21 de setembro de 2008

Supostismo

Jornal O Estado do Maranhão

O leitor deve conhecer o gerundismo, praga sobre a qual falei mais de uma vez aqui. Ela é encontrada facilmente, ameaçadora, em qualquer empresa de telemarketing e em call centers de serviços de telefonia e distribuição de energia elétrica. Todo mundo um dia vai se deparar com ele: “sua reclamação sobre a constante falta de energia vai estar sendo atendida em breve”, ou “o senhor vai estar recebendo um comunicado sobre a resolução do problema”. Estrutura da língua inglesa com palavras em português, é forma de contaminação lingüística bastante danosa, porque, como afirmam especialistas no assunto, não se trata apenas da incorporação de palavras de outro idioma, normal no contato entre diferentes idiomas, mas da estrutura sintática estrangeira. O mal não tem dado sinais de diminuir o ímpeto. Ao contrário, o gerundismo, de tão comum, não chama mais a atenção. E, pior, muita gente não percebe seus próprios hábitos gerundistas e toca a usá-lo, achando-se sofisticado no falar. Os males, dizem os mais pessimistas, ou realistas, vêm em ondas, nunca isoladamente. Deve ser por isso que vemos a emergência de um parente próximo do gerundismo: o supostismo. Vejam esta notícia, entre centenas encontradas na imprensa diária, tirada ao acaso de um jornal do sul do país, não diferente dos locais neste aspecto: “Segundo ele, Ruth Cardoso teria sido quem impulsionou a unificação dos programas de transferência de renda e de combate à fome no país e teria sido ela quem persuadiu o então presidente Fernando Henrique a adotar esse sistema unificado em nível nacional.”. O que afinal, o jornal está tentando dizer? Que, segundo uma fonte, Ruth Cardoso fez isso ou aquilo? Ou que a fonte apenas supunha que ela fizera tais e tais coisas? Por que não dizer simplesmente “Segundo ele, Ruth Cardoso foi quem impulsionou [...]”. Se impulsionou ou não, fica evidente das palavras de quem deu a opinião, que não se confunde com a eventual opinião editorial. Se a intenção é salvar responsabilidades pela informação, fazendo o leitor identificar sua origem em alguém de fora da redação, sem ligações com o jornal, bastaria tirar o condicional, como sugeri. Tudo ficaria bastante claro. Essa é uma forma de supostismo meio disfarçado, sem o uso explícito da palavra suposto. Outro exemplo: “A prisão temporária foi pedida pelo Ministério Público Federal do Amapá, num desdobramento da Operação Toque de Midas, que investiga suposto esquema de fraudes em licitações no Estado.” Qual a razão do uso do “suposto”. O esquema existe, pois investigações foram feiras. Trata-se somente de obter provas contra os acusados. O suposto é dispensável. Tomemos outro exemplo hipotético do fenômeno, mas representativo de notícias sobre crimes de assassinato: “Segundo o delegado, o suposto assassino seria Fulano de Tal. Ele teria afirmado sua inocência, dizendo que no dia do crime estaria em outra cidade, a 300 quilômetros de distância do local do crime”. Parece-me um excesso de condicionantes: “segundo”, “suposto”, “teria” “seria”. Mais claro, direto e sem voltas seria dizer: “Segundo o delegado, o assassino é Fulano de tal [...]”. Transcrever a declaração do delegado é suficiente para prevenir-se contra a acusação de pré-julgamento. Já vejo a hora de lermos uma notícia como esta: “O presidente da República, com o suposto nome Lula, mas em verdade batizado como Luís Inácio da Silva, inaugurou mais uma obra do Programa de Suposta Aceleração do Crescimento – PRO-SACO, que, afirmam fontes governamentais, irá tirar supostos pobres da situação de dificuldades atual e, supostamente, torná-los ricos, felizes e satisfeitos, a fim de dedicarem-se em tempo integral a reflexões filosóficas sobre o sentido da vida e significado da morte”. Supostamente, supostamente.

