28 de dezembro de 2003

Ano Novo, velha esperança

Jornal O Estado do Maranhão 
O Ano Novo traz sempre esperanças de dias melhores do que os decorridos até 31 de dezembro do Ano Velho. Na passagem de um ao outro – em alguns países não-cristãos isso ocorre em datas diversas da nossa –, o que se vê? Votos de prosperidade, de felicidade, de paz e concórdia entre os homens e as nações, de saúde e de melhoria material e espiritual. Em resumo, a velha esperança de realização da harmonia universal ressurge anualmente, nesta época, embora ela nunca se realize, a despeito – ou até por causa, dirão alguns –, do progresso material, cujo maior quinhão vai sempre para os já senhores de muito ou tudo, deixando pouco aos donos de pouco ou nada.
Essa esperança repetida é expressão da antiga e frágil crença de que, se todas as pessoas de boa vontade, do qual poucos estariam excluídos, e somente por vontade própria ou como conseqüência de atos pouco recomendáveis, de repente colocassem em prática as belas intenções expressas no fim do ano, tudo seria mais fácil, o mundo se transformaria e a felicidade seria moeda corrente na sociedade terrena. Assim, talvez, não precisassem eles da sociedade celestial do após-vida.
Qual será a razão, então, de tal paraíso terrestre nunca se materializar? a causa da frustração de tão nobres e sinceros sentimentos?
A verdade é esta: mais fácil é pregar do que praticar as exortações da pregação. Não porque o pregador queira enganar os fiéis deliberadamente. Ele, como os demais seres humanos, seguidores fiéis de sua própria natureza, é governado por seus interesses e paixões. Por isso, “mente alguma jamais foi tão virtuosa quanto a língua do pregador”.
No seu excelente livro Mercado das crenças: filosofia econômica e mudança social, Eduardo Giannetti da Fonseca dá Sêneca, o Filósofo, como exemplo de que as opiniões manifestadas pelas pessoas podem ter pouca ou nenhuma relação com seu comportamento no dia-a-dia. Esse romano estóico, nascido na Espanha, era filho de outro Sêneca, o Antigo, e tinha um irmão, M. Aneu Novato, procônsul na Acaia, a quem levaram o apóstolo Paulo com o fim de ser julgado.
Sêneca dizia, em De tranquilitate animi (Da paz de espírito), obra cheia de conselhos sobre os problemas deste mundo, dados com vista ao alcance da felicidade em meio às vicissitudes da vida, que “a riqueza é a fonte mais fértil de tristezas humanas”. Pois esse filósofo de tão sábios juízos, irmão do julgador de um apóstolo de Cristo, questor, orador forense e senador, invejado e quase condenado à morte por Calígula, veio a ser uma das pessoas mais ricas de Roma, mas somente após tornar-se preceptor de Nero e regente do Império Romano.
Além disso, fechou os olhos aos assassinatos de Britânico e Cláudio, filho e pai, este último antecessor imediato e padrasto de Nero, e da mãe deste, Agripina, crimes, todos eles, ordenados pelo próprio Nero. Como dizia o duque de la Rochefoucauld, também citado por Fonseca, “as paixões são os únicos oradores que sempre convencem” e “estamos muito longe de perceber tudo que nossas paixões nos levam a fazer”.
Essa herança comum aos humanos e animais, essa ditadura dos instintos que os levam a ser o lobo do próprio homem, a primeiro preservar-se, para só depois pensar no bem universal, está, penso eu, na origem de todos os conflitos desde tempos imemoriais. Em verdade, a história tem sido, e continuará a ser, a constante dominação do mais fraco pelo mais fortes, como dizia Marx. Não importam outras explicações que os filósofos sejam capazes de dar para esses conflitos, que não essa, baseada nessa característica inerente a todos nós.
Isso tudo não significa que não se possa ter a esperança de dias melhores para a humanidade cuja aventura civilizatória tem sido exatamente a de, se não eliminar, pelo menos controlar aqueles instintos voltados ameaçadoramente contra nossos semelhantes. Não será em vão, portanto, desejar a todos um feliz Ano Novo.

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