16 de novembro de 2003

Burocratite aguda

Jornal O Estado do Maranhão 
No Brasil, as pessoas de mais de 90 anos são odiadas pela burocracia estatal, que adora fazer cadastros, remédio infalível para todas as fraudes. Essas seriam as primeiras hipóteses levantadas por um antropólogo das Maldivas, vamos supor, em sua pioneira visita ao exótico e distante Brasil, na semana passada. Ele haveria de tomar notas para um próximo livro sobre nossa cultura, abordando o tratamento desrespeitoso, arrogante e insensível dispensado pelos nativos a seus idosos e bem poderia tirar suas conclusões desabonadoras para o país com base na desastrada tentativa do INSS, presenciada por ele, de obrigar os anciãos a comparecer aos postos do órgão, com o fim de fazer mais um recadastramento, destinado, supostamente, a combater a roubalheira no sistema de pagamento de benefícios previdenciários.
O caso é este. Um bando de espertalhões, aproveitando-se da impiedosa ineficiência do aparato burocrático estatal, tentam assaltar o erário permanentemente, seguindo uma velha tradição. Muitas vezes, têm sucesso, aproveitando-se de falhas nos próprios sistemas informatizados do INSS. Mortos, alguns aposentados e pensionistas continuam a ser pagos como se vivos fossem. São como mortos-vivos fazendo sobreviver os muito vivos.
A solução para o problema? Suspender o pagamento daqueles com mais de 90 anos, sem nenhum aviso prévio, e obrigá-los a comparecer a uma agência previdenciária a fim de, a bem dizer, provarem sua vivacidade, diferente, claro, da dos fraudadores, já bem comprovada. Seria essa uma forma fácil de desatar o nó, mas apenas do ponto de vista dos burocratas. Vai ver, eles tinham o plano secreto de acabar com o déficit da previdência pela eliminação de beneficiários idosos, com a arma da imposição a eles de um esforço acima de suas aptidões físicas.
Se o governo suspeita de alguma coisa, produza então a indispensável prova do crime. Ninguém tem de mostrar, por conta da fraude cometida por outros, que está vivo, embora ameaçado de morte por essas medidas humilhantes. É do INSS a obrigação de comprovar que vivaldos estão recebendo pelos mortos. Se o sistema de informações sobre óbito não funciona ou funciona mal, a quem cabe corrigi-lo? Não, certamente, ao legítimo e honesto beneficiário sem culpa nenhuma.
 O Ministro da Previdência, Ricardo Berzoini, em entrevista logo depois do início da grita contra a medida infeliz, demonstrou um insensibilidade raramente vista, mesmo entre os mais duros corações burocráticos. Não iria se desculpar de nada, mostrando, ainda, uma fé inabalável em um computador de última geração, presumivelmente capaz de resolver qualquer dificuldade, como se computadores pudessem, sozinhos, fabricar soluções. “Estou convicto de que o combate à fraude vai exigir um grau de sacrifício de todos”, disse ele. “Todos”, aí, só pode significar “todos os que não fraudaram coisa alguma”. Talvez o pecado deles seja o de teimarem em viver muito.
Ao ouvir os gritos de “fora Berzoini”, e sob ameaça do Ministério Público, resolveu seguir seu instinto de sobrevivência e pedir desculpas pela trapalhada. No entanto, conforme declarações do diretor de benefícios do INSS, nem o ministro nem seus assessores pensaram nos transtornos que causaram: “A divulgação prévia acabaria levando às nossas agências muito mais do que os 105 mil beneficiários”. Logo, a solução brilhante seria fazer tudo sorrateiramente. Dessa forma, a procura aos postos seria grande o suficiente para causar contratempos aos usuários, mas não aos burocratas.
Disse o ministro, também, que um número pequeno, tão-só, de pessoas teria sido afetado, como se criar problemas para apenas uma delas, especialmente as mais velhas, fosse pouco.
A maior ironia desse lamentável episódio está na recente aprovação, por unanimidade, no Congresso Nacional, do Estatuto do Idoso e sua recente sanção pelo presidente Lula. Irá tornar-se mais uma dessas leis brasileiras que não pegam? A julgar por esse surto de burocratite aguda, a resposta é afirmativa.

Machado de Assis no Amazon