28 de dezembro de 2003

Ano Novo, velha esperança

Jornal O Estado do Maranhão 
O Ano Novo traz sempre esperanças de dias melhores do que os decorridos até 31 de dezembro do Ano Velho. Na passagem de um ao outro – em alguns países não-cristãos isso ocorre em datas diversas da nossa –, o que se vê? Votos de prosperidade, de felicidade, de paz e concórdia entre os homens e as nações, de saúde e de melhoria material e espiritual. Em resumo, a velha esperança de realização da harmonia universal ressurge anualmente, nesta época, embora ela nunca se realize, a despeito – ou até por causa, dirão alguns –, do progresso material, cujo maior quinhão vai sempre para os já senhores de muito ou tudo, deixando pouco aos donos de pouco ou nada.
Essa esperança repetida é expressão da antiga e frágil crença de que, se todas as pessoas de boa vontade, do qual poucos estariam excluídos, e somente por vontade própria ou como conseqüência de atos pouco recomendáveis, de repente colocassem em prática as belas intenções expressas no fim do ano, tudo seria mais fácil, o mundo se transformaria e a felicidade seria moeda corrente na sociedade terrena. Assim, talvez, não precisassem eles da sociedade celestial do após-vida.
Qual será a razão, então, de tal paraíso terrestre nunca se materializar? a causa da frustração de tão nobres e sinceros sentimentos?
A verdade é esta: mais fácil é pregar do que praticar as exortações da pregação. Não porque o pregador queira enganar os fiéis deliberadamente. Ele, como os demais seres humanos, seguidores fiéis de sua própria natureza, é governado por seus interesses e paixões. Por isso, “mente alguma jamais foi tão virtuosa quanto a língua do pregador”.
No seu excelente livro Mercado das crenças: filosofia econômica e mudança social, Eduardo Giannetti da Fonseca dá Sêneca, o Filósofo, como exemplo de que as opiniões manifestadas pelas pessoas podem ter pouca ou nenhuma relação com seu comportamento no dia-a-dia. Esse romano estóico, nascido na Espanha, era filho de outro Sêneca, o Antigo, e tinha um irmão, M. Aneu Novato, procônsul na Acaia, a quem levaram o apóstolo Paulo com o fim de ser julgado.
Sêneca dizia, em De tranquilitate animi (Da paz de espírito), obra cheia de conselhos sobre os problemas deste mundo, dados com vista ao alcance da felicidade em meio às vicissitudes da vida, que “a riqueza é a fonte mais fértil de tristezas humanas”. Pois esse filósofo de tão sábios juízos, irmão do julgador de um apóstolo de Cristo, questor, orador forense e senador, invejado e quase condenado à morte por Calígula, veio a ser uma das pessoas mais ricas de Roma, mas somente após tornar-se preceptor de Nero e regente do Império Romano.
Além disso, fechou os olhos aos assassinatos de Britânico e Cláudio, filho e pai, este último antecessor imediato e padrasto de Nero, e da mãe deste, Agripina, crimes, todos eles, ordenados pelo próprio Nero. Como dizia o duque de la Rochefoucauld, também citado por Fonseca, “as paixões são os únicos oradores que sempre convencem” e “estamos muito longe de perceber tudo que nossas paixões nos levam a fazer”.
Essa herança comum aos humanos e animais, essa ditadura dos instintos que os levam a ser o lobo do próprio homem, a primeiro preservar-se, para só depois pensar no bem universal, está, penso eu, na origem de todos os conflitos desde tempos imemoriais. Em verdade, a história tem sido, e continuará a ser, a constante dominação do mais fraco pelo mais fortes, como dizia Marx. Não importam outras explicações que os filósofos sejam capazes de dar para esses conflitos, que não essa, baseada nessa característica inerente a todos nós.
Isso tudo não significa que não se possa ter a esperança de dias melhores para a humanidade cuja aventura civilizatória tem sido exatamente a de, se não eliminar, pelo menos controlar aqueles instintos voltados ameaçadoramente contra nossos semelhantes. Não será em vão, portanto, desejar a todos um feliz Ano Novo.

21 de dezembro de 2003

En defesa de Papai Noel

Jornal O Estado do Maranhão 
Papai Noel, como se sabe, não distribui presentes no Natal aleatoriamente. O bom velhinho obedece a um critério bem objetivo, usado há muito tempo, desde o começo de sua tarefa de Hércules, de andar pelo mundo todo na véspera do dia do nascimento de Jesus Cristo: a crianças ricas, presentes ricos; a remediadas, remediados; a pobres, pobres. Nada mais prudente. Com a sabedoria acumulada durante esses anos todos de seu meritório trabalho, ele percebeu rapidamente as dificuldades de dar presentes iguais a todas as crianças.
Oferecer os mais caros a todo mundo colocaria um peso excessivo em seu orçamento, limitado como todos os orçamentos. A saída, do ponto de vista de seus parcos recursos, que o governo da Lapônia, onde ele mora, anda devorando com altos impostos, seria ele dar presentes que tivessem um preço médio entre os mais caros e os mais baratos. Mas, na qualidade de um profundo conhecedor da natureza humana, ele deve ter visto logo os problemas que a adoção de tal critério poderia criar.
Os ricos reclamariam imediatamente porque, como é natural, esperariam mimos compatíveis com sua inquestionável importância social, quem sabe um desses brinquedos modernos, com todas as novidades da eletrônica; ou uma viagem à Euro Disney, (com a xenofobia americana de Bush, atualmente, seria mais difícil ir ao Disneworld). Mas, que nada! Estariam, recebendo coisas muito mais banais, que a maioria das crianças têm. Nada de fazer inveja a ninguém. A insatisfação desse pessoal seria fonte certa de agitação e revolta, nem sei se das crianças, mas de seus pais, preocupados com o bem estar espiritual de seus filhos. Ninguém poderia garantir, nessas circunstâncias, a estabilidade política das nações e dos povos.
Os pobres, pobres coitados, ficariam inicialmente satisfeitos e deslumbrados. Quantos deles sequer sonhariam em ganhar presentes como aqueles que os outros rejeitariam? Uma viagem ao Beach Park em Fortaleza já seria muito. Um aparelho para jogos eletrônicos, dos modelos mais simples, estaria ótimo. Até um caminhãozinho de madeira agradaria. Mas, eles talvez fossem mais perigosos ainda do que os ricos com respeito à tranqüilidade da sociedade. Depois de experimentarem o gostinho do bem-bom, ganhando presentes completamente inesperados, não deixariam de querer mais e mais, esses eternos insatisfeitos, sempre querendo o que não podem ter! Daí a uma revolução anarquista seria um curtíssimo passo. O melhor, mesmo, seria não agitar as massas. Poderia desandar tudo.
Os remediados, aqueles do meio, imprensados entre os de cima e os de baixo, aparentemente indiferentes a tudo, ficariam ressentidos profundamente. Eternas incógnitas, aparentemente quietos pelos cantos, eles nunca sabem se são ricos ou pobres. Pela manhã ficariam sempre agitados e revoltados como os ricos e, pela tarde, insaciáveis como os pobres. Dupla fonte de problemas.
Está aí, portanto, a explicação desse esse antigo procedimento de Papai Noel, de trazer presentes caros para os ricos e baratos para os pobres, quando traz algum. Bem avaliada, é uma atitude bastante tranqüilizadora para a comunidade.
Não faz sentido, portanto, é uma injustiça, os comentários que por vezes tenho ouvido, de ele não contribuir em nada na luta pela diminuição das desigualdades e promoção da tranqüilidade social, em nosso país e em outros lugares pelo mundo todo, de desviar a atenção das crianças e seus pais para os verdadeiros problemas da humanidade, de impedir a realização da justiça social. Em um exame mais profundo, acabamos de descobrir que seu papel é exatamente o contrário. Adotando seu critério milenar, originário dos civilizados povos do Norte, ele contribui para evitar a desordem, a intranqüilidade, a instabilidade política, em suma o caos na sociedade.
Seja como for, aquela figura simpática ainda estará muito tempo por aí enchendo a imaginação de muitas crianças de boas lembranças, como as que tenho de minha infância nesta época do ano.
Feliz Natal a todos!

14 de dezembro de 2003

Luz no túnel!

