25 de janeiro de 2009

Conversionário

Jornal O Estado do Maranhão

Eu sempre avaliei o Big Brother Brasil como fonte inesgotável de sabedoria. Era só ver um episódio no início da temporada do programa para certificar-me do acerto da avaliação. A diversidade de perfil dos participantes sempre foi garantia de diversidade de visões sobre os grandes problemas que afligem a humanidade, cada entendimento individual oferecendo um modo diferente de encarar a vida, de expor o que ia, ou vinha, na mente (e quantas vezes nos corpos!) deles, de mostrar a própria alma e, reconheçamos, partes íntimas da anatomia humana.
Em outro plano, dúvidas sobre pesquisa científica pura e aplicada, a língua portuguesa, linguística, literatura, pintura, escultura, história, filosofia, sociologia, psicologia, antropologia, economia, administração, direito, biologia, física, química, matemática, engenharia, astronomia, cosmologia e todos os demais ramos do conhecimento humano, dúvidas, eu dizia, do telespectador jamais ficam sem resposta bem elaborada, com todos os naturais volteios do pensamento, como os pulos de trapézio no cérebro de Brás Cubas e seu emplastro anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a “melancólica humanidade” e satisfazer a “sede de nomeada” de seu inventor.
O BBB é benéfico porque ajuda na criação de emprego numa economia tão necessitada deles. Nada é mais de se louvar. Tal consequência, intencional ou não, é bem-vinda, num momento de crise econômica como este que vivemos e ainda viveremos por algum tempo. Os ex-integrantes da casa onde eles se recolhem a fim de meditar são absorvidos com rapidez pelo marcado de trabalho na profissão de ex-participantes do BB, não sei se com carteira de trabalho assinada e por quem. Eles vão a festas, onde são objeto da natural curiosidade dos festeiros, a bailes de debutantes, a rodeios no interior de São Paulo, dão entrevistas a revistas especializadas, podemos dizer, em fazer à distância análise detalhada da vida do próximo.
Porém, a redução da taxa de desemprego é temporária, temos de admitir, pois passados poucos meses e tendo rodado por todas as baladas do país, eles caem num buraco negro da vida social e desaparecem para sempre. Somem das colunas, não recebem mais convites para coisa nenhuma, seus telefones deixam de tocar, as caixas de entrada de seus e-mails permanecem vazias e quando enviam mensagens não recebem respostas. Perambulam pelas ruas da cidade e alguns já foram vistos à beira-mar pregando aos tubarões da popularidade. Mas, como dizem quando tudo vai mal, tudo bem. Ter emprego temporário é melhor do que ser um eterno desempregado.
É a da inovação linguística a seara em que demonstram notável habilidade com idiomas, em especial com o inglês e a língua pátria. Os BBBs mostram aí a que vieram. Em benefício do enriquecimento vocabular do português, interessantes neologismos são propostos a todo o momento. Ninguém imagine que são modismos passageiros a serem logo esquecidos. São marcos que acompanharão o idioma pelos séculos. O mais recente foi conversionário. Seu nascimento trouxe a marca de uma autoridade no trato com as palavras, pois foi proposta por uma professora de português. Com a segurança de quem domina o assunto e sabe o que está fazendo e dizendo, ela ofereceu a novidade ao ser chamada ao confessionário, uma pequena cabine onde os BBBs dão opinião sobre variados assuntos da casa, especialmente sobre os companheiros de confinamento. Soltou com rara naturalidade o conversionário.
Mas, por que rejeitar um neologismo de criação instantânea e espontânea como esse? No confessionário, vocábulo com tons religiosos por suas ligações com a Igreja Católica, os BBBs conversam fiado com o apresentador do programa. Conversar, conversionário. Por que não mudar para palavra de tom mais mundano como essa?

