30 de julho de 2002

Em defesa do centro histórico

Jornal O Estado do Maranhão
Há algum tempo houve uma polêmica em São Luís sobre a utilização de barreiras eletrônicas para o controle da velocidade de veículos em avenidas movimentadas. Alegava-se que o limite estabelecido, de trinta quilômetros por hora nos locais onde as barreiras foram colocadas, e tão somente ali, deixaria os motoristas sujeitos a assaltos ou provocaria engarrafamento do trânsito. Houve até quem procurasse a justiça para impedir o uso delas, com sucesso passageiro.
Até agora, passados meses e meses, ninguém ouviu falar em assaltos nesses pontos nem em engarrafamentos de natureza diferente daqueles que podem ocorrer em qualquer lugar da cidade. Sabe-se, sim, da redução substancial, se não do desaparecimento, com a implantação das barreiras, de mortes por atropelamento e de acidentes nos locais em que elas se encontram. Como ocorreu nas cidades em que esse salva-vidas tem sido utilizado.
A realidade dos fatos levou ao desaparecimento das resistências. Elas certamente provinham de quem não tinha sua vida ameaçada, por estar na posição de condutor de veículos e não na das vítimas potenciais, como pedestres, ciclistas ou usuários comuns das vias públicas que, por uma razão ou outra, se vêem na situação de ter de atravessá-las. Pois bem, agora surge uma outra polêmica, tão provincianamente estreita e sem sentido quanto a outra, a respeito do tráfego de ônibus no Centro Histórico da cidade. A diferença está em que, na primeira, ameaçavam-se, com a morte violenta, pessoas. Na polêmica de agora, a ameaça de morte é ao nosso passado.
Baseado em laudos técnicos, o promotor titular da Promotoria de Meio Ambiente e Patrimônio Histórico de São Luís, Dr. Luís Fernando Barreto Júnior, propôs uma Ação Civil Pública. Nela, solicitava à justiça determinar à Prefeitura de São Luís mudanças no tráfego, no tamanho e no peso dos ônibus em circulação no Centro. Ele procurava, com isso, evitar danos à estrutura dos prédios históricos da área. Ele obteve uma decisão liminar da justiça, que garantia retirada de todas as linhas semi-urbanas. Cabia ao órgão da Prefeitura de São Luís encarregado do trânsito, a Semtur, tomar as providências para fazer valer a determinação.
É importante perceber que o promotor, atendendo a ponderações da Semtur e usando o bom senso, concordou em fazer um acordo. Por este, ele solicitou, de imediato, o cancelamento da liminar. A Semtur comprometeu-se a, num prazo de noventa dias, ainda não esgotado, retirar do Centro algumas daquelas linhas – o que foi feito –, e, em seis meses, apresentar um estudo detalhado, com propostas de solução para atender os usuários e, simultaneamente, o interesse de preservação do patrimônio. As propostas seriam, a seguir, discutidas em audiência pública.
A retirada imediata atingiu somente 18% das linhas semi-urbanas em circulação pelo Centro Histórico. Ora, como tão-só 20% dos usuários dessas linhas se dirigem para lá, pode-se ver que a percentagem dos atingidos pela medida seria de apenas 3,6% (20% de 18%). Número pequeno, principalmente se confrontado com os benefícios para a cidade como um todo. O conflito dá-se entre o interesse desse pequeno grupo e o interesse geral de preservação de nossa história, de nossa cultura.
A presidência do Tribunal de Justiça suspendeu o acordo entre a Prefeitura e o Ministério Público. Na prática, isso significa que não haverá nenhuma estudo de alternativas nem, por conseqüência, discussão pública com a participação dos usuários. O juiz da ação inicial proposta pelo Dr. Barreto Júnior irá julgar o mérito dela com base, unicamente, nas informações dos autos. Ouvir os interessados não seria uma forma mais democrática de procurar um solução conciliatória para o problema?
Só resta aguardar a decisão final da justiça e reconhecer o esforço do promotor na defesa da nossa memória histórica. Mais tarde, quando e se houver danos ao patrimônio, ninguém poderá acusá-lo de não ter tentado evitá-los, de ter pecado por omissão.