Jornal O Estado do Maranhão
Foram avisar o presidente de que o Ministério do Exterior estava sem luz.
– Sem luz? Como sem luz? Isso é alguma piada de mau gosto? Vocês é que são uns apagados. Em todas as minhas viagens ao exterior ninguém me dá mais luz do que aqueles competentes companheiros do Ministério. Até agora, não senti falta de absolutamente nada nesta minha volta pelo mundo, principalmente de luz. Como é que eles podem estar sem luz, umas pessoas tão inteligentes como elas?
– Desculpe, presidente. Nós não estamos falando no sentido metafórico. O caso é que cortaram...
– Não me venham com essa conversa fiada. Vocês ficam aí falando de falta de luz, quando todo mundo conhece o brilho do Ministério do Exterior. Como pode faltar luz num órgão tão brilhante? E tem mais. Eu já não agüento mais essa história de metáfora. Toda semana aquele pessoal da televisão me torra a paciência com essa gracinha. Agora, vocês me aparecem com essa. Sim senhor, metáfora... Aliás, hoje em dia metáfora é como cargo no governo: todo mundo quer ter uma. Ah, esqueçam essa metáfora.
– Presidente, com sua licença, mas não é sobre esse tipo de luz que estamos falando, é...
– É o quê? Desembucha, companheiro ajudante-de-ordem.
– O problema aconteceu por causa do aperto orçamentário que o...
– Quer dizer que a culpa é do Falofe, quer dizer Falofe, não é? Eu já sabia. Tudo que vocês pensam que é ruim, é culpa dele. Quantas vezes eu já disse que o presidente da República sou eu e não Fa..., quer dizer, o ministro da Fazenda? Se vocês e a imprensa não têm coragem de me criticar diretamente por causa de meu cargo, eu tiro esta faixa presidencial e nós vamos sair no braço já, já. Com minha bursite no ombro esquerdista, isto é, esquerdo e tudo.
– Calma, excelência...
– Eu vou dizer uma coisa. Vocês não sabem de nada mesmo. O Ministério do Exterior é como o sol: tem luz própria, não precisa da luz de ninguém. Ouviram bem? De ninguém.
– Se o senhor nos autorizar, nós podemos...
– Não autorizo nada. O que eu tinha de autorizar, já autorizei. Ou vocês não conhecem o programa Luz para Todos que eu acabei de criar? Vocês não lêem jornal? Se lêem, então essa minha equipe da comunicação não está funcionando. E eu que pensei que os meus marqueteiros eram brilhantes. Nem o pessoal do governo sabe o que estamos fazendo!
– Claro que a gente sabe, presidente. Faltou vontade política do governo passado para fazer um programa como esse. Daqui pra frente, tudo vai ser diferente. Agora, o negócio é dar a luz para....
– Esperem um pouco. Ninguém vai dar luz coisa nenhuma, desse jeito que vocês estão pensando. Nós precisamos é reduzir a nossa taxa de natalidade, não incentivar o aumento da população. Aliás, esse nosso programa foi feito pra isso mesmo. Com muita luz por todo este imenso país a população não vai crescer rápido. Ou vocês não se lembram do que aconteceu no dia do grande apagão em Nova York? Nove meses depois a taxa de natalidade da cidade foi lá pra cima.
– Presidente, voltando à luz...
– Quem disse pra vocês que a gente estava às escuras? Que insinuação é essa? A gente sabe muito bem o que a gente quer fazer com este país. Mas não vou revelar, pra oposição não atrapalhar nossos planos. Vejam bem, é só uma questão de tempo até os resultados aparecerem. Esse pessimismo é que acaba com este país. Assim não pode, assim não dá.
– Excelência, desculpe, mas “assim não pode, assim não dá” é um bordão do outro presidente. Mas, com sua permissão, acabamos de receber uma mensagem de nossa capital dizendo que o problema está sendo resolvido. Logo, logo, a situação estará mais clara. Existe uma luz no fim do túnel!
– Eu não acredito. Lá vêm vocês de novo. Não tem jeito mesmo. Por que no fim e não no começo desse túnel aí?
PS: No dia 11/12, quando terminei de escrever esta crônica, recebi a notícia de minha eleição para a Academia Maranhense de Letras. Compartilho essa alegria com os leitores.

7 de dezembro de 2003

Histórias do Presidente

Jornal O Estado do Maranhão 
O Tribunal de Justiça do Estado acaba de eleger por unanimidade um novo presidente. Digo mal, aliás, ao chamar de eleição a decisão. Houve, em essência, uma aclamação das mais justas.
 A implantação pelo príncipe-regente de Portugal, d. João, do Tribunal do Maranhão, com o nome de Tribunal da Relação, em 1813, foi uma conseqüência natural da vinda da Corte lusitana para a América portuguesa. A existência de uma corte desse nível aqui não é de admirar, pela nossa importância econômica na época. Daquele 1813 até hoje, 190 anos passados, esta é a primeira vez que seu presidente é escolhido dessa forma. É um fato a falar bem tanto do órgão quanto do escolhido.
Do Tribunal, porque mostra uma capacidade de união incomum no comum das instituições, que são feitas por pessoas com todos seus defeitos e virtudes. Neste caso, elas tomam decisões falíveis, sim, mas, com base na honesta convicção de cada um de seus componentes sobre os verdadeiros interesses da sociedade. Intui-se no TJ o desejo de trabalhar unido em benefício da sociedade e não apenas da corporação judiciária. Por sinal, sendo uma instituição de conciliação da sociedade por sua natureza, não é de surpreender o exemplo dado internamente.
Do presidente eleito, porque revela sua capacidade de conciliar a instituição e, também, toda a magistratura – pois, juntos, esta e o Tribunal, formam um só organismo –, em volta de interesses sociais que, a despeito de suscitarem interpretações conflitantes, são aceitos em princípio por todos, por derivarem de valores consagrados universalmente: direito de viver, saciar a fome e participar da vida econômica, social e política da sociedade. Em suma, direito de ter liberdades substantivas.
Mas, quem é esse novo dirigente? O Mílson Coutinho que eu conheço é um homem de origem econômicas modestas que, com energia, disciplina e força de vontade raras, tornou-se o maior e mais produtivo historiador do Maranhão, como o provam os livros que vem sistematicamente publicando. Ele direcionou parte de sua obra justamente ao Judiciário. Publicou Pesquisa para a história judiciária de Coroatá (1978), A presença do Maranhão no Supremo Tribunal (1979), Apontamentos para a história judiciária do Maranhão (1979), História do Tribunal de Justiça do Maranhão (1982), Memória dos 180 anos do Tribunal de Justiça – 1813/193 (1993). Afora esses, tem vários a respeito da história do Maranhão, entre os quais A Revolta de Bequimão (1984), o mais completo estudo desse episódio de nossa história, felizmente em processo de reedição pelo Instituto GEIA.
Um das características dele mais notáveis, para mim, é um certo modo de quase esconder sua imensa cultura. Quem por acaso escutar ele falar sobre seus próprios conhecimentos como se contassem pouco e não tiver a oportunidade de ouvir ele discorrer com entusiasmo sobre história e direito não se dará conta de sua vasta erudição nesses assuntos. Essa modéstia sincera reflete a segurança de quem tem consciência de sua própria importância intelectual, sabendo, no entanto, sempre haver muito a ser aprendido. O que se vê, muitas vezes, é o contrário: muita pose e nenhuma capacidade.
Não há hoje no Maranhão quem conheça tão bem como ele as 13 mil fichas, e os documentos a que elas se referem, do Catálogo do manuscritos avulsos relativos ao Maranhão existentes no Arquivo Histórico Ultramarino, editado por Jomar Moraes, inestimável fonte de consulta acerca da nossa história. O próximo livro dele, Fidalgos e barões assinalados, mostra bem esse conhecimento.
Esse talento de ir às fontes primárias e delas extrair a melhor síntese sobre o passado, e o nunca perdido entusiasmo de iniciante por seu próprio trabalho de pesquisador, o tornam o excelente historiador que é.
As histórias do presidente – a pessoal e a outra, a da ciência histórica, além do seu saber na área do direito – certamente haverão de ajudá-lo a bem conduzir o Poder que ele passa a presidir. A história irá confirmar esta certeza.

30 de novembro de 2003

Até quando?

Jornal O Estado do Maranhão
Quem já trabalhou na administração pública e teve o encargo de gerir orçamentos conhece as dificuldades de fazer despesas inadiáveis com as receitas produzidas pela sociedade – pois o Estado nada produz e, por conseguinte, não cria tipo algum de riqueza–, que têm de ser aplicadas com máxima eficiência social. Não falo propriamente da inarredável pequenez financeira ante a infinitude das tarefas indispensáveis ao acréscimo de, não digo felicidade, mas de bem-estar material à sociedade. Esse problema só terá solução no dia de um possível juízo final. Ou no momento em que o Sol engolir a Terra, sem juízo nenhum. Falo disto.
Esses dinheiros têm origem em um contrato social pelo qual todos concordam em renunciar a uma parte de suas rendas, sob a forma de impostos e, simultaneamente, em fazer um arranjo institucional pelo qual algumas pessoas são autorizadas a conduzir a aplicação da arrecadação, seguindo regras previamente estabelecidas. Um pressuposto desse acordo é a correta aplicação dos recursos pelos gestores, de tal modo a não haver desperdícios ou desvios.
“Aplicação correta” tem uma conotação econômica, porque desperdícios levam à ineficiência.  No setor privado, este é um assunto de interesse exclusivo do possuidor do dinheiro, à diferença do público. Neste, a boa gestão é do legítimo interesse de todos. Mas, há também, como é óbvio, uma conotação moral, relacionada à possibilidade de apropriação privada de recursos que não pertencem a uma pessoa simplesmente, mas à sociedade.
Desde minha entrada no serviço público em 1968, como um jovem estagiário de um órgão depois transformado, no governo de José Sarney, no Banco de Desenvolvimento do Maranhão, indo eu logo depois para a Secretaria da Fazenda do Estado, que tinha como secretário Jayme Santana, meu colega na antiga Faculdade de Economia, como assessor-chefe o agora deputado Gastão Vieira, como Chefe de Gabinete meu colega do Colégio Marista, Sérgio Santana Costa, e como colegas de Assesoria Gilman Ferreira, Alim Maluf, Edmundo Borges, Arivaldo Castro Júnior, Sálvio Dino e José Nazaré Nunes, desde essa época, eu dizia, houve notáveis progressos nos sistemas de elaboração e execução do orçamento, com o progressivo estabelecimento de mecanismos rigorosos para bem comandar sua utilização.
O dilema administrativo diante do dirigente, então, é o de tentar conciliar a necessidade de controle com a exigência da sociedade de agilidade na aplicação dos recursos. Se o controle for excessivo, as coisas não andam; se for insuficiente, corre-se o risco de má aplicação, pois, como se sabe, a ocasião pode fazer o ladrão, visto como da tentação ninguém está livre.
Pois ao tentar diariamente o difícil equilíbrio sobre essa fina corda, sabendo não haver lado bom para cair, vemos muitas vezes nossos esforços frustrarem-se por culpa de algumas empresas. Dou um exemplo de algo que vem ocorrendo freqüentemente com as contas de telefone da Gerência do Desenvolvimento da Indústria, Comércio e Turismo – GEDICT.
Um dos instrumentos orçamentários modernos é a ordem bancária, emitida pelos órgãos públicos com o fim de concluírem a liquidação de suas despesas. Ela é como um cheque de um correntista comum. É dinheiro. Neste exemplo, a ordem é dada todo mês pela GEDICT, na data certa, a um determinado banco, que credita a TELEMAR. Por algum descontrole interno, a empresa não considera o crédito e bloqueia as linhas telefônicas. Ela não têm uma central de apoio ao usuário em São Luís. Para contornar o problema, mesmo ao preço de fazer um trabalho de responsabilidade da empresa, a Gerência envia uma cópia da ordem, imaginem, para o Rio de Janeiro. Ainda assim, o bloqueio não é suspenso durante vários dias, sob as mais variadas e inconvincentes alegações.
Essa injustificável atitude da TELEMAR, de fechar seus postos de atendimento e de maltratar seus usuários, já levou a ANAEEL a aplicar várias multas à empresa, no valor de milhões de reais. Não adiantou nada, parece. Até quando?

