27 de março de 2005

Vida e Morte

Jornal O Estado do Maranhão  
Primeiro, o homem, no abrigo de uma caverna que o protegia das forças da natureza e dos outros animais em luta pela sobrevivência individual e pela perpetuação da espécie, teve consciência de existir. Aos poucos, atenuadas as duras condições de vida, depois de gerado um excedente material que lhe permitiu momentos de brevíssimo ócio, sobrou-lhe algum tempo para reflexão, que, finalmente, veio explodir muito mais tarde, com força incomum, aparentemente do nada, mas como resultado lógico de uma longa evolução, na filosofia dos nossos avós espirituais, os gregos. Veio-lhe daquelas condições iniciais – esta narrativa é apenas uma forma de imaginar a pré-história existencial de nossa espécie – veio-lhe daí, eu dizia, a consciência de sua própria finitude, pois não morriam muitos nas lutas pelo território, pela água, pela alimentação, não morriam os pais, não morriam os amigos, não morriam os inimigos, não morriam todos, até mesmo os mais jovens, os continuadores da espécie? Se a vida era isso – nascer, lutar e morrer, deixando descendentes –, se nenhum ser humano podia escapar dessa armadilha, qual o sentido de viver? Nascemos apenas para morrer? Essas perguntas, dizem os filósofos e é fácil de ver, estão na origem de todo o nosso filosofar. Não há nada nesse campo que não derive delas, embora, às vezes, não pareça.
Vejamos a eutanásia. De início, podemos achar que estamos tão-só diante do dilema de prolongar a vida artificialmente ou de permitir à natureza seguir seu curso natural. Mas, trata-se de fato de tomar uma decisão, seja ela qual for, somente após fazer uma escolha entre distintas visões sobre o sentido da vida. Vale a pena vivê-la depois de destruída a dignidade da pessoa? Vale a pena prolongar o sofrimento inutilmente? As respostas dependerão de como cada um de nós vê a existência humana e, especialmente, de como o próprio doente a considera. Este, porém, como não é raro acontecer, pode não estar em condições de expressar seu desejo naquele momento e pode não tê-lo feito antes. Como decidir? Haverá um critério universalmente aceito para guiar decisões dolorosas como essas? A questão é, e continuará, insolúvel, por lidar com diferentes crenças e visões sobre o mundo e a vida, apesar da concordância da maioria de nós sobre a preservação desta como um valor ético absoluto. Mas, esse valor deverá se impor mesmo quando degrade essa vida, embora na tentativa de mantê-la? Não equivale isso à prática de tortura, abominada por todos?
Há poucas semanas fiz alguns comentários sobre o filme “Menina de Ouro”. Entre seus temas principais está a eutanásia. Um dos personagem, tetraplégica, plenamente consciente de sua situação, manifesta a seu treinador de boxe, católico praticante, o desejo de morrer. A eutanásia embora em desacordo com os preceitos da igreja dele, foi praticada. Agora, na vida real, Terri Schiavo, americana, doente há anos, igualmente católica, não se encontra em condições de expressar seu desejo. Ela está, segundo a definição de especialistas, em “persistente estado vegetativo”. O marido dela deseja a retirada dos tubos capazes de mantê-la viva, o que a levará à morte por inanição. Sua alegação é de ter ela manifestado o desejo de morrer caso se encontrasse numa condição como essa. Os pais dela são contra. Os tribunais estaduais da Florida decidiram pela remoção, medida já posta em prática. É chocante saber que ela morrerá de fome e sede em poucos dias. Não constituirá isso também um tratamento cruel e desumano, desta vez no lado oposto da polêmica?
Situações como essa ocorrem em grande número no mundo todo diariamente. Sua essência não é legal, mas ética. Se causam tanto interesse é porque tratam da mais importante indagação humana: a do sentido da vida e da morte.

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