31 de dezembro de 2000

Ano, século, milênio

Jornal O Estado do Maranhão
Chegamos ao fim do ano e do século.Pelo menos desde que, há 1500 anos, o papa João I encarregou o monge Dionísio Pequeno de preparar um sistema de contagem do tempo, para uso no mundo católico, sempre houve intermináveis e inconclusivos debates a respeito da data certa para a comemoração da passagem. Este ano e em 1999, o interesse foi ainda maior, porque não estamos somente no fim e no começo dos séculos XX e XXI, mas de um milênio também.
A polêmica se dá, em parte, pelo erro do monge em não considerar o ano zero nos seus cálculos. Imediatamente após o ano 1 a.C., ele colocou o ano 1 d.C como o marco inicial da era cristã. No entanto, se queremos tomar Cristo como base de nossa contagem, então devemos marcar o ano de seu nascimento como 0 e não 1. Pelo sistema de Dionísio, quando Cristo completou 1 ano de idade a seqüência já estava, paradoxalmente, no ano 2 de sua era; quando ele tinha 2 anos ela estava no 3 e assim por diante.
É fácil ver, também, que o primeiro século, que, repito, não teve o ano 0, não terminou no ano 99 e sim no 100. A conclusão é que, de maneira semelhante, o século XX não terminou em 1999, mas em 2000 e que o século XXI começa em janeiro de 2001. Generalizando, pode-se dizer que todos os séculos terminam nos anos 00 e começam nos 01. Esse o argumento da lógica.
Mas, há outro ponto de vista. É o de que o final dos séculos ocorre nos anos terminados em 99, não naqueles em 00. Por quê? As passagens de séculos carregam um grande simbolismo. São ocasiões para reflexões sobre o futuro das pessoas e da espécie humana. É natural a associação de tal atitude mental a mudanças facilmente identificáveis. Por exemplo, a passagem de 1999 para 2000 parece mais exata, drástica, profunda, e está de acordo com a percepção imediata e comum, do que de 2000 para 2001. Portanto, é mais reconhecível pelas pessoas e adequada para assinalar o fim de um século e o começo de outro. Se houve problemas com o primeiro século, corrija-se o engano atribuindo-lhe apenas 99 anos e 100 aos seguintes. Esse o argumento psicológico ou do senso comum.
Consideremos agora um outro ponto interessante: a forte ligação da contagem do tempo com uma longa tradição do milênio apocalíptico. Como se sabe, o Velho Testamento afirma que, no Apocalipse, Cristo retornará para estabelecer um reino terrestre de mil anos antes do Juízo Final. No entanto, como a previsão, ou revelação, jamais se materializou, surgiu a pergunta natural e lógica: — Se não agora, quando?
 “Um dia diante do Senhor é como mil anos, e mil anos como um dia”. É o que nos diz a Segunda Epístola de São Pedro Apóstolo. A expressão mil anos, aí, representa um símbolo da eternidade de Deus. Ela foi transformada em um milênio cronométrico, literal, por exegetas bíblicos pressionados pela necessidade de fazer um cálculo preciso sobre a data do Apocalipse.
A lógica utilizada a partir daí, aceito o pressuposto, é perfeita. Uma vez que Deus criou o mundo em 6 dias e descansou no sétimo, a história do mundo deve ter 6 mil anos até o Apocalipse. Acrescentando-se agora o milênio de Cristo na Terra, correspondente ao dia para descanso do Criador, estarão completos os 7 mil anos de história da Terra. Restará, tão somente, calcular a data do início do mundo. Estabelecido o começo, se poderá facilmente calcular a data do fim.
Vários cálculos foram feitos, refeitos, corrigidos ou abandonados, havendo, até, um arcebispo anglicano que estabeleceu o momento da criação como sendo o meio dia de 23 de outubro de 4004 a.C.!
Em verdade, as discussões sobre a data certa da passagem dos séculos, bem como sobre o dia do Apocalipse, nunca terão uma conclusão, como a vida prometida para depois do Juízo Final, no Paraíso ou no Inferno. Resta-nos compensar a frustração da incerteza, dizendo que teremos a certeza, amanhã, primeiro dia de 2001, de estar no século XXI, quer ele tenha começado em janeiro de 2000, quer comece dentro de algumas horas, e que nada indica que este 31 de dezembro de 2000 será o último dia de nosso pequeno mundo.