23 de novembro de 2003

Guajajaras e internet

Jornal O Estado do Maranhão
Há invenções que admiramos permanentemente, como se tivessem sido criadas há pouco tempo e, portanto, ainda causassem surpresa. O avião é uma delas. Sempre me fascinou a capacidade de andar no meio das nuvens de uma máquina criada pelo homem, mas que, reparando bem, não voa, apenas imita um vôo, nem tem asas como as dos pássaros, porque, diferentemente das do avião, aquelas, as asas de verdade, se movimentam, fazem ondulantes e graciosos movimentos e são movidas a sangue e ar, não a petróleo, o pai de todas as guerras no mundo de hoje, a julgar pela última no Iraque.
O fascínio desse invento reside precisamente nesse prodígio de, com seu peso de muitas toneladas metálicas e brilhantes, conseguir, em seu deslocamento aéreo, dar a impressão de leveza e beleza, presentes em todo equilíbrio instável, como o do equilibrista de corda-bamba sobre um precipício. Está na iminência de sofrer uma queda, mas a evita no momento seguinte. No caso do avião, é a aerodinâmica e a força dos motores empurrando-o para cima e a de gravidade puxando-o para baixo. O resultado é uma legítima clonagem de vôo.
Mas, qual a razão de eu estar falando de invenções e de clonagem? Não sou capaz de inventar coisa alguma nem entendo de clonar gente ou ovelha e, muito menos, sei pilotar aviões, apesar de gostar de viajar neles. É que não consegui ainda achar banal a invenção da internet, a rede mundial de computadores, ou web, que significa teia em inglês, e não rede, a despeito de usá-la diariamente. Por uma curiosa associação de idéias, sua invenção e a do objeto voador caminham juntas na minha mente como exemplo do ditado: “A necessidade é a mãe da engenhosidade”. Ao pensar em uma, inevitavelmente lembro da outra e acabo falando das duas. E eu vinha pensando ultimamente exatamente sobre o papel social das invenções e a importância da internet como meio de comunicação hoje em dia.
Como ela surgiu, afinal? Por causa da competição entre os Estados Unidos e a União Soviética, os americanos criaram nos anos 60 a Agência de Projetos de Investigação Avançada. No final da década, o órgão implantou uma rede experimental de computadores chamada Arpanet, com a utilização de uma tecnologia do packet switching, ou troca de pacotes, para o transporte de informação. Se, durante um ataque militar, parte da teia fosse destruída, ela seria ainda capaz de transmitir informações por meio dos computadores restantes devido às características de sua arquitetura e à tecnologia em uso.
Inicialmente, apenas instituições militares e de pesquisa científica faziam parte do sistema. Ele foi crescendo e passou a incluir empresas e suas próprias redes. Depois, expandiu-se até o usuário doméstico, principalmente após a adoção da interface gráfica que permitiu a visualização das chamadas páginas web. Formou-se, assim, uma grande rede de redes, como a de hoje.
Dizia-se, quando o uso do telefone para ligações a longa distância difundiu-se, que as cartas tradicionais desapareceriam. Com a internet, elas voltariam através do correio eletrônico. Nada disso aconteceu. Houve, sim, neste último caso, a proliferação de meros bilhetes, escritos, em geral, em uma língua difícil de identificar. O que eu quero dizer é que a tecnologia toma, muitas vezes, rumos inesperados, levada pelo uso social dela, e se revela frágil em alguns aspectos.
Agora mesmo, em Santa Inês, no Maranhão, os índios guajajaras, cansados de esperar o cumprimento das promessas do homem branco, de pagamento de uma indenização, resolveram, escaldados por 500 anos de história de compromissos não cumpridos e bem informados pela própria internet, cortar os cabos de fibra ótica que servem à teia, instalados em suas terra. A maravilha tecnológica deixou de funcionar em vários Estados.
Não haverá aí o simbolismo de que a tecnologia, não importando seu grau de sofisticação, deverá estar sempre subordinada às relações sociais, devendo levar em consideração o interesse de todos, sobretudo dos grupos mais vulneráveis?

16 de novembro de 2003

Burocratite aguda

Jornal O Estado do Maranhão 
No Brasil, as pessoas de mais de 90 anos são odiadas pela burocracia estatal, que adora fazer cadastros, remédio infalível para todas as fraudes. Essas seriam as primeiras hipóteses levantadas por um antropólogo das Maldivas, vamos supor, em sua pioneira visita ao exótico e distante Brasil, na semana passada. Ele haveria de tomar notas para um próximo livro sobre nossa cultura, abordando o tratamento desrespeitoso, arrogante e insensível dispensado pelos nativos a seus idosos e bem poderia tirar suas conclusões desabonadoras para o país com base na desastrada tentativa do INSS, presenciada por ele, de obrigar os anciãos a comparecer aos postos do órgão, com o fim de fazer mais um recadastramento, destinado, supostamente, a combater a roubalheira no sistema de pagamento de benefícios previdenciários.
O caso é este. Um bando de espertalhões, aproveitando-se da impiedosa ineficiência do aparato burocrático estatal, tentam assaltar o erário permanentemente, seguindo uma velha tradição. Muitas vezes, têm sucesso, aproveitando-se de falhas nos próprios sistemas informatizados do INSS. Mortos, alguns aposentados e pensionistas continuam a ser pagos como se vivos fossem. São como mortos-vivos fazendo sobreviver os muito vivos.
A solução para o problema? Suspender o pagamento daqueles com mais de 90 anos, sem nenhum aviso prévio, e obrigá-los a comparecer a uma agência previdenciária a fim de, a bem dizer, provarem sua vivacidade, diferente, claro, da dos fraudadores, já bem comprovada. Seria essa uma forma fácil de desatar o nó, mas apenas do ponto de vista dos burocratas. Vai ver, eles tinham o plano secreto de acabar com o déficit da previdência pela eliminação de beneficiários idosos, com a arma da imposição a eles de um esforço acima de suas aptidões físicas.
Se o governo suspeita de alguma coisa, produza então a indispensável prova do crime. Ninguém tem de mostrar, por conta da fraude cometida por outros, que está vivo, embora ameaçado de morte por essas medidas humilhantes. É do INSS a obrigação de comprovar que vivaldos estão recebendo pelos mortos. Se o sistema de informações sobre óbito não funciona ou funciona mal, a quem cabe corrigi-lo? Não, certamente, ao legítimo e honesto beneficiário sem culpa nenhuma.
 O Ministro da Previdência, Ricardo Berzoini, em entrevista logo depois do início da grita contra a medida infeliz, demonstrou um insensibilidade raramente vista, mesmo entre os mais duros corações burocráticos. Não iria se desculpar de nada, mostrando, ainda, uma fé inabalável em um computador de última geração, presumivelmente capaz de resolver qualquer dificuldade, como se computadores pudessem, sozinhos, fabricar soluções. “Estou convicto de que o combate à fraude vai exigir um grau de sacrifício de todos”, disse ele. “Todos”, aí, só pode significar “todos os que não fraudaram coisa alguma”. Talvez o pecado deles seja o de teimarem em viver muito.
Ao ouvir os gritos de “fora Berzoini”, e sob ameaça do Ministério Público, resolveu seguir seu instinto de sobrevivência e pedir desculpas pela trapalhada. No entanto, conforme declarações do diretor de benefícios do INSS, nem o ministro nem seus assessores pensaram nos transtornos que causaram: “A divulgação prévia acabaria levando às nossas agências muito mais do que os 105 mil beneficiários”. Logo, a solução brilhante seria fazer tudo sorrateiramente. Dessa forma, a procura aos postos seria grande o suficiente para causar contratempos aos usuários, mas não aos burocratas.
Disse o ministro, também, que um número pequeno, tão-só, de pessoas teria sido afetado, como se criar problemas para apenas uma delas, especialmente as mais velhas, fosse pouco.
A maior ironia desse lamentável episódio está na recente aprovação, por unanimidade, no Congresso Nacional, do Estatuto do Idoso e sua recente sanção pelo presidente Lula. Irá tornar-se mais uma dessas leis brasileiras que não pegam? A julgar por esse surto de burocratite aguda, a resposta é afirmativa.

