28 de janeiro de 2001

Uma carta

Jornal O Estado do Maranhão
Tenho uma carta diante de mim e de minha emoção que não é pouca. É a respeito do artigo que escrevi, há algumas semanas, sobre a travessia que se fazia em pequenos barcos, aqui em São Luís, da Beiramar para a Ponta da Areia, antes da construção da ponte do São Francisco. Com a desculpa de avivar minha fraca memória, acerca das marcas e modelos dos carros da época, o remetente se põe a fazer elogios, com sinceridade e justiça, tenho certeza, a meu pai, Carlos Moreira, de quem falei. Dizem que santo de casa não faz milagres. É verdade, menos no caso dos filhos, para quem os pais serão sempre heróis. Foi isso que a carta me fez sentir e lembrar primeiramente.
Mas não foi só isso. A referência às “viagens” a São José de Ribamar, “com direito a despedida”, levou-me de volta ao momento em que, de certo trecho da estrada, num ponto alto, se avistava, como ainda se avista, a cidade do santo lá longe. Era nesse momento que o céu, uma imensa redoma azul e branca, se amarelava e se avermelhava com sol e a poeira da estrada sem asfalto. Tocava o mar lá na frente e todo o resto em volta, sobre as nossas cabeças de viajantes cansados, mas felizes. Aquele mar nos esperava com suas estranhas marés que recuavam distâncias enormes.
O garoto que via aquilo sentia que o grande mundo desconhecido, o mundo fora de seu bairro tornado pequeno naquela hora, devia caber inteiro naquele espaço infinito. Antes o bairro lhe parecera tão grande! Monte Castelo, em outros tempos Areial, lugar de empinar papagaio, jogar bolinha de gude, pelada, botão e onde um roubo de galinha era razão para comentários entre os vizinhos durante semanas. Os roubos não eram tantos.
Continuo a leitura e, de repente, a geografia muda. Revejo South Bend, em Indiana, onde morei, já adulto, por mais de cinco anos. Lá foram fabricados os automóveis da marca Studbaker, do primeiro ao último, até o fechamento da fábrica. Ficou um museu, com os modelos todos que pude admirar algumas vezes. É que o homem da carta é um especialista em carros antigos. Por isso, pode informar que entre os “carros de praça” dos anos cinqüenta em São Luís, um, de Dadeco, a quem também me referi no artigo, era justamente um Studbaker, modelo Champion, ano 1950, de cor entre bege e marrom.
Agora que, para alívio de minha aflição, fui socorrido desse esquecimento, um clarão me deixa ver o carro a conduzir metade de minha família de muitas crianças. A outra metade seguia, talvez, no Pontiac preto, ano 1947 de Astrolábio ou no Oldsmobile, ano 1950 de Pindobussu. Íamos para o pequeno aeroporto da cidade, ao qual se chegava apenas pelo Anil, para receber, vindo de Recife, onde morava, meu tio e padrinho Lino Antônio Moreira Filho; ou minha tia Aldenora Moreira Bello, a tia Dedê, como a chamávamos. Chegava ela, quase sempre, do Rio de Janeiro, em avião modelo Constellation, da empresa aérea Panair do Brasil. Ambos irmãos de meu pai.
O tio vinha passar as férias, de “alto funcionário do Banco do Brasil”, com os irmãos e a mãe, Josefina, minha avó. A tia estava sempre no vaivém de mulher de político e tinha de ir freqüentemente à capital do país na época. Newton Bello, mais tarde governador do Estado, padrinho do meu irmão Luís Carlos, era o seu marido.
Devo, o ter me lembrado agora dessas coisas, a um amigo. O pai dele, Adelino Silva, era amigo do meu e honrado da mesma forma. Sem as informações que Fernando Silva me dá na carta, eu nunca conseguiria reconstruir completamente essa parte das lembranças de um passado que me é tão querido. Como ele diz, com muita propriedade, “vivenciar reminiscências faz bem àqueles que conservam na memória lembranças de seu passado e se comprazem em contá-las”.
Por um desses sortilégios tão comuns, a que chamamos de coincidência, que a vida nos impõe, substituí Luís Fernando Moura da Silva, filho também de Adelino, na direção da Auditoria Geral do Estado, onde trabalho atualmente. Assim la nave va.

Machado de Assis no Amazon