18 de janeiro de 2009

Uma vida

Jornal O Estado do Maranhão

Acabo de ler De fantasmas e loucura, do escritor maranhense radicado em Brasília, Pedro Braga dos Santos. O autor tem uma bibliografia diversificada que começa na sociologia, com Alcântara: a sociologia da festa do Divino (1980), A Ilha afortunada (1987) e O touro encantado da Ilha dos Lençóis:o sebastianismo no Maranhão (2001), passa pela história, com uma Pequena história da energia no Maranhão (1992) e transita por estudos no campo da ética, com Ética, direito e administração pública (2006), do direito, Manual de direito para engenheiros e arquitetos (2007) e Crime e sociedade (2008) e, finalmente, da literatura infantil, a exemplo de O lobo-guará e o bicho-folha (2002) e A ararinha-azul e outras histórias (2008).
Agora Pedro nos oferece uma obra corajosa e franca, por seu autodesnudamento existencial, incomum nos escritores comuns, mas não naqueles, como ele, que têm algo relevante a dizer. O livro, de caráter memorialístico, narra a trajetória de vida de um filho de emigrante português na acanhada São Luís dos anos 50. Sempre inquieto com os problemas de seu tempo, num país e, em especial, num estado assolados por seculares desarranjos econômicos e sociais, preocupa-se com mais intensidade ainda com as eternas angústias do ser humano e se envolve na militância de esquerda, adotando o caminho do ativismo político. Teve , assim, de sair do país e morar na França, na vigência da ditadura militar de 1964.
O livro poderia ser visto, numa apreciação apressada, simplesmente como a mera sucessão de fatos interessantes da vida de membro da classe média que, tendo passado a infância na pequena cidade da época, mais tarde deixou sua terra por força das circunstâncias, tendo história parecida com a de outros de sua classe. A respeito de infância, não pude deixar de lembrar da minha ao ler a narrativa de um episódio narrado por Pedro, uma “pequena tragédia”, como eles diz, quando tinha cinco anos de idade. Um irmão mais velho jogou de longe uma faca na sua direção, acertando-lhe o tendão do pé esquerdo. O ferimento lhe deixou sequelas, pois a partir daí tornou-se-lhe impossível dobrar um dos dedos do pé.
No meu caso, fui algoz sem motivo. Em conluio com meus irmãos, Saturnino e Luís Carlos, fomos capazes de moer, não sei por que, com um moedor de carne, operado com uma manivela, quando se moía carne em casa, um dos dedos da mão esquerda de outro irmão, Cursino, para desespero menos da vítima e mais de nossa mãe ao ver o sangue e o dedo mutilado. É verdadeira a observação sobre poderem as crianças ser extremamente cruéis, como esses episódios mostram. Está em nossa natureza.
Se examinarmos sem pressa a obra, podemos ver que sua essência está na reflexão do autor sobre os grandes questionamentos existenciais. O sentido da vida, o amor, o desamor, o ódio, a amizade, as angústias ante o nada ou o tudo depois da morte, as dúvidas, as derrotas e vitórias, os relacionamentos, fracassados ou não, e tudo o mais que faz do existir uma luta permanente.
Tendo se exilado na França, por sua militância política na Ação Popular (depois ele se filiou ao Partido Comunista Francês) e pago um preço alto por isso, não se encontra no livro aquela autoglorificação tão característica das memórias de ex-militantes de esquerda. Muitos destes faziam parecer que sua atuação heroica na resistência à ditadura fora decisiva para a queda do regime. Outros caíram no extremo oposto, na mais despropositada autocrítica pública.
Temos aqui o relato sem mitificações e engodos de uma vida de erros e acertos, com inseguranças, esperanças e superação de limites pessoais, como se a dizer que a vida é a que se vive, não a que se poderia viver, pois diferentemente do teatro não se pode ensaiar a existência com o fim de ter um desempenho perfeito.