9 de novembro de 2003

Rachel

Jornal O Estado do Maranhão
Um dia, os médicos descobrem na adolescente de 19 anos uma doença pulmonar. A mãe, preocupada como todas as boas mães, obriga a filha a ir para a cama às nove horas da noite. O que fazer, se o sono não chega tão cedo e não há luz elétrica na casa de campo da família? As chamas e as sombras dançarinas do lampião aceso a noite inteira bem poderiam libertar esses fantasmas que enchem a imaginação dos jovens e se escondem durante o dia de sol tão brilhante, como o daquela terra seca, quase tão carente de água como estivera em 1915. Mas, nem os fantasmas aparecem nem a moça pensa neles. Pensa, sim, em escrever um livro, falando da estiagem de quinze anos antes, que se revelaria logo, logo, predestinado, pois os livros, como as pessoas também têm sua história e seu destino.
Deita-se de bruços, pega um lápis e um caderno, desses pautados, e começa, aproveitando-se de sua pouca experiência de jornalista precoce, estreante em jornal ao 16 anos, mas valendo-se, também, de suas inúmeras leituras, a escrever O quinze, romance publicado no Ceará em 1930, um marco em nossas letras, de instantâneo sucesso no Sul, mas não em sua terra natal. Ela diria, muitos anos depois, sentir-se perseguida por esse “livrinho”, ao qual tinha, confessava, uma antipatia mortal.
Mas, o “livrinho”, veio a ser considerado fundador do ciclo regionalista do Nordeste na literatura brasileira, ao lado das obras de outros grandes escritores da região. Destes, distinguia-se Rachel, como observou com acerto Carlos Heitor Cony, que repetiu recentemente ser ela a “madrinha de todos os que escrevem neste país”, por “uma certa penumbra machadiana”, numa referência ao seu estilo verdadeiramente moderno, de aparência natural, mas resultante de grande domínio técnico, capaz de manter a emoção sob controle, enxuto, sóbrio, sem excessos romanescos e despojado de arabescos e firulas, muitas vezes meros disfarces para a falta de assunto. Ela mesma disse, em entrevista aos Cadernos de Literatura Brasileira, do Instituto Moreira Salles, que de vez em quando se precisa voltar a Machado.
O quinze teve a saudação entusiasmada da intelectualidade da época. “Não é o primeiro livro, decerto, que trata do assunto [a seca]; porém em nenhum outro encontrei tanta emoção, tão pungente e amarga tristeza”, disse Augusto Frederico Schmidt, pioneiro no reconhecimento do valor da escritora, no seu jornal As Novidades Literárias, Artísticas e Científicas.
Depois de sua estréia no romance, Rachel continuou a escrever crônicas, atividade mantida por toda a vida. Dizia sentir-se mais jornalista, sua verdadeira profissão, segundo ela, do que ficcionista. Fica-me a impressão, de ter sido romancista apesar de si mesma, coagida por seu imenso talento, que de tempos em tempos lhe arrancava romances, como João Miguel (1932), Caminho de pedras (1937), As três Marias (1939), Dôra, Doralina (1975), Memorial de Maria Moura (1992). Escreveu ainda para teatro.
Uma das características mais evidentes de sua obra está na completa ausência de maniqueísmo. No chamado romance social, geralmente ocorre uma separação bem nítida entre, de um lado, os pobres e bons, e, de outro, os ricos e maus, como na primeira fase de Jorge Amado. Isso não se dá nos romances da cearense desde o início. Foi essa qualidade, por sinal, fonte de sua recusa em aceitar a fórmula feita do realismo socialista, com seus heróis proletários perfeitos, mas inverossímeis, e seus vilões capitalistas prenhes de todos os males morais do mundo, que provocou o rompimento dela com o Partido Comunista.
 Essa grande escritora acaba de morrer. Ela não acreditava em Deus, no gênero humano e na eficácia da literatura em transformar as pessoas. Produziu com essas descrenças uma obra profundamente humanizante. Mas, é justamente por não acreditar em todas essas coisas que se pode perceber a literatura como a possibilidade de salvar-nos da falta de sentido de tudo.
Será exagero de ingênuo esta crença permanente no poder incorpóreo da palavra?

2 de novembro de 2003

A soja transgênica

Jornal O Estado do Maranhão 
Quem estuda os problemas de desenvolvimento econômico percebe a dificuldade de achar-se uma explicação com validade universal para o subdesenvolvimento. A multiplicidade de fatores envolvidos no seu entendimento tem levado os estudiosos a enfatizar ora um ora outro aspecto da questão. Assim, o não especialista fica confuso, sem saber qual o melhor remédio para o atraso relativo dos países subdesenvolvidos.
Cientistas de várias áreas têm se juntado ultimamente aos economistas nessa tarefa explicativa. Um exemplo desse bem-vindo comportamento está no livro Armas, germes e aço, de um biólogo evolucionista, Jared Diamond, que faz uma interessante análise de longo prazo sobre o desenvolvimento dos povos. Por esse estudo, vemos que alguns fatores determinantes devem ser considerados. Isso é também verdadeiro no curto prazo. Neste caso, vejo a cultura, em sua reação a inovações, como uma boa explicação do atraso ou avanço econômico.
Em economias capitalistas como a nossa, a inovação em produtos e processos de produção é essencial à acumulação, isto é, à geração de recursos destinados à expansão da capacidade produtiva da economia e dos mercados consumidores em todo o mundo. Criar dificuldades à inovação é diminuir a possibilidade de avançar economicamente.
Contudo, é desse retrocesso que estamos ameaçados. A oposição no Brasil ao cultivo da soja geneticamente modificada, fonte dessa polêmica emocional, mas não emocionante, como a dos dias atuais, mostra bem a falta de sentido da discussão ideológica, com os decorrentes prejuízos para o país. Chega-se a dizer que a agricultura de algumas regiões poderia ser “contaminada” pela soja transgênica. Mas, contaminado por preconceitos está o debate.
Alguns grupos, como o Greenpeace e assemelhados, corretamente, têm alertado os tomadores de decisão sobre o perigo do uso exagerado de agrotóxicos na agricultura. Agora, porém, não querem a adoção dessa tecnologia, que usa quantidades menores desses produtos e reduz custos de produção. Estará a razão de tanta resistência na idéia de que lucro é pecado e a multinacional Monsanto, detentora dos direitos sobre a produção de sementes transgênicas, não deve lucrar com seus investimentos em pesquisa? Seria o capitalismo sem capitalistas e sem lucros, o altruísmo e a filantropia erigidos em princípio de organização da produção, como numa sociedade celestial.
Hernan Chaimovich, diretor do Instituto de Química da USP, da Academia Brasileira de Ciências e do Conselho Internacional pela Ciência – CSU, publicou há poucos dias um artigo na Folha de S. Paulo. Nele faz ele referência ao Relatório sobre Plantas Transgênicas na Agricultura, elaborado pela Royal Society, de Londres, as academias de ciências do Brasil, China, Estados Unidos, Índia, México e a Academia de Ciências do Terceiro Mundo. Com base nesse documento, Hernan diz: “alimentos produzidos por meio de tecnologias OGM [Organismos Geneticamente Modificados] podem ser mais nutritivos, estáveis, quando armazenados e, em princípio, capazes de promover a saúde”.  Outro estudo, do CSU, chegou a conclusões similares.
Se a verdadeira preocupação da oposição é ambiental, que se atenda o princípio da precaução e se façam os estudos necessários, antes do licenciamento da produção. Não se criem, porém, obstáculos como esse proposto agora, estabelecendo uma estrutura decisória sobre o tema tão confusa que será difícil tomar decisões ou realizar novas pesquisas. É uma forma de ser contra sem ter o ônus de, claramente, dizê-lo.
Daí, resultará, na prática, a proibição fantasiada de prudência. No entanto, a aceitação da soja transgênica nos mercados externos, onde o Brasil terá de competir, a fim de gerar os empregos de que necessita, dependerá dos próprios mercados, bastante exigentes, e não dos burocratas. Mas, preferimos abrir espaço à soja americana e à canadense!
O debate não terminou. O Congresso poderá modificar a proposta enviada pelo Executivo.  O bom-senso ainda poderá ter sua vez.

26 de outubro de 2003

Passo adiante

Jornal O Estado do Maranhão
Tenho feito diversas referências aqui à inflação que feriu nossa sociedade durante anos. A cura tardia dessa doença econômica trouxe dias melhores a milhares de brasileiros. Antes, porém, por falta de defesa contra ela e diferentemente dos ricos, capazes de defenderem-se, os pobres viam seus minúsculos rendimentos desmancharem-se rapidamente no ar, semelhantemente à dissolução, pelo capitalismo, de valores morais e espirituais, apontada pelos jovens Marx e Engels: “Dissolvem-se todas as relações sociais antigas e cristalizadas, com seu cortejo de concepções e de idéias secularmente veneradas”.
A verdade, contudo, é esta: há muita coisa a ser feita ainda, apesar do muito que já se fez. O fim da desordem no sistema de preços representou, claro, a eliminação do imposto inflacionário, fonte graciosa, para os governos, do financiamento da farra de gastos de então, com as conseqüências desastrosas bem conhecidas. Ora, em um ambiente econômico não-inflacionário, como o prevalecente no país a partir de 1994, o banimento desse tributo perverso não foi compensado por um sistema tributário que incentivasse a formação de poupança no Brasil e criasse, por conseqüência, a possibilidade do equilíbrio orçamentário do governo pelo financiamento interno. Em outras palavras, uma reforma profunda, exigida pelas novas circunstâncias não foi feita. Resultado: a fim de equilibrar suas contas, o governo passou a recorrer cada vez mais ao endividamento externo.
A proposta ora em discussão no Senado propõe prorrogar até 2007 o injusto imposto chamado CPMF bem como a Desvinculação das Receitas da União que permitirá ao governo federal utilizar em outras áreas parte das atuais vinculações orçamentárias da saúde e da educação; unificar a legislação do ICMS e reduzir o número de suas alíquotas a 5, acabando, na prática, com a guerra fiscal entre os Estados; manter tanto os fundos de desenvolvimento regional, adicionando-lhes, porém, um percentual do Orçamento Geral da União, quanto o Fundo de Compensação das Exportações, da forma como foi aprovado na Câmara dos Deputados.
Curiosamente, o texto do relator da reforma fixa o ano de 2007 como de revisão das novas regras, não se sabendo bem por que se deva fazer algo, hoje, com a prévia intenção de reformulá-lo amanhã. Não seria melhor construir alguma coisa mais sólida, que não desmanchasse facilmente?
Muito pouco das mudanças torna as atuais regras mais justas ou mais simples. O setor financeiro, por exemplo, capaz de auferir lucros enormes enquanto os demais setores sofrem profunda recessão, continuará pagando pouco em impostos. Uma sugestão do Ministério da Fazenda, anteriormente aprovada pela Câmara, foi rejeitada pelo relator. Ela previa a incidência sobre o os ganhos dos bancos da maior alíquota da Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido. A simplificação do ICMS será superficial, confirmando a pecha de nossa máquina de arrecadação de ser um dos mais complicados do mundo, com suas exigências burocráticas irracionais e infernais. (Não digo satânicas para não ser também exorcizado pelos que costumam exorcizar Satanás eletronicamente pela televisão).
O professor José Cezar Castanhar, da Fundação Getúlio Vargas, observou o seguinte, ao comentar os resultados de um estudo do Banco Mundial, que nos aponta como um dos países onde há mais barreiras à abertura ou liquidação de empresas: “No Brasil, as exigências burocráticas são empecilhos à atividade empresarial. A dificuldade para abrir uma empresa, a carga tributária elevada e a rigidez das regras trabalhistas sã desestímulos que acabam levando a uma maior informalidade”.
O estudo mostra que a simplificação de procedimentos e a justiça tributária não são apenas questões de racionalidade administrativa ou de eqüidade social. São também, ou principalmente, exigências econômicas. Elas tornam a economia mais eficiente e ajudam a criar empregos e combater a pobreza e a corrupção endêmicas.
Uma reforma nessa linha é o passo adiante a ser dado.

