23 de fevereiro de 2003

Reynaldo Faray

Jornal O Estado do Maranhão 
Quando o grande artista maranhense Reynaldo Faray morreu inesperadamente, na semana passada, Oliveira Ramos, um dos nossos melhores cronistas, disse escrever “sobre ele sem conhecimento de causa ou com pouco conhecimento”. Eu, de minha parte, devo dizer que pretendo fazê-lo sem nenhum conhecimento pessoal, pois nunca tivemos a oportunidade de um encontro, mesmo breve.
Dessa forma, duas dificuldades se me apresentam agora à tentativa de dizer aqui alguma coisa sobre o morto. A primeira é a de escrever depois daquele cronista. Sendo o excelente escritor que é, não vejo como eu poderia expressar melhor do que ele a grande admiração dos maranhenses por Reynaldo. Devo por isso resignar-me a tentar apenas, mas sem a esperança de sucesso. A segunda dificuldade está naquele fato que mencionei, de não ter sido seu amigo, próximo dele. Esta, porém, não deve impedir-me de dizer algumas coisas sobre o homem que muitos, como eu, viam diversas vezes somente de longe, poucas de perto, mas sempre com admiração, nas suas apresentações teatrais ou em seus espetáculos de dança, espalhando sua arte por todos os lugares.
Imagino o menino nascido na cidade de Cururupu, no interior longínquo do Maranhão, ao observar a teatralidade sagrada da missa e das procissões, deslumbrado com o padre nos seus paramentos, nos seus gestos, nas suas expressões e no seu Latim, tudo repetido depois por Reynaldo em casa, sentindo e aceitando já sua vocação para o teatro. Isso ele devia sentir como um impulso irresistível, porém intuitivamente entendido e prazerosamente aceito. Não sabia ainda, ali, naquela hora, não poderia em verdade saber, que sua vida seria vivida em torno de outras vidas por ele iluminadas, tanto as do palco, dirigindo-as ou interpretando-as, como as de seus incontáveis discípulos, os seus maiores amigos. Mas, não saberia mesmo? Não ouviria uma voz interior sussurrando-lhe constantemente: “Irás cumprir a missão de ser a inspiração de muitas gerações”?
Reynaldo Faray fez teatro, cinema, dança, televisão. Foi sempre pioneiro e vanguardista em tudo. Mal se pode imaginar hoje em dia a determinação, a coragem e a força de vontade de que ele teve de se valer nessas áreas a fim de enfrentar, no início de sua carreira, os preconceitos, a inversão de valores, a falta de informação, a escassez de recursos materiais e humanos – estes ele ia formando entre seus alunos – de uma cidade acanhada e provinciana como São Luís, em alguns aspectos ainda hoje uma ilha geográfica, cultural, política e econômica. Penso ter sido ele, antes de qualquer coisa, uma vocação para desafiar e destruir todas essas forças retrógradas, comumente postas no caminho dos grandes artistas. O ambiente não lhe moldou, como o faz a muitos de nós, pessoas comuns. Foi moldado por ele.
O conjunto de projetos que imaginava executar durante este ano de 2003 mostra bem como, aos 71 anos de idade, seu impulso artístico e seu entusiasmo pelo seu ofício nunca perderam a força, nunca diminuíram, depois de quase quarenta anos de carreira. Ia iniciar os ensaios de Bodas de sangue, de Garcia Lorca, segundo leio nas declarações de sua amiga Lúcia Nascimento,  ex-secretária de Cultura do Estado, atriz e grande parceira em muitas de suas iniciativas. Queria também homenagear o extraordinário Nélson Rodrigues, com as encenações de Vestido de noiva e Álbum de família, e dar aulas de teatro e dança para populações carentes nos Centros Sociais Urbanos. Serão poucos os que, com a metade de sua idade, poderão ter e mostrar tamanha disposição para o trabalho.
Felizmente, e ao contrário do que muitas vezes acontece com pessoas de grande valor, o reconhecimento da importância de seu trabalho deu-se em vida, como se pôde ver pelos várias homenagens que vinha recebendo, em um período em que ele era ainda produtivo, como continuou a sê-lo até o fim. É como deve ser, porque, afinal de contas, nem ele nem qualquer um de nós seremos testemunhas de nossa própria posteridade.