21 de julho de 2002

Gaioso

Jornal O Estado do Maranhão
Fui surpreendido, recentemente, por um convite do professor Sebastião Duarte, da Academia Maranhense de Letras. Sob a direção dele, a série Maranhão Sempre, da Editora Siciliano, patrocinada pelo governo do Estado, já editou, ou reeditou, vários livros importantes para a história e a cultura do Maranhão. Alguns com edição esgotada, e raros. Eles estão agora à disposição dos estudiosos de temas maranhenses.
Entre os já publicados temos a História da missão dos padres capuchinhos na Ilha do Maranhão e suas circunvizinhanças, do padre Cláudio d’Ábeville, em tradução de César Marques, autor do famoso Dicionário histórico-geográfico da Província do Maranhão, este atualmente em reedição por Jomar Moraes, presidente da Academia; a Relação sumária das cousas do Maranhão, de Simão Estácio da Silveira; a Estatística histórico-geográfica da Província do Maranhão de Antônio Bernardino Pereira do Lago. Clássicos, todos eles, da nossa historiografia. Outras obras sobre o Estado, de autores maranhenses, ou não, fazem parte da série.
Sebastião decidiu incluir, entre os próximos a virem a público, o Compêndio histórico-político dos princípios da lavoura do Maranhão, de Raimundo José de Sousa Gaioso, com primeira edição de 1818. Houve uma edição fac-similar, de 1970, sob a direção de Joaquim Itapary, também da Academia, na época dirigente da antiga Superintendência do Maranhão – Sudema, quando José Sarney era governador do Estado. Sebastião, em vista do livro tratar de assunto econômico, pode ter achado, pela única razão de eu ter a formação de economista, que eu poderia escrever um pequeno estudo introdutório a essa terceira edição.
Tento mostrar, nesse trabalho, que o livro de Gaioso reflete a visão de um produtor rural sobre a economia do Estado. Ele escrevia em um tempo, 1813, em que o modelo econômico colonial, com origens no mercantilismo português da era do Marquês de Pombal, enfrentava uma crise derivada da queda dos preços do algodão no mercado externo e do aumento do preço dos escravos, dois dos “entraves” à produção de que ele fala.
O Maranhão, desde o século XVII, vivera em extrema pobreza. João Lisboa afirma, na Crônica do Brasil Colonial: apontamentos para a história do Maranhão, que até o início da segunda metade do século XVIII os “processos agrícolas e industriais eram grosseiros e nulos [...]. As subsistências, aliás escassas e simples, tiravam-se principalmente da caça e da pesca; [...]”. Charles Boxer diz, em A Idade de ouro do Brasil: “em 1733 as ruas de São Luís ainda não tinham nomes fixos, sendo familiarmente chamadas pelos nomes das pessoas importantes que nelas moravam, ou segundo o lugar onde iam ter – “a rua que vai para a forca” – por exemplo”. Pobreza por todo canto.
Com a criação da Companhia Geral do Grão Pará e Maranhão, em 1755, e uma conjuntura de preços favoráveis ao algodão, arroz e outros produtos coloniais nos mercados externos, tudo mudou. Financiando o custeio da produção e fornecendo escravos a baixos preços aos colonos, que iam expulsando os povos indígenas de suas abundantes e produtivas terras, para usá-las na agricultura, ao mesmo tempo em que colocava os produtos nos mercados externos, a Companhia, extinta em 1778, tornou possível um período de crescimento econômico acelerado na região.
No modelo consolidado a partir daí, a economia crescia pela expansão da fronteira agrícola, submetia-se a um comando “de fora” e “para fora”, apresentava um mercado interno reduzido e alta concentração da renda pessoal, como mostra Bandeira Tribuzi em Formação econômica do Maranhão. Gaioso, compreendendo as ameaças, ao funcionamento do sistema, do aumento do preço dos escravos, da diminuição dos preços dos produtos exportados e de outros fatores, propõe ou insinua soluções destinadas a evitar um colapso econômico que o prejudicaria diretamente e toda a economia.
O certo é que essa estrutura condicionou negativamente a evolução posterior de nossa vida econômica, política, social e cultural, até os dias de hoje.

