20 de junho de 2004

Educação e Desigualdade

Jornal O Estado do Maranhão 
O IBGE publicou há poucos dias sua mais recente Pesquisa Mensal de Emprego, com as informações sobre a força de trabalho brasileira classificadas por raça. Será, a sociedade dos nossos desejos para o Brasil, essa dos números divulgados nessa pesquisa? Vejamos.
Entre as pessoas ocupadas, a renda média mensal dos brancos é mais de duas vezes a renda dos negros ou pardos que apresentam, ainda, uma taxa de desemprego de 15,3%, enquanto a dos brancos é de 11,1%. Esta é uma taxa alta, mas, de qualquer maneira, bem mais baixa, em termos relativos, do que a outra.
As coisas pioram quando olhamos homens e mulheres separadamente. Estas, no caso de serem negras, têm um rendimento médio por hora de R$ 2,78.  Os homens brancos, em contraste, recebem R$ 7,16, as mulheres brancas R$ 5,69 e os homens negros R$ 3,45. Logo, os homens brancos estão no alto da hierarquia econômica e as mulheres negras lá embaixo. Quem nasce homem e branco no Brasil tem melhor chance de se dar bem na vida do que as mulheres brancas, os homens negros e, principalmente, as mulheres negras.
Não existe uma explicação única para tão grande desigualdade. O preconceito contra as mulheres e os negros, e mesmo a discriminação, explicam parte da história. No entanto, um outro dado, sobre escolaridade, nos mostra a complexidade da situação. Os brancos ocupados têm em média 2,1 anos de estudo a mais do que os negros e pardos. Vários estudos mostram que quanto mais alta a escolaridade, maior a chance de uma pessoa encontrar um bom emprego e, por esse meio, de melhorar sua renda. Portanto, uma grande fração da diferença na taxa de desemprego entre brancos e negros pode ser explicada pela diferença na escolaridade. Todavia, não é fácil separar os efeitos do preconceito dos da baixa escolaridade. Como distinguir com segurança o desemprego devido a um e outro fator?
A análise não se esgota aí. Sabe-se que a pobreza, assim como a riqueza, é transmitida de uma geração às seguintes. Filhos de ricos tendem a continuar ricos. Filhos de pobres também reproduzem as condições econômico-sociais dos pais, embora isso comporte exceções a confirmar a regra.  Inicialmente, os negros livres, filhos de escravos, ou os libertos, uma percentagem considerável da população, encontravam-se na pobreza. Tal condição lhes negava acesso à escolaridade adequada à obtenção no mercado de trabalho de empregos com boa remuneração. O resultado foi mais pobreza entre os negros na geração seguinte, e assim por diante, em um círculo vicioso. Essa dinâmica perversa gerou, assim, forte associação dos negros com a pobreza. Eles são os pobres do Brasil.
Esse quadro nos leva a concluir que as políticas de cotas nas universidades brasileiras, concebidas com o fim de oferecer aos negros oportunidades de acesso à educação superior, fator de redução de desigualdades, teriam melhor chance de obter bons resultados se fossem dirigidas aos pobres, em sua maioria negros. Esse enfoque evitaria o problema da discriminação reversa contra os brancos, a estigmatização dos “cotistas” no ambiente universitário e os problemas criados pela autodeclaração dos vestibulandos com o fim de identificação dos negros.
Seja como for, o problema terá de ser solucionado, se quisermos construir um país justo. Enfrentar e resolver esse problema faz sentido tanto do ponto de vista ético quanto do econômico, pois assim eliminaremos uma injustiça histórica e incluiremos no mercado de consumo vastas parcelas de nossa população, hoje dele completamente excluídas.
O acesso à educação por todos, brancos e negros, nas mesmas condições, é o caminho por onde devemos seguir. Parece haver, porém, alternativas ao sistema de cotas, que devem ser discutidas cuidadosamente.

