31 de maio de 2009

Espírito de Porco



Jornal O Estado do Maranhão

A gripe anda solta pelo mundo. Suína, dizem. Quem pode garantir? Vai ver, os porcos são como os mordomos de filme policial ou de suspense, tudo é culpa deles e nada é. Os próprios especialistas de televisão que sempre dizem o óbvio, desta vez parecem mais úteis. Eles afirmam não haver provas da culpa dos pobres suínos pela endemia, pandemia, epidemia ou seja lá o que for. Apenas por serem porcos é deles a culpa por toda porcaria do mundo, pela sujeira globalizada, pela poluição geral? Depois de passarem séculos nos fornecendo aquelas deliciosas e irresistíveis costeletas e sendo objeto de desejos incontroláveis de nossa parte, agora vamos difamá-los dessa forma, atirando a seus ombros, ou melhor, a suas banhas, todos os pecados cometidos por um vírus misterioso?
Se examinarmos a polêmica com mais vagar, porém não tão devagar que haja tempo para nos contaminarmos, poderemos chegar a esta conclusão: foram os galináceos os responsáveis pelo início dessa confusão. Afinal, galinhas são, falemos claro, galinhas. Vão ali rapidinho com o primeiro galo que aparecer. Ora, a gripe, todos sabem, se transmite pelo ar ou pelo contato íntimo, como o beijo. Sei que dois bicudos, galo e galinha, não se beijam. Mas, se bicam. Este comportamento poderia constituir o vetor de transmissão. Prova é a existência de uma gripe chamada aviária. Não haveria meio de ela se espalhar, se não se bicassem. Ela nem existiria, aliás, pois se extinguiria logo no início, por impossibilidade de se disseminar.
Hipótese alternativa é a de atribuir aos macacos a responsabilidade pelo mal. Faz sentido, porque os macacos são dados a macaquices. Neste caso, de muito mau gosto, é verdade, mas, de qualquer modo, macaquice. Não dizem os biólogos evolucionistas que homens, chimpanzés, gorilas,orangotangos e bonobos são geneticamente muito próximos? Quem se surpreenderia então se a epidemia tivesse origem nesses nossos primos, nos bonobos, por exemplo, passando em seguida à espécie humana? Durante muito tempo vistos como chimpanzés-pigmeus, eles são famosos por resolverem seus conflitos com o manejo oportunista de sexo. Se o bicho pega, quero dizer, se o macho pega a fêmea bonobo, ninguém briga. Com essa vida promíscua, eles devem ser os responsáveis pelo deus nos acuda de hoje.
Todavia, se os porcos e as galinhas não forem os culpados, a epidemia só pode ser uma cachorrada daquelas. Digo por quê. Com quem as madames têm contato íntimo? Com os maridos, os amantes? Não. Com seus queridos poodles e assemelhados. Um passeio aqui, uma viagem ali (os pobrezinhos vão a todos os lugares) e o bicho se contamina com um vira-lata qualquer. Daí, sua mãe humana é contaminada e tem início a corrente. Seu companheiro, mesmo sem chegar perto dela, também pega, no ar condicionado da alcova, a secretária dele também, esta transmite a seu ficante e por aí vai.
Qualquer que fosse o animal transmissor, no entanto, se de fato um tivesse algo a ver com a crise, causada por um vírus que é uma mistura de vários outros, inclusive do vírus da gripe humana, ele estaria apenas devolvendo um torpedo lançado sobre ele pelos humanos. É muito bem documentado o fenômeno da contaminação de animais por nossa espécie. Não há como reclamar de porcos, galinhas e cachorros. Eles são nossos credores, condição insuficiente para livrá-los de serem utilizados como metáforas injustas de nosso comportamento. Fulano é um porco, ou um galinha, ou um cachorro, ouve-se a toda hora. Vilipendiados animais!
Essa história me faz lembrar da gripe asiática. Ela matou milhões de pessoas, passou aqui, em 1957, e me pegou de jeito, com meros nove anos de idade. Febre alta, dores, delírios e calafrios. Minha sobrevivência se deu graças a Dr. Amaral de Matos e cuidados maternos.
A Organização Mundial de Saúde resolveu mudar o nome da gripe atual. Agora é Influenza A/H1N1. Justa a mudança (justiça aos porcos, já). Injustiça seria chamá-la, por sua aparente origem no México, de mexicana. Quem teve a ideia de batizá-la assim não passa de um espírito de porco.

17 de maio de 2009

A Menina



Jornal O Estado do Maranhão

O espanto levou os presentes, em uníssono, a um prolongado Oh!, com ecos no ambiente solene. Expressavam admiração pela bravura da menina. Vejam sua valentia, diziam, vejam. Toda aquela gente – parentes de certo modo estranhos, pois ela não os havia encontrado muitas vezes ainda, amigos dos pais, dos avós, o primo, todo mundo –, não a inibiu. Ela permaneceu altiva, mas simples, como uma rainha da Suécia, só que de cabelos e olhos negros, orgulhosa como anunciou ser desde o dia de seu nascimento apenas dois meses antes. Seriam olhos de ancestrais indígenas ou asiáticos? Cópia dos da mãe, com certeza, elas os movia de um lado a outro e com eles dizia tudo sem pronunciar nada: Não me verão chorar, nem agora nem depois, antes de eu adormecer depois deste ritual. Se estivesse sentada, a plateia se levantaria para aplaudir e pediria bis pelo resto do dia.
Mas, de pé desde o início, os presentes bateram palmas de admiração, deram vivas entusiasmados e brados de aprovação. Se não houve de fato tais manifestações, então é a emoção de ver a coragem ou a vera coragem dela que me atiça a imaginação e nos fez, os presentes, naquela hora, ficar momentaneamente incapacitados de mover as mãos e os lábios. Fomos movidos, porém, na alma, pelo sentimento que está nela, "o amor que move o sol e as mais estrelas".
Havia sobre nós a vigília do deus de nossa milenar tradição e seu mandamento: com tal disposição, nada na vida lhe será obstáculo, ninguém haverá capaz de fazê-la retroceder, nenhuma determinação será tão duradoura quanto a sua, nenhum amor maior, nenhuma luz de mais intenso esplendor, nenhuma comunhão com os que amamos mais perfeita do que a dela.
Não se disse ainda a razão de tanta admiração. Foi isto. Quando o padre César, na Igreja da Sé, derramou a água sagrada na cabeça da menina, sacramentando sua entrada na Igreja, Ludmila – é da filha de minha filha, Daniela, e de Fábio, de quem falo – ergueu a cabeça, pois os padrinhos a seguravam a certa altura com o rosto voltado para baixo, mostrando, com surpresa tão só dos que não a conheciam, rara valentia, pois não se viu uma lágrima sequer em seus olhos: Não chorou, não chorou, diziam. E por qual motivo deveria chorar quem só terá razões de ficar alegre durante uma vida que será longa e feliz? Ela deixará marca indelével no mundo, pois será boa, justa, verdadeira, sábia e amiga. Isso basta, em comunhão com os seus e com o Universo, de cujo barro todos somos feitos.
Ver Ludmila é ver toda a longa corrente de seres, cada um único e insubstituível, formada pelas sucessivas gerações que nos precederam e pelas que nos irão suceder até o infinito, estas com os próprios filhos e netos dela. É ver a unidade humana. É ver bisavós e ver bisnetos que virão quando meu tempo já tiver passado. Se, porém, nada do que eu fizer no mundo for um dia lembrado, e apenas ela se lembrar de seu avô, então não terei morrido. Assim seja.

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