história do PT não importa a origem do dinheiro, embora não seja assim do ponto de vista criminal na hipótese de a fonte do dinheiro mensaleiro ser pública. Importa que se tornou igual aos outros, status, por sinal, reclamado hoje pelos seus filiados. “Nós cometemos crimes, mas vocês também o fizeram”. Antes, queriam ser diferentes, agora, iguais. Conseguiram.
Está aí a razão principal das insistentes críticas ao lulo-petismo, o comportamento de camaleão. Não se condena apenas o terem feito como a maioria. O PT tem razão em dizer que muitos fazem. Nem se trata de implicância ideológica ou moralismo pequeno-burguês, para usar o jargão esquerdista. Se ao menos usassem meios ilícitos em favor do bem público muitos estariam dispostos a fechar os olhos e conceder ao partido o benefício da dúvida. O fato é que ninguém gosta de comprar gato por lebre. Ou de ver alguém comprando.

6 de novembro de 2005

A Língua

Jornal O Estado do Maranhão  
Em 1954, quando eu tinha seis anos de idade, já me interessava por futebol. Lembro bem da Copa do Mundo daquele ano, na Suíça. Lá o Brasil perdeu, em partida batizada como A Batalha de Berna pela imprensa, para a Hungria, o time favorito, que foi derrotado na partida final pela Alemanha Ocidental, resultado classificado então como zebra pelos entendidos. Como os de hoje, eles viviam de palpites errados sobre os prováveis vencedores.
A derrota brasileira em 1950 no Maracanã para o Uruguai, recente como era, ainda gerava muitas discussões. Criou-se um clima de tal pessimismo e tanta autoflagelação nacional que Nélson Rodrigues disse depois que quando a Seleção viajou para a disputa na Suécia em 1958 o exílio da equipe acabara. Ninguém acreditava na nossa equipe. No entanto, as estatísticas forneciam razões para otimismo. Em 1938 ficamos em terceiro lugar e foi nosso o artilheiro, Leônidas da Silva; em 1950, fomos vice-campeões. (Em 1942 e 1946 o torneio não foi realizado por causa da Segunda Guerra).
Eu ouvia os comentários dos mais velhos sobre a tragédia de 50 e sobre o fantástico time húngaro de 54, invicto havia quatro anos, sem saber o que pensar. Algum dia seríamos campeões? A resposta veio rápida, com a conquista da Copa logo em 1958. Ouvíamos os jogos pelo rádio, em ondas curtas cheia de ruídos, dificultando a audição, muito diferente de agora com o som limpo das transmissões radiofônicas. Lembro de meu pai lendo um jornal em 1957 em nossa casa no Monte Castelo e comentando sobre um garoto de 16 anos, um tal Pelé ou Pelê – ele não estava bem certo sobre a pronúncia do nome nem o jornal –, que começava a aparecer como genial no futebol paulista.
Essas lembranças me vieram a propósito de referências da imprensa a projeto de Aldo Rebelo, presidente da Câmara dos Deputados, de barrar o uso de palavras estrangeiras, no português brasileiro, em eventos públicos, meios de comunicação, nomes de produtos e estabelecimentos comerciais. Medida proposta sem sucesso por gramáticos antes. Um, Antônio de Castro Lopes, inventou palavras novas com base no latim e as divulgou no seu livro Neologismos indispensáveis e barbarismos dispensáveis: ludopédio (futebol), ludâmbulo (turista), lucivelo (abajur), cardápio (essa foi uma das poucas incorporados ao léxico).
Nos anos 50 era muito comum o uso de estrangeirismos ingleses no meio futebolístico: goalkeeper (goleiro), back (zagueiro ou ala), free kick (tiro livre), foul (falta), referee (juiz), team (time), driblle (drible), penalty (pênalti) e outros. Ao ler notícias sobre as idéias do deputado lembrei-me da participação brasileira nas Copas dos anos 50.
É inútil o esforço do ilustre membro do Partido Comunista do Brasil. A língua tem dinâmica própria e não se submete a regras artificiais. Em seminário realizado na própria Câmara dos Deputados em 2000, o professor Volnyr Santos, doutor em teoria da literatura e ex-professor da PUCRS, em palestra sobre o tema “Empréstimos lingüísticos: tradição e atualidade”, afirmou: “O que se quer mostrar é que, em relação à língua, lei não funciona. A única lei que funciona na língua é a própria lei lingüística. Por exemplo, a lei do menor esforço. Essa língua vai funcionar porque vai facilitar a comunicação. Agora legislar, de certo modo, definindo o modo como as palavras e a lingüística devam funcionar, isso realmente não funciona”.
Cada língua faz sua própria caminhada, em que muda a sintaxe, recupera arcaísmos e incorpora neologismos, com base na influência de outras, no falar popular e na invenção de seus melhores escritores. A mudança é a regra. A pureza lingüística é uma ilusão. Os donos do idioma são os seus falantes e não os legisladores cujas boas intenções já superlotaram o inferno há muito tempo.

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