7 de novembro de 2004

Fim do mundo

Jornal O Estado do Maranhão 
A certeza era imperturbável. O mundo ia se acabar, mas somente mais tarde ele me anunciou a grande nova. Não seria daqui a bilhões de anos, quando a Terra, por querer voar muito perto do Sol, qual Ícaro com suas asas soldadas com cera, cairá na estrela e se transformará em pó, à semelhança de seus habitantes desde o começo dos tempos, dessa última vez pela ação do mesmo fogo que hoje, distante, nos dá vida.
O desastre seria em alguns meses ou, no máximo, um ano. Não adiantaria recorrer aos deuses, rezar, chorar, pedir, implorar. Não havia esperança de tudo se passar como na canção em que “anunciaram e garantiram que o mundo ia se acabar”, porém tudo continuara como sempre, exceto pelas confissões de pecados mortais e veniais, com muito barulho, confusão e divórcios.
Apesar da certeza da catástrofe próxima não se via nele sinal algum de desespero, diferentemente de um personagem de um filme de Woody Allen. Ao saber, ainda bem criança, do destino inexorável de nosso planeta, ele entrou em depressão da qual não se recuperou mais durante toda sua longa e angustiada existência.
Quando o profeta pegou-me no braço, arrastando-me a um canto e dizendo que precisava falar comigo urgentemente, pensei logo num pedido de ajuda. Quem sabe a filha estava doente, a mulher hospitalizada, o pai precisava “tirar uma chapa”, ele tinha uma dor de dente insuportável, alguma coisa assim. Contudo, quando pensei um pouco, fiquei surpreso, pois era bem raro se ouvir sua voz. Eu mal conseguira falar com ele duas ou três vezes em mais de dois anos. Se não lhe dirigissem a palavra era capaz de ficar o dia todo mudo, como um monge distante das agitações mundanas. Ele dava a impressão de não querer incomodar nem ser incomodado, mas cumpria diligentemente suas obrigações. Portanto, aquela conversa só podia ser especial, assunto de vida e morte.
Com a aproximação do fim terreno, certeza adquirida em leituras das sagradas escrituras de sua religião, ele me escolhera para ser salvo, pois embarcaríamos numa nave espacial, capaz de nos levar em segurança a qualquer lugar do universo. Não atinei com a razão da escolha nem perguntei nada.
Recusei a oferta. Continuaria com os pés firmemente plantados na Terra, velha conhecida, em vez de me aventurar no infinito, sem ter certeza de chegar a nenhum paraíso, exposto a meteoros desgovernados. Eu já ficaria satisfeito se pudesse escapar das ameaças deste mundo: os altos impostos, os livros de auto-ajuda, os juros altos, as promessas de época de eleição, o desemprego, a epidemia de cadastros inúteis, os vírus da internet, os buracos nas ruas, os messias eletrônicos, os seqüestros, as companhias telefônicas, as distribuidoras de energia elétrica e, sobretudo, George Bush. Quem poderia garantir que os problemas não seriam os mesmos em outro astro?
Melhor morrer aqui, em vez de penar pelo universo sem ter onde repousar, andando de estrela em estrela, feito um andarilho universal. Talvez, essa figura de ficção, Osama bin Laden, intangível como um fantasma, onipresente e onipotente, aceitasse uma carona. Afinal, o exército mais poderoso da Terra anda atrás dele. Poderia ser uma boa oportunidade para escapar mais uma vez e definitivamente do Tio Sam, que a tão longe não chega.
Mas, ponderei, não era o mundo que se acabava. Nós é que acabávamos o mundo, pela poluição do ambiente e a destruição da fauna e da flora. Além disso, eu já estava salvo, garanti. Salvo da ignorância, pelos livros, e de acreditar nesse tipo de fuga, no fim do mundo amanhã e em paraísos terrestres ou cósmicos. Ele me olhou serenamente e disse algo sobre o dia do Juízo Final, quando eu por fim acreditaria em suas palavras. Seria tarde, porém.
Haveria eu de sofrer a condenação?

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