26 de agosto de 2001

A avó

Jornal O Estado do Maranhão
O menino gostava de ouvir as histórias da avó. Ela chegava às sete horas da noite, pequenina, ligeira, decidida como em tudo que fazia. Sentava-se em uma cadeira de balanço de madeira e lona no terraço do bangalô estilo anos 50, para conversar com a filha e encantar os netos. Abençoava uma a um antes de pegar, para abanar-se, o leque suavemente perfumado (cheiro de missa, de igreja?). Se não o trazia, usava o abano de palha de atiçar os fogareiros. Não era raro ela fumar um cigarro. Ele achava esquisito. Fumar não era coisa de homem?
Trazia fragmentos do dia e da vida trivial só na aparência. A feira pela manhã, o emprego dos filhos, as dificuldades da vida, os vizinhos abelhudos, as zangas com a nora, os comentários da rua estreita e pequena, os bentivis e as andorinhas no beiral da porta-e-janela no centro da cidade.
Nessa casa, uma telha deslocada deixava o sol marcar as horas com um raio oblíquo, formando um feixe de luz de partículas de poeira em suspensão, que desciam e subiam entre o teto e o piso. Relógio imprevisto nas tardes luminosas e calorentas. Quando o sol no chão estava de um lado da rede armada no quarto pequeno, era quase meio dia. Quando passava para o outro lado, eram quase duas horas.
Trazia também o interior, Cajapió, conhecido dele tão-só pelas histórias contadas por ela, de gente, de boi, de cavalo, de mato, de mar, e pelos parentes humildes que ainda moravam por lá. Eles apareciam algumas vezes com suas falas melodiosas e sintaxe própria, curiosa para ele. Nos pés, grossos tamancos, sandálias de couro ou, por vezes, nada. Às costas, cofos de farinha d’água e de jaçanãs salpresas.
Eram presentes para a mãe e a avó, quem sabe para elas não esquecerem da terra, não perderem as raízes, lembrarem-se das origens depois de tantos anos na cidade. Para aqueles meninos da capital ficarem sabendo da existência de outros lugares, diferentes daquele onde nasceram e viviam. Falavam das pescarias, dos peixes de nomes estranhos, dos animais caçados. Almoçavam, saíam, visitavam outros parentes e voltavam ao anoitecer para o jantar. No dia seguinte iam embora, já saudosos de seu chão.
As histórias da avó formavam uma enciclopédia viva de encantamento e imaginação. Eram como as das mil e uma noites, uma nova a cada crepúsculo. Serviam para transmitir um sistema de valores éticos e morais universais, de lealdade, honestidade, solidariedade e fé. Esta não ficou no menino, apesar das tentativas de mantê-la e da freqüência constante a colégios religiosos depois.
Havia as de assombrações, almas penadas, cemitérios, bailes fantasmas, mortos-­vivos nos campos e cidades, vaqueiros castigados injustamente pelos patrões, fugas de romeus e julietas em belos alazães, amores impossíveis, castigo do destino a filhos pela rejeição aos pais, traições de amigos desleais. O real e o imaginário misturando-se. Em algumas, o recurso aos santos e a Nossa Senhora como remédio para as aflições do momento.
Uma falava-lhe com mais afeto ao coração e à imaginação. Era a de um navio encantado que podia ser visto da praia, por volta da meia-noite, a uma distância suficiente para ver-se sua comunidade fantasma. Ele cruzava lentamente toda a extensão da linha do horizonte, iluminado por intensa e branca luz que chegava até à areia, como um altar em procissão, inclinando-se levemente para um lado e para o outro. Depois voltava na direção contrária, tão belo quanto antes, carregando ainda na ponta do mastro maior uma estrela. Aparecia e desaparecia apenas para exibir sua beleza ofuscante.
Muitos anos após, ele assistiu ao filme Amarcord, de Fellini, recordação nostálgica, pelo diretor italiano, de sua aldeia de nascimento. Ao ver a cena da passagem do navio Rex todo iluminado, admirado por Gradisca, suas irmãs e o proprietário do cinema Fulgor, lembrou-se de sua avó, Marcelina Raposo, e compreendeu que ela e Fellini tinham algo em comum: a capacidade de transformar o amor pela terra natal na fina arte de recordar e contar.