19 de outubro de 2003

Rei morto

Jornal O Estado do Maranhão 
Apresentava-se sempre como rei. Quando cruzávamos com ele pelas ruas do Monte Castelo – pois ele agia como um rei escandinavo, facilmente acessível a seus súditos sem os rapapés da corte, sem trombetas a anunciarem sua passagem, sem escolta ou proteção de espécie alguma, numa atitude de plebeu mais do que de soberano – quando cruzávamos com ele, observávamos seus ternos de um tecido grosso, apesar do calor, infalivelmente folgados e desabotoados, a despeito da majestade dele, os sapatos privados de qualquer graxa e um tanto gastos, as meias e calças largas, estas, porém, um pouco curtas, as mãos nos bolsos e o cinto ligeiramente apertado sobre uma barriga em crescimento com o passar dos anos.
Seria difícil adivinhar quantos anos deveria ter. Entre nós, alguns achavam mesmo que sua idade nunca tinha mudado, desde quando pela primeira vez o tínhamos visto, surpresos, havia alguns anos. Sabíamos, sim, da constância do seu passeio. Ficávamos ali reunidos à noite na pequena praça em frente ao cinema. Dali, podíamos ver quando se aproximava, em sua ronda solitária e digna, tão certa quanto certo era falarmos de nossas peladas de futebol, de namoradas, então dificilmente peladas em qualquer circunstância, da primeira viagem do homem à lua e da próxima ida no fim de semana ao bar Deus é Grande, que depois passou a ser o Bar do Nezinho, a fim de tomarmos – quatro ou cinco de nós – um litro inteiro de rum Montila com uma única e escassa garrafa de coca-cola, porque o dinheiro não dava para mais, e, em seguida, terminarmos a noite em alguma festa, sabe-se lá onde, até tarde, jamais pensando na imensa preocupação de nossas mães pela demora.
Quando nos encontrava, ele se esquecia de seus insondáveis sonhos, parava de repente, olhava-nos com uma certa condescendência real, escolhia um de nós ao acaso e dava uma ordem, com sua voz grave e firme, pronto a calar contestações com seu olhar superior: “Me dá um dinheiro, aí. Eu sou o rei dos homens”.
Era assim, uma das figuras mais populares de São Luís naqueles anos. Todos o conheciam como Rei dos Homens e essa era sua maneira de referir-se a si mesmo. Contudo, seu verdadeiro nome era Ivonaldo. O apelido veio das histórias contadas por ele sobre suas aventuras amorosas. Nelas, feito um potentado oriental, apesar de ser filho de um português, ele possuía todas as mulheres que desejasse, sinal seguro, de qualquer maneira, ainda que somente na imaginação, de ser herdeiro dos feitos amorosos dos lusitanos nestes trópicos.
 Havia outros tipos também muito conhecidos em toda a cidade. Nesse tempo, eles podiam andar pelas ruas, livres do risco de sofrer assaltos ou ser assassinados. Desapareceram todos com o crescimento da cidade e da violência urbana. Retirados das ruas, passaram a ser supostamente amparados por um sistema de saúde que não sei se lhes proporciona uma sobrevivência decente, com exceções, como a do Hospital Nina Rodrigues, dirigido pela doutora Teresa Viveiros.
É quase certo que a mudança não os tornou mais felizes. Mas, é incerto o alcance da felicidade pela cura da mente. Afinal, onde fica o limite entre a insanidade e a sanidade mentais, quando se vê diariamente essas barbaridades cometidas no mundo inteiro pelos fazedores da guerra, que matam em nome da racionalidade do dinheiro, com as mais poderosas armas de destruição dos mais fracos?
Rei dos Homens, e outros como ele, eram inofensivos, engraçados e parte do espírito da cidade, e do nosso dia-a-dia, apesar do drama carregado penosamente por cada um deles. Mas, não tínhamos consciência disto. Não pensávamos na tristeza e no sofrimento de suas famílias e de todos que lhes estavam próximos e os amavam.
Passei muitos anos sem notícias dele. Agora, Dr. Raimundo Viveiros, diretor do Hospital Aldenora Bello, excelente cirurgião, velho amigo de infância, me diz que Rei está morto há três anos. No entanto, o velho ditado “rei morto, rei posto” não se cumpriu, pois ele continua a reinar na imaginação de seus contemporâneos.

5 de outubro de 2003

Brasil, Século XX

Jornal O Estado do Maranhão
O IBGE acaba de publicar as Estatísticas do Século XX, um resumo de informações sobre o Brasil nesses cem anos. Com base nos Censos, nas Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílios, realizadas a partir de 1967, nos Anuários Estatísticos, publicados de 1938 em diante, e em outras pesquisas, o órgão reuniu informações sobre o país.
Durante o século, o nosso crescimento foi um dos maiores do mundo. Ele alcançou uma taxa média de 4,5% ao ano, inferior apenas à de Taiwan, com 5%, e igual à da Coréia. O Produto Interno Bruto – PIB brasileiro foi multiplicado por um fator de 110! Entre 1900 e 1973, tivemos um crescimento médio anual de 4,9%, o maior do mundo. O nosso PIB per capita aumentou doze vezes, de R$ 516 em 1901, para R$ 6.056 em 2000; a mortalidade infantil, o número de mortes de crianças de até um ano de idade dividido por mil crianças nascidas vivas, que era de 162,4 em 1930, caiu a 29,6 em 2000; a expectativa de vida ao nascer, de meros 33,6 anos em 1900, chegou a 68,6 anos, mais do dobro, no final do século. (O pessoal de antigamente vivia menos e não mais, como afirma o senso comum); a inflação, mal terrível, que atinge com mais força os mais pobres, foi controlada.
A despeito de todos esses números positivos, a persistência da extrema concentração de renda continua a embaraçar e perturbar nossa sociedade. O coeficiente de Gini, medida usada universalmente como indicador de desigualdades na distribuição de renda, aumentou de 0,50 para 0,59 entre 1960 e 1999. (Quanto mais próximo de 1 esse índice, maior a concentração). O Brasil só não tem uma desigualdade maior do que a Namíbia, Botsuana, Serra Leoa, República Centro-Africana e Suazilândia, todos nações africanas muito pobres, com economias pequenas. A renda brasileira cresceu. Tornou-se, porém, mais concentrada. Hoje, o conjunto das pessoas que formam o 1% mais rico da população fica com 13% do PIB do Brasil, enquanto o imenso grupo dos 50% mais pobres fica com apenas 13,9%, uma participação no PIB apenas ligeiramente superior à do reduzido número de ricos.
Há poucos dias, falei aqui sobre meu tempo de estudante no Colégio Maranhense, dos Irmãos Maristas. (Equivocadamente, eu chamei de boletim, o que, de fato, todos chamavam de caderneta. Traições da memória!). Eu dizia que, infelizmente, a massificação do ensino havia levado à perda de sua qualidade. Vejo agora o IBGE confirmar minha avaliação.
Houve um formidável aumento na oportunidade de acesso à educação fundamental e à média e uma enorme queda no analfabetismo. Em 1940, o número de alunos matriculados nesses dois níveis de ensino representava 21% do total das pessoas entre 5 e 19 anos. Em 1998, havia subido para 86%. Na população de 7 a 14 anos, em 2000, 94,5% freqüentavam a escola. A taxa de analfabetismo encolheu de 65,1% em 1900, para 13% em 2000. São taxas ainda relativamente altas, ao se considerar o desempenho de outros países que não tiveram as mesmas taxas de crescimento brasileiras. Mas, é um grande avanço.
Mas, o ensino, especialmente a partir dos anos 70, não se adaptou às novas demandas da massificação e viu sua qualidade desabar rapidamente. Chegou-se a uma democratização do acesso à educação baseada exclusivamente na quantidade. É muita gente aprendendo pouco ou nada. Isso representa um formidável obstáculo à superação de nossas desigualdades e ao desenvolvimento econômico. É preciso ter em conta que não existem exemplos históricos de sociedades que tenham melhorado sua qualidade de vida sem um sistema de educação e pesquisa de boa qualidade, adequado ao atendimento das necessidades de crescimento equilibrado.
Uma nação capaz de crescer às altas taxas, como o Brasil o fez no século XX, saberá enfrentar e superar os desafios restantes. Se já viemos de tão longe em muitas áreas, não há razão para não continuarmos a fazê-lo em outras ainda necessitadas de mudanças. Os números mostram o caminho a ser seguido: desconcentração de renda e boa educação. Iremos percorrê-lo até o fim?