16 de fevereiro de 2003

As palavras

Jornal O Estado do Maranhão 
As palavras têm história. Como todos nós, como todos os seres vivos, como o próprio idioma, como o próprio Universo, como a própria vida, como o próprio tempo. Longa história, na maioria dos casos, breve em outros, finita em todos. Mas, ao nascer, crescer e morrer, seguindo a ordem natural das coisas, elas transmitem seus genes etimológicos aos descendentes e freqüentemente nestes sobrevivem.
Vamos tomar o exemplo do Latim. Quantas palavras desse idioma chamado de morto, usadas pelos antigos romanos, fazem parte do nosso cotidiano. Até os aparentes neologismos condenáveis vêm do Latim. Como o verbo deletar, incorporado ao português através da língua dos novos romanos, com o verbo to delete, que significa apagar, suprimir, remover, destruir, muito usado atualmente no jargão da informática. Sua origem está em deletus, particípio passado do verbo delere. Muito se ouve falar da sentença de Catão, o Antigo, ou o Censor, ao final de seus discursos no Senado romano, quase dois séculos antes de Cristo: Delenda Carthago est, Cartago deve ser destruída. Portanto, nosso deletar de hoje tem parentesco com a delenda de Catão. Pedigree não lhe falta.
O certo é que as palavras não têm donos individuais por fazerem parte do patrimônio comum e intangível dos povos, servindo como um dos mais distintivos sinais de nossa condição humana. Elas são instrumentos de comunicação entre os seres humanos, embora se saiba ser essa necessidade de diálogo impossível de ser inteiramente satisfeita.
Elas são de posse coletiva. Seus usuários são livres para usá-las à vontade e acrescentar seu quinhão de sutileza a seus significados. Aí está a razão de terem os vai-e-vens e os altos e baixos que também temos na vida. Algumas nascem e permanecem quase desconhecidas, levando uma existência provinciana, obscura e tediosa. Nem dos eruditos são conhecidas. Outras, não. Nascem destinadas ao sucesso, às primeiras páginas dos grandes jornais, às entrevistas e debates na televisão e no rádio, aos artigos irados de intelectuais de esquerda. Duram ou não.
Lembro de uma, lançada no mundo da pobreza de expressão pomposa pela ministra da Fazenda do governo Collor, Zélia Cardoso de Melo. Era a palavra enfim que, parece, quer dizer finalmente, por fim. Pois bem, a ministra dava um jeito de encaixá-la em suas respostas fosse qual fosse a pergunta. “Ministra, o Banco Central vai forçar uma elevação dos juros?”, perguntava a repórter. “Pode ser, depende..., enfim...”. Mal começava, já parecia estar no fim. O que devia vir por último, como uma espécie de aviso de que finalmente o pensamento exposto anteriormente ia ser resumido e concluído, vinha no começo. O trejeito pegou, revelou-se durável. Até hoje se ouve tal praga quando o entrevistado não tendo dito nada ainda quer dar a impressão de haver completado um brilhante raciocínio.
Mas, eu gosto mais da grande vítima dos maiores abusos verbais dos últimos oito anos: neoliberal. Durante esse período, tudo que não seguisse a cartilha político-econômica dos partidos de esquerda, entre eles o PT (ou seria de ex-esquerda?), levava na testa aquele carimbo e mais o de conivente com os maléficos desígnios do FMI. Aqui na província, por causa do que escrevi certa vez sobre o assembleísmo e as freqüentes greves de professores nas universidades federais fui insultado de neoliberal.
De repente, contudo, o termo sumiu, emudeceu, notadamente a partir do início da campanha eleitoral de 2002. É como se tivesse sido deletado do léxico da língua portuguesa. Como a oposição esquerdista de ontem virou governo e adotou as mesmas políticas do que saiu, antes chamado de neoliberal, suponho não ter sobrado ninguém na oposição para atirar na cara do novo governo a tão temida ofensa.
A palavra neoliberal, enfim, desprezada tão injusta e cruelmente, recolheu-se aos dicionários de onde não pretende sair nunca, segundo suas próprias palavras. Cumpriu aqui fora seu triste destino de mais confundir, do que esclarecer.