14 de julho de 2002

Espírito santo?

Jornal O Estado do Maranhão
Tem-se falado muito ultimamente sobre os perigos de instabilidade econômica, decorrente da proximidade das eleições, sobre a falta de confiança dos mercados nas informações de balanço de grandes empresas norte-americanas, por causa da maquiagem de seus resultados operacionais, com reflexos no mundo todo, e sobre a crise da Argentina e seus efeitos negativos na nossa economia. Preocupações importantes. Mas, acredito, não tão importantes quanto as surgidas com a não-intervenção no Espírito Santo, episódio muito perigoso para o futuro do país.
Todos conhecem, atualmente, o poder imperial do crime organizado no Estado. As evidências são abundantes e crescentes. Segundo os Ministérios Públicos, capixaba e federal, a Polícia Federal e a CPI do Narcotráfico, uma tal de Scuderie Detetive Le Cocq, entidade paramilitar, semelhante às que existem por aí em muitas republiquetas, atua lá, mediante extorsão, intimidação, assassinatos, fraudes, suborno e tudo o mais que se possa imaginar de métodos criminosos, usados no assalto aos cofres públicos e na violação dos direitos humanos. O mais grave, contudo, é o envolvimento, com os malfeitores, de autoridades do Legislativo, Executivo, Judiciário e da Polícia Militar. O presidente da Assembléia, José Carlos Gratz está indiciado em quatorze processos criminais e sofre acusações de ser o chefe do crime organizado no Estado.
Essa situação gerou pedido da OAB ao Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, vinculado ao Ministério da Justiça, de intervenção no Estado. A aprovação foi unânime, com a participação do Procurador Geral da República, Geraldo Brindeiro, do Ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior, do Secretário de Direitos Humanos do governo e do representante do Ministério das Relações Exteriores. A decisão foi encaminhada ao próprio Procurador, que deveria enviá-la ao Supremo Tribunal Federal, para deliberação final.
É difícil acreditar que o ministro Reale e os outros membros do governo presentes à reunião não tivessem discutido, previamente, o assunto, tão importante para o país, entre eles e com o presidente Fernando Henrique Cardoso. Este concordou com a intervenção. Surpreendentemente, todavia, Brindeiro, após “consultar” o presidente, que mudou sua posição depois da reunião do Conselho, arquivou o pedido. Gratz debochou, dizendo: “Eu tinha certeza que o pedido seria arquivado”. O ministro pediu demissão e os criminosos, altamente organizados, tocaram foguete, como disse Reale. Eles tinham razão de comemorar.
Com base no noticiário, podem perceber-se duas considerações “convenientes”. Uma, eleitoreira. Líderes partidários temiam que, por ter sido, o governador do Estado, durante muito tempo, filiado ao partido e, também, da alta direção do PSDB, seu afastamento teria efeitos eleitorais negativos sobre o candidato do partido, José Serra. Alijado do poder, o chefe do Executivo poderia atacar o governo com chumbo grosso. (Teria ele conhecimento de traquinagens ocultas dos dirigentes tucanos?). É a teoria do poder a qualquer preço. Vá o país, o Estado, esse pessoal com mania de honestidade e esses defensores de direitos humanos para os quintos dos infernos. Vale mais ganhar as eleições.
A outra consideração teria a ver com a eventual necessidade de reforma da Constituição, em pontos relativos à economia, a fim de prevenir qualquer instabilidade econômica, na passagem para o novo governo. Qualquer mudança constitucional é proibida, pela própria Constituição, enquanto durar uma intervenção Essa seria provavelmente longa. Mas, claro, a maior instabilidade que uma nação pode enfrentar é a da lei da selva, como a do Espírito Santo hoje. A tragédia da Colômbia está aí ao nosso lado, como exemplo. Estão em jogo as vidas de pessoas que lutam corajosamente contra a bandidagem naquele Estado e em todo o Brasil. Nenhuma conveniência política ou econômica pode justificar a omissão ante a chantagem desses bandidos, que nada têm de espírito santo.