6 de junho de 2004

Passeios

Jornal O Estado do Maranhão 
Os cachorros passeiam bem cedo nas manhãs do bairro do Olho d’Água. São de raças e tipos diversos, mas todos balançam a cauda da mesma maneira, tranqüilamente satisfeitos, quase sorridentes, indiferentes ao sentido da vida ou à falta de sentido.
Há os grandes, de passos pesados. Aparentam fazer um buraco no chão a cada vez que arreiam sem pressa suas imensas patas. Os pequenos, de tão leves no andar, parecem não pisar em nada ou, porventura, lembram o deslizar em skates dos gatos de óculos escuros dos filmes americanos. Avistam-se, também, os gordos, com os lentos movimentos laterais das pesadas ancas, e os magros, que as fazem subir e descer leves com pequenos saltos.
Para quem passeia por uma rua perpendicular à do desfile dos cachorros compridos, eles se mostram aos poucos nos cruzamentos, dando a impressão de sair de uma tela de cinema, tal qual o desbravador de Rosa Púrpura do Cairo. Os curtos são tão curtos que poderiam andar, sem perder o equilíbrio, com apoio nas patas traseiras e na ponta do rabo.
Os mais orgulhosos, de um orgulho triste é verdade, aqueles em posição social mais alta, são levados na corrente pelos caseiros, ilusórios senhores de cães com pedigree. Esses condutores moram em torno do bairro, onde têm seus vira-latas. Experimente libertar da coleira, por um momento, esses animais da cimeira da pirâmide do poder canino! Como atravessar a rua e evitar o atropelamento, como descobrir o caminho de volta para casa, como repelir esses cachorros de rua se um osso aparecer de repente, como disputar uma bela cadela no cio com os adversários acostumados a lutar dia e noite pela sobrevivência, como, enfim, bem avaliar o perigo sempre presente por toda parte e preparar-se com o fim de enfrentá-lo?
Os cachorros de rua, os da base do poder, vagam o dia inteiro completamente livres, vão para onde querem, pois conhecem todos os becos. Ao contrário dos outros, jamais mordem ninguém, embora às vezes façam uma encenação, como se fossem atacar de verdade. De fato, pensam tão-somente em defender-se, quem sabe da outra espécie, a humana, o grande risco das ruas.
Demonstram, cada um, muita calma, com exceção dos traumatizados, sabe-se lá por quais atropelamentos ciclísticos. Esses correm aos berros, ou aos latidos, em direção às bicicletas e as acompanham com ameaças de morder os calcanhares do indefeso ciclista que galhardamente finge não se importar com o perigo.
Mas enquanto, os cachorros, pobres ou ricos, passeiam pelo Olho d’Água, vejam o que anda acontecendo. No Rio Grande do Sul, uma mulher simples do povo, Eva Nazário Vianna, pobre, doente, de 68 anos de idade, foi posta em prisão domiciliar por uma juíza, Romani Dalcin. Ela ficou cinco dias sem poder passear sequer em sua própria calçada. Seu crime foi não pagar durante sete meses a pensão alimentícia de sua neta, no valor total de R$ 516. Naturalmente, seu filho, um marinheiro, pai da menina, responsável pelo pagamento e irresponsável por sua falta, sumiu há muito tempo, quando passeava pelos mares do Sul.
Na Áustria, entrou em vigor uma lei interessante. Durante três meses, os animais entrarão de férias, quando então estarão proibidos de trabalhar. As galinhas, por exemplo, poderão passear à vontade no galinheiro sem qualquer obrigação de aceitar a corte do galo e de pôr seus ovos. Os leões e tigres não poderão apresentar-se nos circos. Vacas, éguas e cabras terão direito a passear ao ar livre, sem a obrigação de ir para o curral cheio dos mal-educados e malcheirosos bois, cavalos e, principalmente, bodes.
Assim a vida segue. Cachorros passeiam no Olho d’Água, vacas, éguas e cabras, na Áustria. O passeio de Eva, porém, é só à roda de seu quarto, como o do personagem de Xavier de Maistre.

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