19 de agosto de 2001

A cidade, O homem

Jornal O Estado do Maranhão
Os maranhenses orgulham-se do centro histórico de São Luís. Mas não foi sempre assim. Até1979, a situação era triste e dolorosa. Causava vergonha o abandono de seus prédios e ruas, fantasmas de pedra e cal. Eles sequer podiam perambular pela cidade em busca de redenção. Se tinham cometido pecados, já os haviam purgado no longo desamparo.
A partir daquele ano, boas consciências desabrocharam. Sucessivos governos estaduais começaram a trabalhar pela preservação. Mas, nenhum fez tanto quanto o atual. Além de estar cumprindo a maior das etapas de investimentos no centro histórico, a governadora Roseana Sarney tomou a iniciativa que resultou na designação de São Luís, pela Unesco, como Patrimônio da Humanidade.
Enquanto tratava de preservar, seu governo investia na infraestrutura de turismo. Os visitantes começaram a chegar em números crescentes. Não para contemplar ruínas e ouvir lamentações, mas para testemunhar a permanência de nossa história, da qual é bela amostra o antigo e restaurado Solar dos Vasconcelos, sede do Memorial do Centro Histórico.
O Programa de Preservação e Revitalização deve muito ao trabalho de Phelipe Andrés, um mineiro aqui chegado em 1977, para surpreender-se com “uma Ouro Preto à beiramar”. Ele veio cumprir uma profecia de ser encontrado por uma cidade, para dela fazer seu projeto de vida.
Naquele ano, insatisfeito como engenheiro civil no Rio de Janeiro, e de passagem, certo dia, pela imensa rodoviária de São Paulo, Phelipe encontrou, por extraordinária coincidência, um amigo de infância de Juiz de Fora. Agora quase irreconhecível, com longas barbas e ares de filósofo, aquele homem, presença do passado, disse-lhe que, no futuro, prestasse atenção nas cidades que as pessoas iriam mencionar como por acaso. Aquela do sonho de Phelipe iria escolhê-lo. Não o contrário.
Poucos dias depois, encontrou uma amiga maranhense que lhe falou de São Luís e seus sortilégios. Outros transmitiram-lhe o apelo encantatório da cidade. Esta falava, assim, pela palavra dos amigos. Ele aceitou o chamado. Amou-a e a ela se entregou, mal tocou a terra pelas mãos de Miguel Nunes, ex-presidente da Cemar.
Fascinado pela beleza da arquitetura e pelas velas coloridas dos barcos do Portinho, depressa superou seu desconhecimento sobre nossa história. Não exagero ao dizer que ele teve papel fundamental na realização, em 1979, do I Encontro Nacional da Praia Grande, quando foram lançadas as bases conceituais do Programa, ainda orientadoras das ações governamentais na área.
Da reunião, precedida pela vinda ao Maranhão dos arquitetos Viana de Lima, em 1973, e John Gisiger, em 1978, que produziram estudos básicos sobre as políticas de preservação, participaram técnicos estrangeiros e brasileiros, as comunidades, universidades e sindicatos.
A restauração de casarões, igrejas e palácios é a parte mais visível do trabalho. Há outros subprogramas que formam um conjunto coerente: Promoção Social e Habitação, Recuperação da Infra-Estrutura de Serviços Públicos, Incentivo às Atividades de Turismo Cultural, Revitalização das Atividades Portuárias, Recuperação do Patrimônio Ambiental Urbano e da Arquitetura Industrial, Pesquisa e Documentação, e Editoração e Divulgação. Desde 1995, na etapa atual, foram executadas, estão em execução, planejamento ou estudos, 47 obras.
Phelipe tem a capacidade de concentrar-se nas coisas importantes para o centro histórico a longo prazo, de ser realista e paciente ao enfrentar as dificuldade do dia-a-dia, de fazer como o experiente homem do mar que durante a tempestade leva o barco devagar e, sobretudo, de amar a cidade, como o prova ele ter salvo da destruição muitos livros dos séculos XVII a XIX da Câmara de São Luís. Essas qualidades são muito importantes para o sucesso da preservação.
Ao contemplar essa vida de trabalho e dedicação a nossa cidade, pergunto-me por que a Câmara de São Luís ainda não homenageou Phelipe. Ele é o primeiro a merecer tal consideração.

