17 de dezembro de 2006

Foi-se Pinochet

Jornal O Estado do Maranhão

Foi-se Pinochet, como se vão todos os ditadores, como se foram Stálin, da União Soviética, Hitler, da Alemanha, Franco, da Espanha, Salazar, de Portugal, Somoza, da Nicarágua, Strossener, do Paraguai, ditadores africanos e mais um infinidade deles, sendo a lista extensa, capaz de nos fazer concluir com segurança que, na história da humanidade, a ditadura é regra e não exceção, não devendo tal afirmação surpreender ninguém, pois a dominação do homem pelo homem, a opressão do mais fraco pelo mais forte, o roubo, a guerra, a violência, a opressão, a tirania, muitas vezes em nome de belos ideais que têm enchido o inferno, tudo isso não é senão a mais pura expressão dos instintos, muitas vezes rebeldes ao controle do processo civilizatório, partilhados pelos humanos com os outros primatas.
Foi-se Pinochet, como iremos todos nós um dia, como uma diferença dele para nós, simples anônimos, comuns, sem pretensão nenhuma, a não ser a da fugidia felicidade: ele deixou um rastro de sangue, de dor, de morte e de barbárie poucas vezes visto na América Latina, agressor de nossos sentimentos de compaixão pelos nossos semelhantes e de empatia com a dor alheia. Enquanto os outros ditadores latino-americanos, pela sua maior parte, preferiam ordenar torturas e assassinatos por vias mais ou menos ocultas, fingindo não conhecer o labor lúgubre de seus subordinados, Pinochet nunca disfarçou sua marca nas ordens, escritas ou não, secretas ou não, de eliminação física de seus opositores. Há, até, telefonemas dele gravados no dia do golpe, sugerindo o assassinato do presidente Allende. Aviltou a humanidade e assassinou chilenos, brasileiros, argentinos, uruguaios, espanhóis com gosto, sem remorsos e sem dúvidas existenciais.
Foi-se Pinochet, mas seus partidários se utilizam do crescimento da economia, que estava a caminho do colapso durante o governo deposto, como justificação de crimes hediondos. Há, neste caso, que se qualificar os feitos do ditador. Houve a decisão correta do ponto de vista econômico de implantação de medidas liberalizantes na economia do país. Isso ocorreu em duas ondas. A primeira sob a orientação de economistas da chamada Escola de Chicago, provocou inicialmente, entre o golpe e meados dos anos 80, recessão e baixo crescimento econômico, período em que a renda per capita dos chilenos caiu 1,1% ao ano. Veio então a segunda etapa, com o aprofundamento das reformas, inclusive a previdenciária, sob o comando de Hernán Buchi, com mais abertura da economia e desvalorização da moeda a fim de estimular as exportações. Daí em diante, sim, mas só 12 anos depois do golpe, a economia começou a crescer a taxas elevadas, com a ajuda também do cobre ainda sob controle estatal, como continua hoje. Seja como for, não faz diferença para a honesta consideração do argumento dos adeptos de Pinochet a ocorrência imediata ou tardia do “milagre econômico”.
Foi-se Pinochet, deixando a seus adeptos esse discurso que gera, à primeira vista, um dilema moral, originado no princípio da solidariedade entre gerações: Seria eticamente justificável sacrificar a geração atual (a de 1973, ano da subida dele ao poder), em termos de privação de direitos humanos, em favor do bem estar material das gerações chilenas seguintes? Ou o certo seria o contrário, não sacrificá-la, já que esses direitos são um valor absoluto, em prejuízo das gerações vindouras, que não poderiam, assim, usufuir os resultados do sacrifício que seus predecessores poderiam ter feito? É falso, todavia, o dilema, último embuste do ditador, porque é possível respeitar os direitos humanos e, ao mesmo tempo, fazer crescer a economia num ambiente democrático, embora seja verdade que esse é um processo mais difícil e talvez mais lento.
Foi-se Pinochet.

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