14 de setembro de 2008

Artur Azevedo no Centenário

Jornal O Estado do Maranhão

Na próxima quinta-feira, dia 18, o professor Antônio Martins de Araújo, nascido na rua dos Afogados esquina com a do Ribeirão, bem perto do Teatro Artur Azevedo, a cujos espetáculos, sem exceção, assistiu entre cinco e treze anos de idade, fará palestra às 20 horas na Academia Maranhense de Letras, sob o tema “A Permanência de Artur Azevedo”, como parte da programação do Centenário da AML, que irá até o final do ano, e como homenagem ao centenário de morte do escritor. Não sei se o menino (sabe-se lá da imaginação das crianças) tinha especial admiração pelo grande maranhense que dá nome à Casa onde muitas vezes, garoto, eu ia assistir a filmes brasileiros – nessa época estava o teatro arrendado para uma firma comercial –, com os comediantes Oscarito, Grande Otelo e outros astros do cinema. Fato comprovado e bem conhecido é que ele veio a ser o maior especialista nacional em Artur Azevedo, ocupando presentemente cadeiras na Academia Maranhense de Letras e na Academia Brasileira de Filologia, sendo, da mesma forma, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão. Alguns leitores verão nele o jovem diretor do Liceu Maranhense, onde foi catedrático de Língua Portuguesa, durante o governo Newton Bello. Lá, fundou e dirigiu o Jornal do Lycêo Maranhense, encartado no Diário Popular, que tinha entre seus repórteres Milson Coutinho, hoje, como Antônio Martins, membro da Academia Maranhense de Letras. Era uma época em que o ensino ainda não havia caído no abismo da má qualidade. Outros o identificarão com o idealista presidente do Sindicato dos Professores Secundários de São Luís por vários anos, na década de cinqüenta. Para mim, é o cavalheiresco confrade da AML, o homem experiente disposto em todos os momentos a dar sua contribuição à Casa, o intelectual respeitado nos grandes centros culturais do Brasil, o conferencista sempre a andar pelo mundo divulgando as culturas brasileira e maranhense e o intelectual com estudos de filologia e crítica literária publicados em periódicos portugueses, alemães, japoneses e brasileiros. No Rio de Janeiro, para onde se mudou em 1964, lecionou Literatura Dramática na Escola de Teatro Martins Pena, entre 1966 e 1991, na cadeira antes ocupada pelos maranhenses Coelho Neto e Viriato Correia. Em 1968, concluiu os cursos de Mestrado e Doutorado em Letras Vernáculas, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde lecionou Língua Portuguesa entre 1979 e 1997. Tem os seguintes livros publicados: Contos fora de moda (de Artur Azevedo), 1982; Artur Azevedo, a palavra e o riso, 1988 (edição de sua tese de doutorado), Chão do tempo, 1991 (2ª ed. Instituto Geia, 2005), A herança de João de Barros e outros estudos, Edições AML, 2003, Noel Rosa: língua e estilo, 1999, em co-autoria com Castelar de Carvalho. Ele editou toda a obra teatral de Artur Azevedo, sob o título O Teatro de Artur Azevedo, exceto as 30 peças originais e as 30 traduzidas, nunca localizadas, havendo informações, no entanto, de que foram representadas. Tem pronto um livro, Ensaios maranhenses, sobre a cultura maranhense, e ministra atualmente na Casa de Cultura Josué Montello curso em nível de mestrado sobre as diversas faces de Artur Azevedo – o teatrólogo, o contista, o cronista, etc. – e ministrará em seguida outro, Unidade e variedade da língua portuguesa hoje. Antônio Martins é titular da Cadeira de Morfologia no curso de pós-graduação do Instituto Superior de Língua Portuguesa, do Liceu Literário Português, no Rio de Janeiro. Mais não preciso dizer para demonstrar ao leitor a qualidade do palestrante da próxima quinta-feira, dia 18, na AML, em mais um evento, o 9º, do Centenário, para o qual estão todos convidados. Ninguém precisa apresentar convite na entrada.