24 de dezembro de 2000

Mudaria o Natal...

Jornal O Estado do Maranhão
A história do cristianismo é admirável. Como foi possível a um grupo de homens simples do povo, rudes, sem luzes, fundar uma religião que viria a ser, menos de quatro séculos depois da morte de seu criador, a religião oficial do império romano? Quem, vendo ou vivendo as perseguições, por motivos políticos, principalmente, sob os imperadores Nero, Décio, Diocleciano e Galério, poderia prever a glória terrena da igreja de Cristo de coroar reis e rainhas e substituir o próprio império por outro? Que milagre foi esse?
Será lícita aos crentes a alegação da justeza dos ensinamentos de Cristo e do caráter de revelação divina da sua palavra. Naturalmente, outras religiões poderão socorrer-se de argumentos semelhantes para sua autojustificação. Não estamos impedidos, porém, de procurar o que Edward Gibbon, no seu justamente famoso Declínio e queda do império romano, chama de “segundas causas”. Diz ele que as principais razões para vitória tão espetacular foram o zelo dos cristãos, sua crença na imortalidade da alma, os proclamados poderes miraculosos da igreja primitiva, a moralidade pura, austera e até intolerante de seus membros e a unidade e disciplina deles. Ele afirmou até que a queda do império deveu-se à ascensão do cristianismo.
O período de crescimento, mas não, ainda, de triunfo, que veio em seguida ao início modesto e incerto, foi objeto de uma percepção inspirada de Flaubert: “Os deuses não existindo mais, e o Cristo não existindo ainda, houve, de Cícero a Marco Aurélio, um momento único em que só existiu o homem”. Aí está uma bela síntese do raro momento histórico em que grande parte da humanidade possuía apenas a si mesma na busca da felicidade, livre do medo do castigo eterno e livre também da ansiedade pela recompensa igualmente eterna. Ao fim, porém, mortos os deuses romanos, nasceu o deus único da nossa tradição.
Seja qual for a natureza das explicações, os cristãos venceram e nos legaram grande parte do que de permanente e elevado temos em nossa cultura, a despeito dos maus exemplos da época em que a igreja, como instituição bem humana, se viu tomada pelas paixões deste mundo. Não se pode imaginar, no entanto, nossa sociedade sem a influência dos valores e tradições cristãos. O Natal, por exemplo. Como chegar ao fim do ano sem ele?
A palavra que me ocorre quando penso no Natal é suavidade. Há uma atitude pacificadora das pessoas expressa na simbologia da troca de presentes. A manhã desse dia é quando as crianças — não todas, por certo, que há as desafortunadas —, gravarão para sempre em suas mentes e corações a felicidade pelos presentes tão sonhados que atribuirão a Papai Noel. Elas recordarão esses momentos pelo resto de suas vidas. Isso é parte de nossa herança comum e de nossa obrigação de transmitir às gerações seguintes o que de bom recebemos das anteriores.
A magia do Natal tem atraído grandes escritores, de todos os tempos, em todas as literaturas do mundo cristão, como Charles Dickens e Machado de Assis. Do brasileiro, um agnóstico assumido, um dos mais belos contos é A Missa do Galo, obra prima do conto “sem enredo”, que, mesmo sem tratar diretamente do Natal, mostra o hábito dos cariocas no século XIX de ir àquela missa. É dele também o Soneto de Natal que contém um verso muito conhecido que, de tão citado, quase deixou de ter autoria, passando ao patrimônio cultural de nosso povo: “Mudaria o Natal ou mudei eu?” O Natal não muda, mas nós mudamos no Natal, para deixar vir à luz, ainda que durante poucos dias, a criança que nunca deixaremos de ser.
Como ensina o triste Eclesiastes, livro de sabedoria judaica, de Salomão, há tempo para tudo sob o sol. O tempo hoje é de desejar um feliz Natal a todos.