9 de fevereiro de 2003

Lisboa, nova cidade

Jornal O Estado do Maranhão 
Chego a Lisboa. No caminho até o hotel o motorista de táxi me informa de que, havia pouco, devido ao despiste de um autocarro duas pessoas haviam se ferido. Isso, dizia ele, estava a acontecer freqüentemente nos últimos tempos. Penso na longa viagem e sinto o cansaço. Eles certamente estavam a afetar minha compreensão das coisas mais simples ditas em português, mas resolvo ficar calado a fim de não dar a impressão de não saber a língua.
Antes, no aeroporto, ao entrar no elevador com a minha bagagem eu havia encarado aquele aviso: “carregue o botão”. Ora, como eu podia carregá-lo se ele estava firmemente fixado? Além do mais, poderia alguém fazer algo de útil com ele, se fosse possível levá-lo? Seria um brinde insólito aos recém-chegados, para ajudá-los a ter uma boa estada em solo português? Ou quem sabe tratava-se de algum tipo de espionagem eletrônica destinada ao controle dos brasileiros em Portugal? Agora me aparecia a história do despiste. Eu despistei, fiz que tinha entendido e disse que já não se podia mais confiar nesses perigosos autocarros. Bom mesmo são os aviões que não se despenham a toda hora.
O simpático motorista percebendo meu interesse por futebol fala do jogador brasileiro Jardel, o maior goleador do campeonato português até o ano passado e um dos mais eficientes de todos os campeonatos europeus durante várias temporadas.  Acaba fazendo referência a um jogo amigável a ser realizado no dia seguinte. Empolga-se quase tanto quanto um torcedor corintiano e se distrai. Tem então de aplicar um forte travão no carro, para evitar um acidente. Refere-se também ao fanatismo dos adeptos do Sporting, de Lisboa, do Benfica e de outros times.
Depois do susto pergunto se ele já ouviu falar de Robinho, um novo gênio brasileiro do futebol, de dezoito anos. Quando ele diz que não eu, enchendo o peito de orgulho patriótico, recomendo que ele anote esse nome, pois em pouco tempo vai ouvir falar dele como o novo Pelé. Qual um personagem de Nélson Rodrigues, digo e repito, de olho rútilo, sem desfitá-lo, a mão esquerda crispada no seu braço direito: o novo Pelé.
No apartamento do Hotel Fênix na praça Marquês de Pombal, curioso acerca das novelas brasileiras na televisão portuguesa, tento ligar o aparelho de TV, mas atrapalho-me ao tentar usar o telecomando e tenho de recorrer ao auxílio dos solícitos funcionários. Quanto ao meu telemóvel, nem pensar. Não posso me comunicar através dele em terras lusitanas.
Nas folgas do trabalho, pude ver Lisboa. Vê-la, na Baixa, com a rua Augusta ligando a praça do Comércio à do Rossio, é, em grande parte, ver uma cidade dos séculos XVIII e XIX, com a qual a São Luís histórica tem semelhanças. É também admirar-se da excepcional obra de reconstrução, de Pombal, ou, mais propriamente, de construção de uma nova da cidade no local da antiga, após o grande terramoto de 1o de novembro de 1755.
A este seguiu-se uma onda gigantesca e um grande incêndio. Tudo isso destruiu mais de um terço da cidade, fez desaparecer a maior parte dos traços da antiga cidade medieval de então e matou de 10 a 15 mil pessoas numa população entre 160 mil e 200 mil habitantes. O palácio real, o recém-construído edifício da ópera, a Casa da Alfândega, a Casa da Índia e o Terreiro do Paço, onde foi construída a praça do Comércio, transformaram-se em entulhos.
Pombal deu à nova cidade uma grande uniformidade arquitetônica. As ruas foram traçadas num formato quadriculado e os novos prédios foram erguidos em dimensões padronizadas, segundo o historiador inglês Kenneth Maxwell. A idéia era estabelecer um lugar de comércio e de governo, embora não tenha sido construído nenhum palácio real, colocando-se, todavia, como símbolo do poder do rei, a estátua eqüestre de D. José I na praça do Comércio. A Lisboa reconstruída é um monumento ao gênio criador dos portugueses.
Ah, sim, despistar-se é sair da pista, carregar é apertar, autocarro é ônibus, despenhar-se é cair de grande altura. Faz sentido.