12 de agosto de 2001

Economistas, 50 anos de profissão

Jornal O Estado do Maranhão
Este ano, a semana do economista, a ser comemorada de 13 a 17 deste mês, será marcada, no Maranhão, pelos trinta e cinco anos de implantação do curso de economia na antiga Faculdade de Economia do Maranhão. No resto do Brasil, a comemoração será pela passagem dos cinqüenta anos de regulamentação da profissão. Aqui em São Luís, haverá, organizada pelo Conselho Regional de Economia, uma série de palestras diárias, às 19 horas, no auditório da Uniceuma. Economistas maranhenses e de outros Estados se reunirão para a discussão de temas como ética profissional, situação do setor externo da economia brasileira, conjuntura econômica e social do nosso Estado e origens da crise de energia elétrica no Brasil.
Não se pense, porém, que a profissão tem apenas esse meio século de existência. Ela é antiga de mais de duzentos anos. Firmou-se, com a obra de Adam Smith, no século XVIII, em paralelo à consolidação da moderna ciência econômica, chamada por Carlyle de sombria. Desde então, o estudo de escolhas e suas conseqüências sempre foi o dilema fundamental do economista. Talvez por isso, por mostrarem os resultados inevitáveis da adoção de políticas econômicas alternativas sujeitas sempre à escassez de recursos reais, eles sejam tão rejeitados pelos políticos.
 Estes costumam prometer, em época de eleições, mais saúde, segurança e educação, estradas asfaltadas, menos impostos, salários mais elevados, incentivos fiscais, miraculosos programas sociais, tudo simultaneamente, para implementação imediata, mas sem fonte visível de financiamento para as novas despesas. Dito de outra forma, oferecem o milagre da multiplicação das verbas.
Aí, os economistas aparecem para estragar a festa e advertir a sociedade, como são moralmente obrigados a fazê-lo, acerca das conseqüências desastrosas dessas promessas irresponsáveis, mas – ou por isso mesmo – atraentes. Eles são apenas os mensageiros, mas tornam-se os culpados das más notícias. No entanto, é nos momentos de crise que todos recorrem a eles em busca de orientação, a despeito, algumas vezes, dos insucessos de suas receitas, por conta, principalmente, da dificuldade de se levar em conta adequadamente, na teoria, as mudanças políticas e institucionais que afetam os resultados das políticas econômicas propostas.
No Brasil, a consolidação da economia como disciplina científica merecedora de ser ensinada em cursos universitários estende-se, inicialmente, até a primeira metade dos anos sessenta. Seus praticantes eram, em geral, engenheiros e advogados autodidatas, na maioria das vezes ligados a organismos governamentais, que discutiam sobre o desenvolvimentismo e publicavam ensaios sobre o assunto. Eram pessoas de formação prática que não dependiam do ensino de má qualidade das faculdades da época.
A fase seguinte viu o aparecimento de reformas curriculares e a renovação do quadro de professores com a implantação de programas de pós-graduação e o envio de estudantes para doutorados no exterior. A formação desses profissionais passou, portanto, a ser feita na Universidade e não mais nos órgãos do governo. Isso tudo tornou o ensino de economia mais profissionalizante e ajustou a formação do economista às necessidades do mercado, sem perda, porém, da característica inicial de ligação da ciência econômica com assuntos políticos e ideológicos.
A regulamentação da profissão foi feita em 1951, através da lei 1.411, de 13 de agosto. Mas, independentemente dos aspectos legais do exercício da profissão, os economistas têm dado uma contribuição importante à sociedade, que não se restringe ao campo econômico. Raramente, têm adotado uma atitude de distanciamento do mundo real. Ao contrário, tendo a política como um forte elo com o cotidiano das pessoas, a influência deles tem sido tão profunda na sociedade que até os homens ditos práticos, tão orgulhosos de seu desprezo pelo conhecimento teórico, estão sob o jugo de idéias de economistas mortos, como bem disse Keynes.