7 de setembro de 2008

Cachorro, não

Jornal O Estado do Maranhão

A figura de Waldick Soriano, o cantor do povão, o brega-chique, morto há poucos dias, me traz à lembrança um pedaço de minha juventude. No final dos anos sessenta e começo dos setenta ele costumava se apresentar em muitas cidades do interior do Maranhão e em São Luís. Algumas vezes, esteve no antigo Cine Monte Castelo, em prédio cuja construção acompanhei desde a escavação das valas dos alicerces, pois eu morava a poucos metros do cinema. Lembro sobretudo do final da obra, quando os operários começaram a colocar as telhas na estrutura de madeira projetadas com o fim de sustentar a cobertura. Sentado na copa da nossa casa, um bangalô de classe média típico dos anos cinqüenta, sob os olhares vigilantes de minha mãe, que não nos liberava, a mim e meus irmãos, para as brincadeiras rotineiras a menos que déssemos conta sem vacilações dos deveres escolares do dia, era possível observar, dia a dia, o progresso do trabalho. A mim os trabalhadores pareciam empenhados na montagem de um grande quebra-cabeça com todas as peças do mesmo formato e tamanho, em lento progresso. Eles não executavam o serviço de tal maneira a criar, com as telhas, filas ou colunas de crescimento contínuo. Antes, produziam ilhas esparsas, aos poucos crescendo em direção umas das outras, até que suas bordas se juntassem, formando ilhas maiores, reunidas a seguir a outras, até o trabalho se completar. Os espaços entre elas, eu os via como os de um quebra-cabeça incompleto. Sempre que eu me detinha em contemplar o andamento de tudo aquilo durante um tempo mais longo do que minha mãe achava razoável para o sucesso da missão de chegar à escola sabendo as lições na ponta da língua, ela me chamava à realidade e lá se iam as telhas e a imaginação. Eu tinha a seguir de me voltar para os afluentes do Amazonas, o descobridor Pedro Álvares Cabral, o grito de Independência ou Morte, os verbos e advérbios. Ela foi minha melhor professora, ela mesma dada à leitura dos bons autores e capaz de escrever pequenas peças de teatro, apresentadas nas lojas maçônicas freqüentadas por meu pai. Inaugurado o cinema, logo a pracinha em frente se tornou ponto de encontro dos rapazes do bairro. Íamos lá conversar sobre tudo e nada, fumar cigarros Minister, ou Continental quando o dinheiro encurtava, de lá seguindo até o bar do Nezinho, ali bem perto, ou lugares mais afastados e não recomendáveis. O cinema virava casa de espetáculos com a chegada de um artista popular de fora Carlos Gonzaga, outro “brega”, era um deles, cantando Oh! Carol (gravada mais tarde por Caetano Veloso), Diana e vários sucessos. Outro, era Waldick Soriano, a quem já conhecíamos pelas músicas tocadas nas rádios e em todo lugar, mas também, no meu caso e no de alguns dos companheiros, pelas notícias, dando conta de supostos filhos que ele teria ao longo da Estrada de Ferro São Luís-Teresina, que ouvíamos nos trens e em Pirapemas, onde íamos passar férias, na casa do amigo José Novais, hoje médico. Waldick, ídolo do povo simples, que gosta de ouvir canções de dor-de-cotovelo, sem nenhuma vergonha, como um tipo de catarse das agruras do cotidiano, servia, vejo isso com a visão de hoje, como uma espécie de antídoto contra a influência exagerada da música com pretensões legítimas à sofisticação, como a bossa-nova, de grande prestígio numa relativamente pequena classe média da época, mas desconhecida das massas, servindo, para nós, à formação de um gosto musical de raiz popular e mais amplo. Como acontece com freqüência, o brega de hoje pode ser o cult de amanhã. Veja-se o exemplo, no cinema, de Zé do Caixão. Releituras de Waldick já ocorrem. Sua Tortura de Amor foi gravada por Fagner (Hoje que a noite está calma/ E que minh’alma esperava por ti...). Brega ou chique, cachorro não é Waldick.

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