28 de setembro de 2003

A escola não entrou

Jornal O Estado do Maranhão
Meu fim-de-semana passado foi culturalmente popular, pois passei boa parte do domingo ouvindo velhos boleros, da época em que todo mundo os ouvia, importados de Cuba, junto com seus bongôs e congas, embora nascidos na Espanha. Nesse tempo, ninguém lhes lançava “acusação” de ser estrangeiro e, portanto, indigno de boa recepção por estas bandas. Ouvi os conhecidos Perfume de Gardênia, Besame Mucho, Contigo em la Distancia, Vereda Tropical e muito mais. Só não ouvi Tristezas, considerado o primeiro bolero, composto pelo mulato cubano Pepe Sánchez, por volta de 1883. Sua letra diz amarguradamente: “'Tristezas me dan tus quejas mujer/ profundo dolor que dudes de mi/ no hay prueba de amor que deje entrever/ cuanto sufro y padezco por ti”.
Depois do bolero, passei a ouvir seus parentes próximos. Soaram, assim, o mambo e o cha-cha-cha. Mais adiante, a lambada, o reggae, o samba, a música sertaneja, o pagode e qualquer outro ritmo popular que se possa imaginar. A sessão durou o dia todo e entrou firme pela noite, sem uma pausa sequer, sem um momento de silêncio, sem um ínfimo descanso.
Lá pelas dez horas da noite, eu comecei a achar que a jornada musical daquele dia de domingo seria até agradável, se não estivesse sendo imposta. O caso é este. Encontro qualidades e defeitos em todo tipo de música, popular ou clássica, e não tenho, ou procuro não ter, preconceito contra nenhuma, sem deixar de ter minhas preferências. Como todo mundo, porém, tenho o direito de ouvir as canções de minha predileção, na hora e da maneira que me dá na telha. No entanto, um maldito bar, a mais de uma quadra de distância de minha casa, parecendo, no entanto, estar logo ali ao lado, obrigava-me, e a todos em um raio de centenas de metros, a ouvir, em altíssimo volume, o que não queríamos naquela hora. Indiferente ele seguia incomodando um monte de gente.
Conto essa história aos leitores porque acredito que milhares de outras pessoas enfrentam situação semelhante, sem qualquer providência por parte dos encarregados de reprimir a poluição sonora nesta cidade. A legislação estadual atribuiu, equivocadamente, deve-se dizer, a função de fazer cumprir a chamada Lei do Silêncio ao órgão estadual de meio ambiente. Fui Secretário do Meio Ambiente do Estado e conheço, portanto, com base na minha própria experiência, as dificuldades de combate às agressões sonoras sofridas diariamente pela população de São Luís. Mas, sei também que o mínimo pode ser feito. A Gerência de Meio Ambiente – GEMA poderia tomar a iniciativa de propor a revogação da atual lei e a aprovação de outra. Esta atribuiria aos municípios a repressão dessa prática desrespeitosa, visto ser esse um assunto municipal, no meu entender. Além disso, ainda que a GEMA conseguisse fazer cumprir a lei em São Luís, uma hipótese pra lá de otimista e irrealista, não conseguiria fazê-lo nos restantes duzentos e dezesseis municípios do Estado.
Este registro poderá talvez um dia, daqui a cinqüenta ou cem anos, ser lido por um catador de curiosidades antigas nos jornais do longínquo ano de 2003. Ele saberá, então, que nossa educação era nenhuma e que, além de agredirmos nossos vizinhos dessa forma, nós também, como é freqüente nestes dias primitivos, buzinávamos a toda hora sem motivo algum, estacionávamos nossos automóveis em cima das calçadas, em filas duplas nas portas das escolas a fim de apanhar nossos queridos filhinhos ou em portas de garagem, não respeitávamos as faixas de pedestres e os semáforos, tomávamos bebidas alcoólicas enquanto dirigíamos, ultrapassávamos constantemente os limites de velocidade nas zonas urbanas e nas estradas, causando um grande número de mortes, e não respeitávamos as regras de nossos condomínios.
É interessante observar, por fim, a situação social desses infratores. São, em sua maioria, pessoas de classe média, supostamente educadas, pelo menos formalmente. Contudo, como dizia minha avó Marcelina: “Eles entraram na escola, mas a escola não entrou neles”.

21 de setembro de 2003

Boletins

Jornal O Estado do Maranhão 
Um dia desses meti-me a desencavar papéis antigos de dentro de pastas antigas. A cor amarelada delas, junto com o acúmulo de poeira que nelas se viam e sentiam, revelaram a marca da passagem de pelo menos uns quarenta anos. Aí, dei com boletins da época em que eu cursava os antigos ginásio e científico no Colégio Maranhense, dos Irmãos Maristas. Pus-me, então, a pensar nessas intromissões repentinas do passado no nosso dia-a-dia como a fonte da incômoda sensação de que o tempo passou apressadamente por nós e não fomos capazes de realizar muitos de nossos projetos de vida.
Não sei se atualmente ainda se usam esses livrinhos nas escolas. Era neles que o irmão titular, como era chamado o responsável por cada turma, registrava não só as notas dos alunos, isto é, os julgamentos objetivos feitos com a utilização de rigorosas provas mensais, como também as avaliações subjetivas, expressas por uma outra nota, dada à chamada “aplicação”.
Eu sempre achei curioso esse sistema porque, para mim, a dura dedicação aos estudos, deveria resultar, com raras exceções, na obtenção de bons resultados nos exames. Parecia-me, desse modo, haver uma redundância nesse procedimento, embora a “aplicação”, no final, não contasse para a aprovação ou reprovação de ninguém.
Mas, uma outra avaliação dos boletins, aquela sobre o comportamento dos alunos, estava na origem de grande nervosismo em todos ao final de todo mês, maior, até, do que a ansiedade criada pelas provas. Um comportamento minimamente fora dos padrões era motivo de chamamento dos pais para uma conversa com o irmão titular, ou até com o próprio diretor geral. Ter os pais convocados era quase a condenação definitiva do pobre coitado do estudante ante os professores e os colegas. Os olhares de reprovação pelos corredores eram inevitáveis depois.
Mas o que eu queria dizer era isto. Apesar dos sobressaltos e das constantes preocupações com resultados, ou até por causa disso, os anos passados naquele colégio foram de inestimável valia para mim. A ênfase na honestidade e no trabalho duro e persistente, a noção de disciplina, a importância conferida ao estudo, a recompensa do mérito, todas esses princípios eram, e ainda são, cultivados diuturnamente pelos maristas que os transmitiam a seus alunos. Serviram-me muito durante minha vida após minha saída do colégio. Se não me ficou a fé, se me restaram dúvidas, não foi culpa deles nem de ninguém. Nem foi falta de terço e missa diários e obrigatórios, talvez em excesso, ambos.
Pelo menos do ponto de vista dos estudantes, o grande defeito do colégio, comum a vários outros daquele tempo, era ser exclusivamente masculino. Hoje, isso mudou para melhor. Quem quisesse paquerar (não tinha ainda o vantajoso ficar) deveria voltar as vistas em direção às meninas do Colégio Santa Teresa, dirigido pelas Irmãs Dorotéias, do Colégio Rosa Castro ou do Liceu Maranhense. Outros tempos, outros costumes.
Os professores tinham sólida formação intelectual e eram de uma dedicação extraordinária à sua missão educativa. Mas, um me parece um bom símbolo de tudo que a Ordem Marista sempre realizou pela educação dos jovens: o irmão Pio Jerônimo Barroso. Eu devo a ele tudo, que não sei se é muito, que aprendi de análise sintática. Ele dedicava a maior parte do tempo das suas aulas de português ao exame, junto com os alunos, de textos dos autores clássicos e modernos da língua, usando um sistema de incentivos e punições, pelo qual aplicava “pontos bons” àqueles capazes de responder corretamente a perguntas sobre a função sintática de palavras tiradas de um daqueles textos, mostrados de improviso, e “pontos maus” no caso oposto, todos somados ou subtraídos da nota de cada um no fim do mês.
A educação perdeu muito de sua qualidade, sufocada pela comercialização sem limites e pela ênfase na quantidade. Recuperá-la deve ser a meta de qualquer governo preocupado com o bem-estar material e espiritual do nosso povo. Sem ela estaremos condenados ao fracasso permanente.

