21 de agosto de 2005

Sem Aviso

Jornal O Estado do Maranhão  
Uma pedra atravessou o caminho por onde eu ia despreocupado de tudo, de alegria e de tristeza, parou em certo ponto de sua viagem inconveniente, lá fincou o pé e, por vários dias, se recusou a sair, como se, de propósito, quisesse me causar sofrimento. Mas, é sempre assim, quando algum mineral componente de nosso corpo, o cálcio especialmente – que é pó semelhante ao que voltaremos um dia –, acumulado já em pedra, pequena embora, resolve deixar o calor de nossos rins e o aconchego de nosso interior, de onde jamais deveria sair, para vir até aqui fora por um estreito caminho, inadequado, evidentemente, a passeio como esse.
Em meio à luta para expulsar a solerte inimiga dali de sua trincheira, dolorosa luta que, embora suspensa, ainda não chegou ao fim, pude ainda, tentando disfarçar a dor, ler um texto do meu confrade da Academia Maranhense de Letras, Benedito Buzar, sobre o recém-falecido capitão Antônio Alves Gondim. Sigo a narrativa sobre a revolta comandada por ele, singular figura da história maranhense, com a intenção de derrubar, em 1956, o governador interino do Estado, Eurico Ribeiro, quando, no início da última seção, salta um nome que me evoca distantes, mas claras recordações: Orestes Lima Pereira, morto então com um tiro de fuzil.
Foi justamente no enterro de Orestes, quando eu tinha 8 anos de idade, que tive meu primeiro contato próximo e direto com a morte. O morto era casado com Jucita, prima de minha mãe. Pela primeira vez eu via uma pessoa sem vida e disso jamais me esqueci. Já contei aos leitores que, dois anos antes, em 1954, eu e meus irmãos, fomos proibidos de ir até a Beiramar durante o incêndio e naufrágio do navio Maria Celeste, ocasião de muitas mortes. Mas, em 1956, pode ser que meus pais já me considerassem com idade suficiente para encarar a realidade do fim inexorável.
Lembro-me bem da casa modesta na rua da Cruz, perto do Mercado Central, no centro da cidade. Eram tempos de muitas rezas, como as que ouvi naquele dia, nos velórios feitos nas residências e não em locais especialmente equipados, como agora, para esse ritual de despedida. Ouviam-se comentários em voz baixa sobre o tipo de ferimento causado em Orestes pela bala – pedra também, de aço –, disparada após ele entrar, no meio do tumulto daquelas horas, inadvertidamente, numa área proibida aos civis. Até hoje não se sabe se o tiro veio dos policiais militares das forças do governo ou das rebeladas. Os dois lados usavam o mesmo tipo de armamento. A semelhança dificultou a identificação.
Marcante para mim, mais até do que a própria morte violenta de Orestes, foi a orfandade em que ficaram os muitos filhos do casal. Um deles, Juciram, afilhado de minha mãe, costumava vir à nossa casa a fim de nos ensinar a empinar papagaio e ajudar minha avó materna, Marcelina Raposo, a preparar o Judas do sábado de Aleluia. Eu observava desde o mais velho, Jucildo, então cabo do Exército, até os mais novos, ainda bem pequenos, e intuía – não era nem podia ser uma reflexão consciente – a possibilidade de alguma coisa ruim também acontecer com meu pai. Seria algum dia ele vítima de alguma tragédia como aquela?
Aqueles eram tempos agitados, de mudanças. A chamada Greve de 1951, rebelião política cujos ecos eu ouvia o tempo todo, de oposição à posse do governador Eugênio Barros, bem como outros movimentos do próprio Gondim em 1950, 1951 e 1955 e, até, o suicídio de Getúlio Vargas em 1954, misturavam-se na minha imaginação de criança e criavam em mim uma idéia realista de violência e insegurança da vida e do mundo que eu começava a conhecer. Fui para casa levando a imagem do morto em minha mente e pensando no desamparo da mulher e filhos. Poderíamos nós, lá em casa, ficar da mesma forma na orfandade sem aviso prévio?

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