7 de julho de 2002

Os argonautas Brasileiros

Jornal O Estado do Maranhão
Quando Jasão encarregou Argos da construção de um barco com capacidade para vinte e três homens, o projeto foi considerado grandioso demais, naqueles tempos antigos. Ele queria desafiar os perigos do oceano tenebroso, a fim de recuperar uma lã de carneiro, de ouro, chamada velo ou velocino, pertencente a sua família, de dentro uma gruta sagrada guardada por um dragão eternamente insone. Para companheiros de aventura, chamou alguns dos maiores heróis e semideuses da Grécia. Os argonautas, assim chamados por causa do nome do construtor do barco, fizeram-se ao mar e chegaram a um império distante e misterioso.
Lá, Jasão foi obrigado a arar a terra com touros de pata de bronze, que soltavam fogo pela boca e pelas narinas, e semear os dentes de um dragão, dos quais surgiram batalhões de guerreiros que o atacaram. Pois Jasão superou todas as ameaças, com o apoio de Medéia, filha do rei. Depois, com o uso de uma poção preparada por ela, pôs o dragão para dormir e recuperou o velo de ouro.
Tal como fizeram os brasileiros, enfrentando, não um, mas sete dragões do futebol. Felipe Scolari é o nosso Jasão e os jogadores da Seleção, que acaba de conquistar a Copa do Mundo de Futebol pela quinta vez, os nossos argonautas. De início, tão desacreditados por muitos de seus patrícios, recuperaram o velo, por outro nome Taça Fifa, usurpada pelos homens da Gália quatro anos antes. Os feitos dos valorosos guerreiros tropicais foram cantados em prosa e verso em todas as ágoras da nação. Multidões cantaram e dançaram de alegria por todos os lugares.
Os atletas mostraram, como já o fizeram muitas outras vezes, as virtudes do povo brasileiro, de organização, disciplina, determinação, eficiência, competitividade, espírito de equipe, habilidade e inteligência. Projetaram no mundo todo um Brasil que pode funcionar e funciona, dadas as condições adequadas, sob um comando de um homem que junta aquelas qualidades a um espírito apaixonado e dedicado. Eles fizeram, fazem e farão mais pela imagem do Brasil – mais bem avaliado no exterior do que em casa –, do que mil campanhas publicitárias do governo.
O antropólogo brasileiro Roberto DaMatta, da Universidade de Notre Dame, nos Estados Unidos, onde tive oportunidade de estudar economia, disse à imprensa ao fim da Copa: “A Seleção nos expressa porque trouxe excelência. Ela levanta a auto-estima do brasileiro, e a experiência da vitória confirma nossos valores nacionais”. Como eu afirmei, em alguns artigos nas últimas semanas, havia mesmo muita gente que precisava aumentar sua auto-estima. Eles não se cansavam de prever a derrota brasileira. Logo, serão minoria. Renitentes, porém, como são seus remanescentes, deram de atribuir nossa vitória a supostos efeitos positivos de suas críticas.
Mas, de todos os argonautas que participaram dessa aventura única nos gramados do Oriente, um é a metáfora mais perfeita da determinação, da vontade de vencer e da capacidade de superar as adversidades: Ronaldo, o Fenômeno. Depois da derrota na Copa de 1998 na França, de problemas graves nos ligamentos do joelho, de dezessete meses afastado dos campos de futebol e de ser dado como acabado para o futebol, ou de ser considerado incapaz de voltar a jogar como antes, ele retornou, graça ao técnico Felipão, e mostrou toda a magia de seu jogo e o encanto que é capaz de criar.
A imagem de seu gol na segunda partida contra a Turquia, quando ele, cercado por vários defensores tentando desesperada e inutilmente contê-lo, chutou de bico, surpreendendo o goleiro turco, para marcar o gol da vitória, ficará eternamente na nossa lembrança. Obra de arte, feita de determinação e talento. Acredito não haver na história de qualquer esporte quem, tendo sofrido tantos reveses, com tão pouca idade, mas já em meio a tanta glória, tenha, como ele, se levantado com tal força e coragem para retomar seu legítimo lugar no panteão dos deuses do futebol. Mais não fez o argonauta Hércules nos seus Doze Trabalhos.

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