11 de janeiro de 2009

O Acordo Ortográfico II

Jornal O Estado do Maranhão

Como dito na Nota Explicativa do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, ao se analisar o conteúdo dos acordos anteriores, de 1945 e 1986, vê-se que seu objetivo era a imposição de uma unificação ortográfica absoluta ou quase. O de 1986 deveria obter tal resultado em 99,5% do vocabulário geral da língua. Sua principal proposta era de simplificação radical no sistema de acentuação gráfica, com a eliminação dos acentos nas palavras proparoxítonas e paroxítonas. Foi rejeitada pela opinião pública portuguesa.
O de 1945 pretendia chegar a 100%. Os brasileiros recusaram-no porque, ao propor a manutenção das consoantes mudas ou não articuladas, ele promoveria a restauração dessas letras no Brasil, onde havia muito tinham sido eliminadas. Tentava também resolver a divergência de acentuação das vogais tônicas e e o, seguidas das consoantes nasais m e n, das palavras proparoxítonas, pela adoção da norma portuguesa. Exemplo: Antônio, no Brasil, e António, em Portugal. O timbre do o, fechado no Brasil e aberto em Portugal (por isso o circunflexo num caso e o acento agudo no outro), passaria a ser grafado, aqui e lá, somente com o acento agudo (António), sob o argumento de que ele assinalaria tão-só a tonicidade e não o timbre da vogal. Manteve-se agora a dupla grafia: Antônio para nós e António para os lusitanos. Aliás, por que não se deveria adotar duplas grafias no âmbito da lusofonia, se elas são adotadas no Brasil, como no caso de sinóptico e sinótico e de diversas outras palavras? Prevaleceu o bom senso e a fonética que é o princípio orientador da reforma. Cerca de 98% do vocabulário está unificado. O ótimo, como se sabe, é inimigo do bom.
Uma das críticas mais frequentes (sem trema) ao Acordo diz respeito ao uso do hífen, em decorrência de um dispositivo que deixa ao usuário da língua espaço à subjetividade. Contudo, as regras, embora não sejam ainda ideais, são certamente mais simples do que as anteriores. Não há problemas no caso de composição por prefixação. A eliminação do hífen é a norma geral, excetuados os poucos casos explicitados no Acordo. Nos compostos, locuções e encadeamento vocabulares abrem-se pouquíssimas exceções para as ocorrências de uso do hífen já consagradas pelo uso (cor-de-rosa). Todavia, logo no primeiro item da Base IV, Observações, admite-se a grafia aglutinada de certos compostos “em relação aos quais se perdeu, em certa medida, a noção de composição [...]”. São dados, então, alguns exemplos, entre eles paraquedas (antes pára-quedas). Alguns falantes terão perdido a noção de composição nesse caso. Outros, como eu, não. Só a divulgação do Vocabulário Ortográfica da Língua Portuguesa poderá sanar as dúvidas.
Escritores são contra e a favor. Em Portugal, Saramago gostaria que o Acordo não existisse, mas quer sua adoção, em cumprimento da palavra empenhada pelo governo português. Vasco da Graça Moura é inimigo radical. No Brasil, há detratores e defensores. Em Angola, Agualusa é a favor. Mia Couto, em Moçambique, é contra.
Entre nós, uma resolução do Fundo Nacional de Educação autorizou a adequação ao Acordo das obras do Programa Nacional do Livro para o Ensino Médio e do Programa Nacional Biblioteca da Escola. As editoras de livros didáticos deverão fornecer obras adaptadas em 2009. Os alunos do ensino fundamental as receberão em 2010 e os do ensino médio em 2011 Em 2012 vestibulares, concursos e avaliações em geral terão de se adaptar às novas regras.
Vejo o Acordo como benéfico para o português. A existência de duas grafias oficiais tem sido prejudicial ao prestígio de nossa língua no mundo. Abrem-se perspectivas de maior intercâmbio cultural entre os países lusófonos, que têm 240 milhões de falantes, pela mais fácil circulação entre eles de textos escritos em todos.