5 de agosto de 2001

Um livro de Lucy Teixeira

Jornal O Estado do Maranhão
Eu vi Lucy Teixeira pela primeira vez em 1998 no lançamento da segunda edição de O Maranhão: subsídios históricos e corográficos, de Fran Paxeco.
Jomar Moraes, presidente da Academia Maranhense de Letras, e eu vínhamos saindo, ao fim da solenidade, do auditório da Associação Comercial do Maranhão, no prédio do antigo Hotel Central. Aproximou-se uma figura de mulher pequenina, ágil, de olhos vivos. Jomar fez as apresentações. Ela falou sobre um livro de contos que planejava publicar. Acabei fazendo a editoração eletrônica do volume, o excelente No tempo dos alamares & outros sortilégios, publicado no mesmo ano.
Mas, claro, eu já a conhecia anteriormente, por sua obra e por referências de Bandeira Tribuzi, com quem trabalhei durante alguns anos no Banco de Desenvolvimento do Maranhão. Sabia, assim, da força e originalidade de sua arte e de sua participação destacada em movimentos culturais aqui e fora do Maranhão.
Em Belo Horizonte aonde fora estudar Direito participou de movimentos literários e de artes plásticas junto com Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Otto Lara Resende e Murilo Rubião e conquistou diversos prêmios. De volta a nossa terra, na segunda metade dos anos 40, quando Tribuzi voltava também, mas de Portugal, passou a atuar como jornalista, com o pseudônimo de Maria Karla. Organizou, com Ferreira Gullar, o Congresso Súbito de Poesia e, em seguida, criou o Movimento Antiquentismo contra sentimento fácil em poesia.
Lucy logo foi para a Europa, a serviço do Itamaraty, como adida cultural nas embaixadas do Brasil na Bélgica, Espanha e Itália. Teve, então, a oportunidade de tornar-se amiga de grandes nomes do mundo cultural europeu, entre eles o escritor italiano Ítalo Calvino.
 A partir do encontro na Associação, tornamo-nos amigos. Nasceu, desse modo, o incontestável direito de ela quase me obrigar, depois, a iniciar esta colaboração semanal em O Estado do Maranhão, sendo do jornalista Aquiles Emir a iniciativa paralela de fazer a sugestão ao Correia, editor-chefe, que logo aceitou a idéia, de o jornal reservar-me um espaço. Por uma dessas coincidências chamadas, por vezes, destino, ela fora colega e amiga, no antigo ginásio, de minha mãe Maria Raposo Moreira.
Lucy publicou dois livros de poesia, Elegia fundamental, em 1962, e Primeiro palimpsesto, em 1978. Para o teatro, escreveu Quem beija o leão, além de ter feito uma exposição de pinturas em Monte Carlo, no Mônaco, com boa aceitação da crítica. Suas inúmeras colaborações para jornais ainda precisam ser reunidas em livro, especialmente na área da crítica.
Ela lançou há poucas semanas no Rio de Janeiro a novela Um destino provisório, para a qual escrevi um texto que compõe a orelha do livro cuja bonita capa pode ser vista no site da editora Revan, http://www.revan.com.br/catalogo/0225.htm, bem como o texto da contracapa, uma carta do crítico Antônio Cândido para ela. O lançamento em São Luís será em setembro próximo.
Para mostrar a condição quase sempre subalterna da mulher em nossa sociedade, Lucy usou nesse livro uma estrutura narrativa simples, com aprofundamento psicológico limitado a poucas personagens e bom domínio da técnica de exposição que lhe vem do longo labor literário.
É de Fer­rei­ra Gular a afirmação de os contos dela não contarem muita coisa. Esta novela também não “noveliza” quase nada, mas muito diz. O enredo é secundário, um pretexto para a caracterização de uma situação. Daí a sutileza e os diversos momentos de alta poesia, até no título, sem perda de simplicidade e de clareza, postos por ela numa prosa singular, sempre distante da obscuridade pós-moderna. Ela mais insinua e induz o leitor à reflexão do que afirma.
Ao desnudar uma situação específica – a recusa de uma mulher em aceitar uma posição social secundária em meio a forças hostis – Lucy alcança, simultaneamente, uma dimensão que tem sido universal nas artes: a da afirmação da dignidade e liberdade humanas. Aí está sua arte.

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