6 de junho de 2004

Passeios

Jornal O Estado do Maranhão 
Os cachorros passeiam bem cedo nas manhãs do bairro do Olho d’Água. São de raças e tipos diversos, mas todos balançam a cauda da mesma maneira, tranqüilamente satisfeitos, quase sorridentes, indiferentes ao sentido da vida ou à falta de sentido.
Há os grandes, de passos pesados. Aparentam fazer um buraco no chão a cada vez que arreiam sem pressa suas imensas patas. Os pequenos, de tão leves no andar, parecem não pisar em nada ou, porventura, lembram o deslizar em skates dos gatos de óculos escuros dos filmes americanos. Avistam-se, também, os gordos, com os lentos movimentos laterais das pesadas ancas, e os magros, que as fazem subir e descer leves com pequenos saltos.
Para quem passeia por uma rua perpendicular à do desfile dos cachorros compridos, eles se mostram aos poucos nos cruzamentos, dando a impressão de sair de uma tela de cinema, tal qual o desbravador de Rosa Púrpura do Cairo. Os curtos são tão curtos que poderiam andar, sem perder o equilíbrio, com apoio nas patas traseiras e na ponta do rabo.
Os mais orgulhosos, de um orgulho triste é verdade, aqueles em posição social mais alta, são levados na corrente pelos caseiros, ilusórios senhores de cães com pedigree. Esses condutores moram em torno do bairro, onde têm seus vira-latas. Experimente libertar da coleira, por um momento, esses animais da cimeira da pirâmide do poder canino! Como atravessar a rua e evitar o atropelamento, como descobrir o caminho de volta para casa, como repelir esses cachorros de rua se um osso aparecer de repente, como disputar uma bela cadela no cio com os adversários acostumados a lutar dia e noite pela sobrevivência, como, enfim, bem avaliar o perigo sempre presente por toda parte e preparar-se com o fim de enfrentá-lo?
Os cachorros de rua, os da base do poder, vagam o dia inteiro completamente livres, vão para onde querem, pois conhecem todos os becos. Ao contrário dos outros, jamais mordem ninguém, embora às vezes façam uma encenação, como se fossem atacar de verdade. De fato, pensam tão-somente em defender-se, quem sabe da outra espécie, a humana, o grande risco das ruas.
Demonstram, cada um, muita calma, com exceção dos traumatizados, sabe-se lá por quais atropelamentos ciclísticos. Esses correm aos berros, ou aos latidos, em direção às bicicletas e as acompanham com ameaças de morder os calcanhares do indefeso ciclista que galhardamente finge não se importar com o perigo.
Mas enquanto, os cachorros, pobres ou ricos, passeiam pelo Olho d’Água, vejam o que anda acontecendo. No Rio Grande do Sul, uma mulher simples do povo, Eva Nazário Vianna, pobre, doente, de 68 anos de idade, foi posta em prisão domiciliar por uma juíza, Romani Dalcin. Ela ficou cinco dias sem poder passear sequer em sua própria calçada. Seu crime foi não pagar durante sete meses a pensão alimentícia de sua neta, no valor total de R$ 516. Naturalmente, seu filho, um marinheiro, pai da menina, responsável pelo pagamento e irresponsável por sua falta, sumiu há muito tempo, quando passeava pelos mares do Sul.
Na Áustria, entrou em vigor uma lei interessante. Durante três meses, os animais entrarão de férias, quando então estarão proibidos de trabalhar. As galinhas, por exemplo, poderão passear à vontade no galinheiro sem qualquer obrigação de aceitar a corte do galo e de pôr seus ovos. Os leões e tigres não poderão apresentar-se nos circos. Vacas, éguas e cabras terão direito a passear ao ar livre, sem a obrigação de ir para o curral cheio dos mal-educados e malcheirosos bois, cavalos e, principalmente, bodes.
Assim a vida segue. Cachorros passeiam no Olho d’Água, vacas, éguas e cabras, na Áustria. O passeio de Eva, porém, é só à roda de seu quarto, como o do personagem de Xavier de Maistre.

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