4 de janeiro de 2009

O Acordo Ortográfico I

Jornal O Estado do Maranhão


Ano Novo, ortografia nova, que passo a usar hoje. Vigora desde o dia 1º deste mês o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa assinado em 1990 entre os países que têm o português como língua oficial: Brasil, Portugal, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, e Timor Leste. Cada um adotará ritmo próprio na sua implantação. Aqui, em obediência ao decreto assinado pelo presidente Lula em sessão da Academia Brasileira de Letras, a 29 de setembro de 2008, o período de transição irá de 1º de janeiro de 2009 a 31 de dezembro de 2012, e, em Portugal, até 2014. Os signatários deverão elaborar um vocabulário ortográfico comum.
Grandes órgãos da imprensa brasileira – pelo menos a Folha de S. Paulo, desde o dia 1º de janeiro – começam a adotar a nova ortografia. Paradoxalmente, o Executivo Federal e o Congresso Nacional, poderes que a aprovaram, não mexeram uma palha para adotá-la. Felizmente o Supremo Tribunal Federal já o faz.
A ideia de unificação ortográfica entre Brasil e Portugal começou no momento mesmo em que houve a primeira grande reforma, em 1911, adotada em Portugal, quando o país simplificou a escrita, deixando de priorizar a ortografia pseudoetimológica em favor da escrita fonética. A Academia Brasileira de Letras havia feito um experimento em 1907 com a simplificação da escrita nas suas publicações, reformulado em 1912 em função da resposta negativa dos usuários. A tentativa não vingou.
O Brasil não aderiu à iniciativa portuguesa de 1911 e continuou escrevendo farmácia com ph, o que hoje nos parece meio esquisito, mas na época teve ferrenhos defensores. Como hoje em relação à atual reforma, eles argumentavam que nenhuma era necessária.
Do século XIII até meados do século XVI a ortografia do galego-português era predominante fonética. Com o aumento dos estudos humanísticos a partir daí, inverteu-se a tendência e a escrita passou a ser, até o início do século XX, etimológica ou pseudoetimológica. A reforma de 1911, portanto, é como um retorno à ortografia fonética da Idade Média, com aplicação mais uniforme em vista da atuação da Academia de Ciências de Lisboa, fundada no reino de d. Maria I, em 1779.
Em 1915, a ABL novamente tentou promover a unificação, mas voltou atrás em 1919. Em 1929, fez nova tentativa, lançando um novo sistema ortográfico. Não funcionou.
O primeiro Acordo entre Brasil e Portugal foi aprovado em 1931, mas não conseguiu também a desejada unificação. A Constituição do Brasil de 1934 determinou a volta da ortografia vigente até 1891. Houve tão grande resistência que a Constituição do Estado Novo, de 1937, trouxe de volta a de 1931, que de qualquer maneira não havia sido posta em prática. Em 1943, foi celebrada a Convenção Ortográfica entre o Brasil e Portugal. No entanto, a persistente divergência nos Vocabulários das academias dos dois países, levou à Convenção Ortográfica Luso-Brasileira de 1945. Esta, mais uma vez, foi adotada apenas em Portugal, mas não no Brasil. Aqui, em 1971, e em Portugal, em 1973, adotaram-se leis que reduziram as divergências, persistindo, porém, apesar da aproximação, sérias diferenças. O Acordo obtido em 1975 não chegou sequer a ser aprovado oficialmente nem lá nem cá.
O processo continuou no encontro dos países lusófonos, promovido pelo então presidente José Sarney em 1986 no Rio de Janeiro, pela primeira vez com a participação dos países africanos de expressão portuguesa, ocasião em que foi aprovado o Memorando Sobre o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, inviabilizado, todavia, em sua aplicação, pela reação contra ele em Portugal, mas que se tornou a base do atual Acordo. Finalmente em 1990, em reunião em Lisboa, foi aprovado este que acaba de entrar em vigor.
Na próxima semana voltarei ao assunto.

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