8 de janeiro de 2006

A outra metade

Jornal O Estado do Maranhão
Nísia Floresta Brasileira Augusta era o pseudônimo de Dionísia Gonçalves Pinto, nordestina do Rio Grande do Norte. Ela viveu no século XIX e foi, no Brasil, pioneira na defesa dos direitos das mulheres, numa época de completo domínio dos pais, maridos e, até, irmãos sobre elas, que tinham alguns direitos básicos negados: os de se educar, votar e trabalhar fora do lar. Em sua maioria analfabetas, eram com facilidade controladas. A primeira obrigação delas era o de submissão à vontade masculina, imposição vendida como lei da natureza.
Nísia escreveu vários livros em português, francês e italiano, entre eles Direitos das mulheres e injustiça dos homens, de 1832, o mais conhecido, em que rejeita a superioridade masculina. Ela defendia a idéia de ser a educação feminina o melhor caminho de tornar as mulheres boas mães e esposas. Essa visão, hoje com ares de coisa retrógrada, representou no seu tempo um grande avanço, pois valorizava o papel social delas, que até então consistia tão só em conformar-se com o papel de procriadoras, de responsável na sociedade pela geração de numerosas proles.
Ao ler um artigo sobre Nísia, essa extraordinária figura do feminismo do Brasil, na Revista de História da Biblioteca Nacional, de dezembro de 2005, pude, por comparação com os dias atuais, ver o quanto se avançou na guerra à opressão contra as mulheres. Hoje, elas ocupam posição de destaque em quase todas as profissões, o que lhes permite ter um grau de independência inimaginável no século passado. Inimaginável no geral, pois sempre houve exceções, espíritos independentes, que desafiaram as regras e abriram caminho para mudanças mais adiante.A nova liberdade lhes deu a chance de, ganhando o próprio sustento, deixar um homem a quem já não suportassem. Hoje, elas participam da vida política do país, não apenas votando, mas sendo votadas para cargos no Executivo e no Legislativo, em todas as esferas de governo, atuam na vida econômica, com seus próprios negócios ou na função de executivas de grandes empresas multinacionais, e também nas profissões liberais a exemplo da medicina, odontologia, direito, ciência econômica, engenharia e muitas outras.
A despeito, todavia, do progresso, e descontados alguns equívocos do movimento feminista, como o do maniqueísmo de serem os homens a encarnação do mal e elas, do bem, temos muita luta pela frente. Na média, elas ganham menos do que os homens, por desempenho nas mesmas funções, sendo a situação mais injusta ainda com relação às negras, cuja remuneração é mais baixa do que a das brancas. De um modo geral, as mulheres, ao contrário dos seus companheiros, cumprem jornada dupla ou tripla porque passaram a trabalhar fora, mas não deixaram de fazê-lo em casa, no cuidado com os filhos, antes e depois do seu expediente profissional.
A resistência cultural é o maior obstáculo a mais avanços no curto prazo. O machismo, do qual elas mesmas não estão imunes, é a força de maior resistência contra alterações no statu quo. Vêem-se casos e mais casos de homens que, tendo se separado da mulher e permanecido sós, ou mesmo tendo constituído nova família, perseguem as ex-companheiras com a intenção de impedi-las de seguir o mesmo caminho, de refazer suas vidas com outros homens, sob ameaças de violência física e, até, de assassinato, como se elas fossem propriedade deles.  Violência, por sinal, que em diversos casos, na convivência diária, não é apenas física, mas principalmente psicológica e sexual, levando a todo tipo de humilhação.
É de lamentar que os governos tratem com descaso assunto tão importante na construção de uma sociedade saudável como Nísia desejava e todos nós desejamos. Afinal, trata-se de assegurar a dignidade para metade da humanidade, a metade melhor.

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