15 de maio de 2011

Contra a vontade

Jornal O Estado do Maranhão        

Carlos Orlando Rodrigues de Lima, falecido no dia 9 deste mês de maio, viveu longa e proficuamente. Viver por um tempo tão dilatado, 91 anos, idade a que chegou no dia 14 de março de 2010, tendo nascido, portanto, em 1920, não transforma ninguém no seu contrário: de perverso em bom, de desonesto em honesto, de pessoa de má índole em pessoa de boa índole e vice versa. Somos iguais a nós mesmos a vida inteira, sem mudanças essenciais, ainda que sofrendo a poderosa influência, benéfica ou maléfica, do ambiente.
          Como prova dessa afirmação e para a felicidade dos próximos a seu Carlos - esta a forma pela qual todos o chamávamos -, menciono o uso, em todas as circunstâncias, sempre, que fez de seu tempo sobre a Terra, com o fim de confirmar seu jeito de ser a figura extraordinária, querida e, chego a dizer sem nenhum exagero, amada de todos os seus amigos, conhecidos e, em especial, de sua família: dona Zelinda - com quem conviveu por 71 anos, entre namoro e casamento -, filhos e netos. Quando digo extraordinária, quero expressar o sentido original e restrito da palavra: alguém fora do comum, fora ou além do ordinário, excepcional, pouco encontrado, raro.
          Ele foi produtivo até que a chegada de algo que também vencerá a nós todos algum dia, sem exceção, sob uma de mil formas traiçoeiras, começou a roubar-lhe as forças com tanta humanidade empregadas durante décadas e décadas. Foi invariavelmente um homem gentil, amigo de seus amigos e alegre, em suas múltiplas atividades e nas instituições de que foi parte: funcionário do Banco do Brasil, membro do Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão, da Comissão Maranhense de Folclore, do Conselho Estadual de Cultura, quando era Secretário da área Phelipe Andrès, e da Academia Maranhense de Letras, onde tomou posse no dia 21 de fevereiro de 2008, ano do Centenário da casa, sendo o primeiro a fazê-lo no período de minha presidência, no biênio 2008-2010; ator de cinema e teatro, historiador, folclorista, escritor, poeta e colaborador deste jornal. Sua bibliografia é vasta, abrangendo romance, conto, crônica, cordel, folclore, poesia e diversos livros sobre a história do Maranhão.
          No ano passado, numa sessão ordinária da Academia Maranhense de Letras, quando o homenageávamos pelos seus noventa anos, depois das falas de diversos acadêmicos, eu disse que atribuía sua longevidade, não como o fator exclusivo, mas como o mais evidente, ao senso de humor tão dele. No entanto, pensando mais tarde sobre essa característica, vi que ela andava junto com seu estar de bem com a vida, inafastável otimismo, temperamento conciliador e maneira corajosa e tranquila de encarar a morte. Eu admirava a forma como ele falava dessa volta ao nada, sem medos e angústias, aceitando-a como parte do viver, a outra face da moeda única da existência.
Nada nem ninguém conseguiam tirá-lo do sério que, neste caso, não era propriamente "do sério", mas do estado de alegria interior e felicidade perenes. Mas, se acontecia de se aborrecer com alguém, a chateação não durava uma hora. Essa, minha impressão. Não se conhecem seus inimigos porque ele não os tinha, embora eu não duvide de que em tal condição alguém, porventura não o conhecendo bem, houvesse planejado colocá-lo. Não conseguiu nem conseguiria jamais, frustrando-se assim as intenções desse autonomeado e desavisado rival.
         Volto agora a seu bom humor e presença de espírito únicos, capazes de levá-lo a fazer brincadeiras até com ele, mesmo diante da possibilidade de morrer. Já enfraquecido pela doença e percebendo a gravidade de seu estado, ditou a familiares a inscrição da lápide de seu túmulo: "Aqui jaz Carlos de Lima, contra a vontade". Quantos, ante a perspectiva tão dolorosa de fim próximo, teriam essa capacidade de rir e fazer rir, de alegrar aqueles em sua volta, de certa forma consolando-os? Certamente no seu féretro ia um homem contrariado com a morte, mas alegre como o fora em todas as ocasiões, exceto pela saudade que sentirá, igual à que sentiremos.
          Foi-se contra a própria vontade e de igual modo contra a nossa.


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