7 de setembro de 2003

Angústias de vampiros

Jornal O Estado do Maranhão  
Há uma coisa que não surpreende mais ninguém no poeta Luís Augusto Cassas. (Uma vez que deram de chamar poetisa de poeta, bem se poderia chamar o poeta de poeto). São as constantes boas surpresas que seus livros nos fazem. Em cada um, como no último, O vampiro da Praia Grande, seu talento originalíssimo nos oferece algo inesperado, com uma poesia que, sendo universal em sua essência, como toda boa poesia, já o é também no alcance de leitores em todo o Brasil, com sua força indiscutível e o reconhecimento da melhor crítica do país.
Esse permanente surpreender me faz lembrar de João Cabral de Melo Neto: “[...] se pode aprender a escrever,/ mas não a escrever certo livro./ Escrever jamais é sabido;/ o que se escreve tem caminhos:/ escrever é sempre estrear-se/ e já não serve o antigo ancinho./Escrever é sempre o inocente/ escrever do primeiro livro./ Quem pode usar da experiência/ numa recaída de tifo?”.
É isso. Cada livro é sempre uma estréia diante da qual nenhuma receita pode servir de guia. Nem Cassas desejaria uma fórmula industrializada, que pudesse servir de poesia de ocasião, sem alma, sem esse enigma perene, transfigurador do sentido corriqueiro e consuetudinário das palavras, destruidor do automatismo do verbo banal do cotidiano e capaz de dizer o inefável. Esse, o mistério da poesia autêntica como a dele!
Esse artesanato, pois esse efeito único da invenção artística é um artesanato verdadeiro, é muito próprio desse poeta, que já está cansado de demonstrar seu conhecimento seguro da poesia moderna. Ele foge, assim equipado, do provincianismo cultural com sua inevitável entropia brochante, para situar-se numa posição de vanguarda, tanto em conteúdo como em técnica poéticas. E, no entanto, ele nunca se precipita no virtuosismo gratuito, jamais redescobre ingenuamente a roda poética. Isso é de louvar, em uma terra onde se produz muito verso e pouca poesia, onde, para ser poetastro, basta denominar-se a si mesmo como poeta. Nisso, Cassas é uma exceção, entre poucas.
Essa vocação da originalidade é antiga. Nos anos setenta, sendo ele colega de um irmão meu, José Ricardo Moreira, no colégio Marista, era capaz de fazer, a pedido de vários colegas aflitos a fim de livrar-se de suas obrigações escolares, redações diferentes umas das outras, mas sobre um único tema. Em cada uma delas não repetia os textos nem deles fazia paráfrases. (Olha o prosador, aí).
Uma vez, no começo dos anos setenta, resolveu tomar umas cervejas em São José de Ribamar. Na volta, em mais um exemplo de originalidade, resolveu, com o incentivo de João Vicente Abreu, com quem estava, atropelar um trator, quase morrendo, ambos. A estrada do acidente, ao contrário do mar para Gonçalves Dias, não seria a natural sepultura dele. Nem mesmo sepultura seria, da qual pudesse surgir como um vampiro imprevisto quase trinta anos depois.
E esse de agora, da Praia Grande, qual seu significado? Tenho lido análises desse livro, contendo referências a pós-modernismo, ironia, paixão, humor, lirismo, marcas distintivas, de fato, da arte de Cassas. Mas, eu vejo mais: o vampiro como a metáfora da perene angústia humana ante a ausência de respostas às perguntas acerca do sentido da vida, em que pesem as explicações filosóficas e religiosas.
Vampiros podem morrer, apenas se determinadas condições especiais forem cumpridas, como, por exemplo, a entrada de uma bala de prata em seu coração. Contudo, deixados em paz, poderiam viver uma eternidade, o que estabelece uma espécie de instável compromisso entre morrer e viver sempre. O vampiro do poeta escreve memórias, vai ao parque, ao dentista, ao circo, compra em liquidação, faz musculação, como um mortal qualquer. Sua ânsia por descobrir a razão de viver e morrer, porém, é de intensidade mil vezes maior do que a nossa, porque, sendo ele quase eterno, pode, a qualquer momento perecer.
Eis, portanto, o que o vampiro poético de Cassas pode simbolizar: nossas indagações e angústias multiplicadas ao infinito!

31 de agosto de 2003

Reforma?

Jornal O Estado do Maranhão 
A proposta de reforma tributária levada pelo Executivo federal ao exame do Congresso Nacional tem um aspecto bastante positivo. É o da simplificação do ICMS, o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços que, atualmente, tem vinte e sete diferentes legislações – cada Estado com a sua – e, veja bem o leitor, quarenta e quatro alíquotas.
Caso sejam aprovadas, as novas regras substituirão esse voraz e injustificado ajuntamento de legislações estaduais por uma lei apenas e cinco alíquotas. Será uma bem-vinda simplificação do sistema tributário, reclamada, há muito tempo, por todos, em vista dos resultados positivos esperados para os Estados e o país.
Mas, existe uma outra característica do projeto cuja implementação poderá resultar, mais uma vez, como sempre ocorre nos momentos de dificuldades de caixa dos governos, no aumento da carga tributária, já altíssima hoje em dia, sem nenhuma garantia de que os recursos assim retirados da economia pelos arrecadadores de impostos sejam aplicados com eficiência pelo setor público. A história tem diversas vezes mostrado, a quem tem olhos para ver, que a riqueza transferida pelas pessoas e pelas empresas ao governo, pois impostos não passam disso, de uma transferência, é mal aplicada muitas vezes.
A particularidade da proposição do Executivo é esta. Com a unificação da legislação, a alíquota do ICMS incidente em cada produto será, obrigatoriamente, única em todo o país, devendo ser estabelecida pelo Senado Federal. As cinco alíquotas, substitutas das atuais quarenta e quatro, incidirão sobre grupos de produtos e a decisão acerca daqueles a serem incluídos em cada grupo será dos Estados.
Não é difícil prever a tendência dos governadores de colocar o maior número possível de produtos nos grupos com as alíquotas mais altas, como uma forma de preservar a arrecadação de seus Estados. Atitude compreensível, ante a má-vontade de Brasília em dividir receitas com eles. Torna-se concreta, assim, a possibilidade de elevação da massa total de impostos do ICMS, não se podendo afirmar, todavia, que ela irá, de fato, ocorrer.
Se a história recente servir de guia, então devemos colocar as barbas de molho. Entre 1993 e 2002, a carga tributária brasileira passou de 25,1% do PIB para 35,9%, sempre sob a justificativa do atendimento de necessidades inadiáveis de várias administrações, sem nunca ocorrer, no entanto, a eliminação dos déficits públicos.
Um exemplo, somente, servirá de alerta contra o pernicioso imediatismo tributário na condução dos problemas governamentais de caixa: a CPMF. Criada, com a boa intenção esperada de um homem de bom conceito, como Adib Jatene, participante ativo da luta pela sua aprovação, ela começou como imposto, em 1993, com o nome de IPMF – Imposto Provisório sobre Movimentação Financeira. A fim de contornar a proibição constitucional de cobrança de impostos no mesmo ano de sua criação, foi transformada em contribuição em 1966.
O argumento inicial a seu favor era o da facilidade de cobrança, sem menção, naturalmente, à sua natureza cumulativa e aos inconvenientes, para o contribuinte, de sua adoção. Argumento, já se vê, sem relação nenhuma com justiça tributária e eficiência econômica, mas tão somente com a idéia de que os fins justificam os meios. Há facilidade, sim, para quem cobra. A dificuldade fica para quem paga. O desejado, porém, é o aumento da arrecadação a todo custo!
Naquela época, dizia-se que a reforma tributária a eliminaria logo. A reforma nem sequer foi feita. A de agora, vai tornar o P de provisória em P de permanente. Nem o apelido muda. A alíquota era de 0,20%. Hoje, é de 0,38%, quase o dobro. As finanças públicas, depois desses anos todos de abuso, ficaram dependentes da droga desse tributo arbitrário. Afinal, ele reforça os cofres do governo com mais de R$ 20 bilhões anualmente, poupando-lhe o trabalho de fazer uma reforma de verdade.
A nova situação será boa para a economia do país ou beneficiará, tão-só, o caixa do governo federal?

24 de agosto de 2003

A força do reggae

Jornal O Estado do Maranhão 
A realização, recentemente, aqui em São Luís, do Reggae Roots Festival é uma reafirmação da força cultural do povo do Maranhão. Hoje, apesar das resistências e preconceitos, já enfraquecidos, porém, como se viu pela presença de muita gente de classe média no evento, o reggae é uma marca maranhense, sem prejuízo de nossas tradições. Estas, ao contrário, se enriquecem com o aporte de elementos importados e processados internamente por nós, com resultados bastante originais.
Grita-se contra o reggae o argumento da suposta impureza de suas origens, por ter nascido na Jamaica. E o futebol moderno? Nascido longe daqui, tornou-se naturalmente uma das mais características manifestações da maneira brasileira de ser. Levando o argumento anti-reggae ao extremo, poderíamos observar que os colonizadores também trouxeram para cá seus valores culturais. Só que os impuseram em parte pela força. No entanto, estão na origem da Atenas Brasileira, como gostamos de ser conhecidos. Quem se lembrará, hoje, de repudiar essas origens exóticas?
Quanto ao reggae, não se pode falar de cópia, mas de um processo espontâneo de absorção e digestão de elementos de fora, algo semelhante, sem a mesma autoconsciência, à antropofagia, de que nos falavam Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e outros modernistas. Eles se inspiraram nos movimentos de vanguarda da Europa – no Cubismo, no Futurismo – para dar nova direção, autenticamente brasileira, à nossa cultura.
A maior prova do equívoco de quem pensa não se poder nacionalizar sem traumas manifestações culturais está no fato do reggae já ter adquirido um sotaque local. Por sinal, de autêntico e legítimo, mesmo, por aqui, numa certa visão idealista e ingênua, deveríamos ter tão-só os primitivos habitantes, os índios. Aliás, segundo as últimas descobertas antropológicas, eles vieram da distante e fria Sibéria, fazendo estágio de poucos milhares de anos na América do Norte, a fim de se tornarem, primeiro, norte-americanos e, em seguida, sul-americanos, brasileiros e maranhenses.
Eis minhas palavras, há mais dois anos e meio, em janeiro de 2001, aqui em O Estado do Maranhão, ao comentar o crescimento do reggae: “Admirável, essa capacidade brasileira de pegar o material importado e produzir algo que é nosso, único, sem similar no mundo. Marca das culturas fortes, dinâmicas, originais, abertas e influentes. [...] Sua penetração [do reggae] é sinal de força, de algo que fala à nossa cultura popular, talvez o elemento africano, tão presente entre nós. Foi aceito pelo povo, tem o que lhe dizer. Não importa a origem na Jamaica ou na Patagônia. Ou será que a influência americana é a única boa? Atenas é tão estrangeira quanto a Jamaica.”
Felizmente, já existe uma estrutura profissional aqui, como se viu no festival, capaz de dar suporte ao movimento regueiro e organizá-lo comercialmente. Claro, sempre haverá, entre seus admiradores, quem se queixe de um suposto desvirtuamento, como resultado da comercialização de suas atividades. No entanto, ninguém precisa defender a primazia do fator econômico em tudo, como no marxismo vulgar, para reconhecer que, nas sociedades modernas, a sobrevivência de toda cultura é sempre assegurada por uma base material. Afinal, sem contar os mecenatos públicos e privados, livros são publicados porque existem editoras prontas a lucrar com eles; o cinema chega ao público porque há quem o financie comercialmente. Não há razão alguma para ser diferente com o reggae. A profissionalização não é bem-vinda, apenas, ela é desejável. Na sua ausência, jovens talentos e oportunidades de melhoria do bem-estar de muita gente se perderiam.
Não está distante sua aceitação ampla pela nossa sociedade. Outras manifestações com forte influência africana também já foram discriminadas no Brasil, mas depois passaram a ser vistas como parte de nosso patrimônio cultural. Agora, não será diferente. O reggae maranhense irá sobreviver por suas próprias forças, que não são poucas.