2 de fevereiro de 2003

Armadilhas

Jornal O Estado do Maranhão 
Perguntam-me se não me falta assunto para escrever todas as semanas. Falta, claro, algumas vezes. Acontece com todo mundo que escreve. Ninguém esteve, está ou estará livre dessa pane periódica de idéias. Em algum momento ela vai atacar. É uma situação semelhante à do sujeito chamado a dizer alguma coisa, as famosas “breves palavras para não me alongar”, de duração, não raro, de no mínimo meia hora. De repente, lhe dá um branco. Como tem de dizer alguma coisa, ele diz. Tem início aí uma pequena tragédia. Ele começa a soltar as primeiras coisas que lhe vêm à cabeça, a dar voltas, a repetir-se, a dizer que vai terminar logo, mas, de verdade, não diz coisa nenhuma nem sabe como terminar. Exceto no caso de o “discurso” ser dirigido a seu chefe na festa do seu aniversário. Aí o discursador sabe direitinho os elogios a fazer. Nesta última situação, não falta matéria para ele deitar falação à vontade.
Quem escreve, porém, precisa ter cuidado. O vento leva a palavras, mas não a palavra escrita. Esta, se não dura tanto tempo, especialmente se quem a lança no papel não é um Cervantes, Shakespeare, Dante ou Camões, é, mesmo assim, mais durável do que as vinte e quatro horas do dia de sua escrita. Será, durante algum tempo, a prova de que o dito foi incontestavelmente dito.
Há uma fonte quase inesgotável de temas à disposição imediata do cronista atento. É a imprensa. Todos os assuntos marcam encontro nesse lugar. Nada lhe escapa: amores, ódios, ciúmes, crimes, lutas pelo poder, inveja, amizade, injustiça, justiça, assassinatos, vaidades, roubos, subornos e tudo mais do humano viver e morrer.
Outro dia, por exemplo, li uma notícia sobre um homem, humilde cidadão cumpridor de seus deveres, mas não pagador de impostos porque não tinha renda para tal, bom pai de família, humilde, trabalhador, honesto. Ele foi a uma delegacia de polícia registrar uma queixa sobre qualquer coisa sem nenhuma importância do ponto de vista do delegado, mas muito importante para ele e sua família. Acabou preso, sob a acusação de ser um perigoso traficante de quem a polícia andava atrás havia muito tempo. Seu azar foi ter o mesmo nome do bandido.
Ora, seria muito fácil ver que o preso não era o traficante pela verificação da filiação de ambos, ou pelas suas impressões digitais. Mas, naturalmente, o delegado supôs estar diante de um documento de identidade falso, de mais uma prova de culpa do acusado. Além de traficante, era um falsário, já se via!
Depois do homem ter passado algumas noites de terror na delegacia, sem poder dormir porque as condições de higiene do local não lhe permitiam, concluíram ser ele inocente. Começou, então, a segunda parte dessa história kafkiana. Apesar do reconhecimento do erro pelas autoridades policiais, ele não foi solto imediatamente. Faltava um papel qualquer de um juiz ausente. O papel não aparecia, muito menos o juiz. O resultado foi mais tempo de prisão arbitrária do inocente, até o delegado render-se ao bom senso, que lhe mandava soltar o humilhado.
Situações como essa permitem-nos perceber a razão de o adjetivo kafkiano ser tão popular como sinônimo de acontecimentos sem um sentido aparente. Uma das características da obra literária de Kafka, escritor tcheco de língua alemã, por certo um dos maiores do século XX, é o tratamento de absurdos desse tipo, num tom formal e frio, num estilo preciso, simples e clássico, como se estivesse tratando de fatos naturais do cotidiano e não de engrenagens sinistras que esmagam o cidadão comum. Desse contraste entre forma e conteúdo, nasce a força da literatura de Kafka.
É inevitável a comparação da situação do pobre homem injustamente preso com a de uma personagem do romance do tcheco, O Processo, logo na frase de abertura: “Alguém certamente havia caluniado Josef K. pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum.”
É isso que se vê diariamente. De uma forma ou de outra, nós todos vivemos também presos a armadilhas e à violência irracional sem remédio.

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