17 de agosto de 2003

Praça da alegria?

Jornal O Estado do Maranhão  
Era chamado Largo da Forca ou da Forca Velha no fim do período colonial. Foi designado, depois de algum tempo de uso, provavelmente em 1815, como o único lugar em São Luís para o cumprimento das penas capitais. (O Bequimão foi executado em outro local, na praia de Trindade, e, segundo Antônio Lopes, “perto do Palácio dos Governadores, do forte da cidade e do Colégio dos jesuítas”, sendo este o Colégio de Nossa Senhora da Luz, construído onde atualmente se encontra o Palácio Arquiepiscopal).
Apropriadamente, o Largo ficava perto do Cemitério Municipal, embora os enforcados não devessem lá ser enterrados. De acordo com César Marques, esse cemitério estava situado no fim da rua Grande, de frente para a do Passeio, em terreno cedido pela Câmara Municipal à Santa Casa de Misericórdia, nas proximidades do Cine Passeio de nossos dias.
Carlos de Lima informa que o largo virou praça da Alegria em 1849, depois praça Sotero dos Reis em 1868, praça Colombo em 1890, praça 13 de Maio em 1929, praça Saturnino Bello em 1951 e praça Coronel Manoel Inácio em 1963. Mas, apesar de todas as mudanças oficiais, ninguém deixou de chamá-la de praça da Alegria, como se todos quisessem apagar a lembrança dos enforcados ali.
Pois foi nesse lugar de morte nos tempos antigos, mas, ironicamente, de alegria no nome teimosamente mantido pelo povo durante mais de um século e meio, que me deparei pela primeira vez, angustiadamente, como outras vezes mais tarde, com a vida fora do mundo familiar de classe média da São Luís do começo dos anos cinqüenta. Eu ia aprender a ler e, simultaneamente, descobrir a luta pela própria sobrevivência longe da proteção dos pais. Na praça funcionava, como ainda funciona, o Jardim de Infância D. Francisco, assim chamado em homenagem a D. Francisco de Paula e Silva, bispo do Maranhão entre 1907 e 1918 e autor dos Apontamentos para a história eclesiástica do Maranhão. Anteriormente, conforme me informam Fernando Silva e Eduardo Lago, pessoas de uma geração mais antiga do que a minha, o jardim se chamara Decroly. Descobri que era por causa do educador belga Ovide Decroly.
Nessa época, o prédio, em plano um pouco acima do da rua, era todo aberto, tendo apenas muretas de meio metro em todo seu perímetro, sem as grades do piso ao teto de agora, que funcionam como muros, na vã tentativa de defender as crianças e seus professores contra a violência onipresente nas cidades brasileiras.
As pequenas cadeiras me pareceram desde o primeiro dia um pouco altas em relação às mesas, dando-me a sensação de estar exposto aos olhares do mundo. Disso eu me lembro muito bem. Mas, quem poderá dizer a razão de um detalhe aparentemente tão desimportante ficar-me tão vivo na lembrança mais de cinqüenta anos depois? Seria o desamparo em que eu me sentia, por estar fora de um ambiente conhecido, o motivo dessa lembrança persistente? Precisaria eu agarrar-me a alguma coisa, ainda que apenas com os olhos e com a alma, a fim de ter, naquelas horas, uma referência conhecida, fixando-a, no entanto, por misteriosas voltas da mente humana, para sempre na memória, a fim de não mais me sentir abandonado em meio a tantas coisas novas e desconhecidas?
Eu sentava nas cadeiras, junto aos colegas, levado pacatamente pelas professoras, e ficava quieto, desejoso de não ser perturbado até a hora de voltar ao abrigo da minha casa. Mas, apesar do retraimento, eu prestava bastante atenção às letras que as professoras iam nos mostrando e fascinava-me com elas, bem traçadas, com retas e curvas inesperadas, e, intuitivamente, sem fazer alarde, sem dizer nada, ia fixando-as rapidamente na memória. Foi uma das maiores e mais agradáveis descobertas de toda a minha vida, a entrada inicial e definitiva no mundo da leitura e da escrita. O fascínio com os livros me acompanharia sempre daí em diante e há de me acompanhar até meus últimos momentos.
Pena o D. Francisco ter se tornado uma estranha fortaleza! Para as crianças, será a praça ainda da alegria?

10 de agosto de 2003

Praça da alegria?

Jornal O Estado do Maranhão 
Era chamado Largo da Forca ou da Forca Velha no fim do período colonial. Foi designado, depois de algum tempo de uso, provavelmente em 1815, como o único lugar em São Luís para o cumprimento das penas capitais. (O Bequimão foi executado em outro local, na praia de Trindade, e, segundo Antônio Lopes, “perto do Palácio dos Governadores, do forte da cidade e do Colégio dos jesuítas”, sendo este o Colégio de Nossa Senhora da Luz, construído onde atualmente se encontra o Palácio Arquiepiscopal).
Apropriadamente, o Largo ficava perto do Cemitério Municipal, embora os enforcados não devessem lá ser enterrados. De acordo com César Marques, esse cemitério estava situado no fim da rua Grande, de frente para a do Passeio, em terreno cedido pela Câmara Municipal à Santa Casa de Misericórdia, nas proximidades do Cine Passeio de nossos dias.
Carlos de Lima informa que o largo virou praça da Alegria em 1849, depois praça Sotero dos Reis em 1868, praça Colombo em 1890, praça 13 de Maio em 1929, praça Saturnino Bello em 1951 e praça Coronel Manoel Inácio em 1963. Mas, apesar de todas as mudanças oficiais, ninguém deixou de chamá-la de praça da Alegria, como se todos quisessem apagar a lembrança dos enforcados ali.
Pois foi nesse lugar de morte nos tempos antigos, mas, ironicamente, de alegria no nome teimosamente mantido pelo povo durante mais de um século e meio, que me deparei pela primeira vez, angustiadamente, como outras vezes mais tarde, com a vida fora do mundo familiar de classe média da São Luís do começo dos anos cinqüenta. Eu ia aprender a ler e, simultaneamente, descobrir a luta pela própria sobrevivência longe da proteção dos pais. Na praça funcionava, como ainda funciona, o Jardim de Infância D. Francisco, assim chamado em homenagem a D. Francisco de Paula e Silva, bispo do Maranhão entre 1907 e 1918 e autor dos Apontamentos para a história eclesiástica do Maranhão. Anteriormente, conforme me informam Fernando Silva e Eduardo Lago, pessoas de uma geração mais antiga do que a minha, o jardim se chamara Decroly. Descobri que era por causa do educador belga Ovide Decroly.
Nessa época, o prédio, em plano um pouco acima do da rua, era todo aberto, tendo apenas muretas de meio metro em todo seu perímetro, sem as grades do piso ao teto de agora, que funcionam como muros, na vã tentativa de defender as crianças e seus professores contra a violência onipresente nas cidades brasileiras.
As pequenas cadeiras me pareceram desde o primeiro dia um pouco altas em relação às mesas, dando-me a sensação de estar exposto aos olhares do mundo. Disso eu me lembro muito bem. Mas, quem poderá dizer a razão de um detalhe aparentemente tão desimportante ficar-me tão vivo na lembrança mais de cinqüenta anos depois? Seria o desamparo em que eu me sentia, por estar fora de um ambiente conhecido, o motivo dessa lembrança persistente? Precisaria eu agarrar-me a alguma coisa, ainda que apenas com os olhos e com a alma, a fim de ter, naquelas horas, uma referência conhecida, fixando-a, no entanto, por misteriosas voltas da mente humana, para sempre na memória, a fim de não mais me sentir abandonado em meio a tantas coisas novas e desconhecidas?
Eu sentava nas cadeiras, junto aos colegas, levado pacatamente pelas professoras, e ficava quieto, desejoso de não ser perturbado até a hora de voltar ao abrigo da minha casa. Mas, apesar do retraimento, eu prestava bastante atenção às letras que as professoras iam nos mostrando e fascinava-me com elas, bem traçadas, com retas e curvas inesperadas, e, intuitivamente, sem fazer alarde, sem dizer nada, ia fixando-as rapidamente na memória. Foi uma das maiores e mais agradáveis descobertas de toda a minha vida, a entrada inicial e definitiva no mundo da leitura e da escrita. O fascínio com os livros me acompanharia sempre daí em diante e há de me acompanhar até meus últimos momentos.
Pena o D. Francisco ter se tornado uma estranha fortaleza! Para as crianças, será a praça ainda da alegria?

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