17 de dezembro de 2000

Defeito nas linhas

Jornal O Estado do Maranhão
Sou favorável à privatização de empresas estatais. Elas sempre foram feudos ineficientes de tecnocracias muito eficientes na defesa de seus interesses, mas pouco dedicadas aos de seus usuários. O patrimônio delas era, de fato, do povo, conforme as palavras de ordem de sindicalistas nas passeatas contra as privatizações. Pena que foi apropriado, com boa parte dos lucros, pela burocracia dirigente.
Mas não foi para humilhar os usuários que se fizeram as privatizações. É isso, infelizmente, o que está ocorrendo. A Telemar, a Amazônia Celular e a Embratel aumentaram a oferta de linhas telefônicas? Estão acabando com as filas de espera? Diminuíram os preços? Estão oferecendo mais serviços? Ótimo, palmas para elas. Era isso mesmo que se esperava. Se não houvesse sequer essas melhoras, melhor seria deixar tudo como dantes. E o usuário, como está sendo tratado? O que se ouve diariamente dos amigos, se lê nos jornais e nas revistas, se vê na televisão, se conhece por experiência própria não projeta uma boa imagem dessas empresas.
Pouca gente está satisfeita com o tratamento que vem recebendo. Se alguém telefonar para obter informações, será atendido por uma gravação pedindo para esperar um pouco. Esse pouco, vê-se logo, é muito. Imaginem ficar na linha de 5 a 10 minutos, talvez mais, ouvindo uma musiquinha chata dezenas de vezes, aguardando uma pessoa que não se sabe nem onde está. Em Fortaleza, em Belém? Em São Luís, com certeza, não. O sotaque não engana.
Tente depois explicar que você não fez as ligações que lhe estão sendo cobradas. Afinal, você não tem parente em Cruzeiro do Sul — lá no Acre —, no Afeganistão ou na Chechênia. Em poucos segundos ficará evidente a introdução de um novo conceito no Direito: o ônus da prova cabe ao acusado, o usuário. A presunção de inocência não vale, foi revogada por obsoleta. Tenha, pois, o pobre coitado, o trabalho de fazer um requerimento para defender-se. Terá que provar que não é um espertalhão tentando enganar as indefesas telefônicas, ou pagar para não ter seu nome em algum cadastro de maus pagadores.
Outro problema. Se lhe roubarem o celular, você ainda terá que continuar com o pagamento da taxa mínima mensal. Não basta, como aconteceu comigo, ir à polícia, registrar a ocorrência e levar a certidão à loja da Amazônia. No mês seguinte, você recebe a cobrança por um serviço que não usa mais. O que fazer? Lógico, ligar para a companhia e pedir o cancelamento de sua linha. A moça que o atende (em Belém?) verifica seus dados no computador e confirma o registro anterior do roubo. Ufa, acabou o problema. Ilusão. Você vai ter que voltar à loja da empresa. Eis o que quero dizer: você não resolve um problema de seu telefone, por telefone, numa empresa de telefone.
Mas não é só isso. Recebi outro dia uma ameaça da Embratel que me cobrava contas do século passado, concluindo que eu devia aproveitar a magnanimidade, de poder pagar logo com desconto, para evitar problemas. Desculpem se exagero no tempo de um século. É que a Embratel exagerou no abuso de minha paciência.
 Por escassez de espaço, não vou falar hoje de serviços lançados sem autorização na fatura e prontamente cobrados, como os de listagem nas páginas amarelas e de caixa postal. Deixarei também para outra ocasião comentários sobre a mensagem que não distingue, para quem disca para seu número, o eventual devedor da pessoa que teve seu celular perdido ou roubado e sobre a atribuição do mesmo número a mais de um assinante.
Ah, sim, ia me esquecendo. Esta é a segunda versão deste texto que o leitor teve a paciência de ler até aqui. A primeira se perdeu quando meu computador apagou por falta de energia elétrica. É, agora o abuso foi da Cemar. Como disse o grande Goethe nos seus minutos finais: mais luz!

10 de dezembro de 2000

A ponte e a ponta

Jornal O Estado do Maranhão
 
Atravessar a ponte de São Francisco é passar de uma cidade a outra. O nome é o mesmo, São Luís, mas não a cidade. Uma, a velha, foi fundada pelos franceses, a outra, a nova, não foi fundada, brotou.
Ir da Beiramar para o São Francisco, pela ponte, não é ir. Para mim, é voltar a outro tempo. O pequeno barco nos levava aos domingos para a Ponta da Areia, logo depois do São Francisco: meu pai, Carlos Moreira, minha mãe, Maria, eu e meus irmãos de suspensórios e calças curtas, cabelos repartidos ao meio, o compadre Queiroz, admirado pelos presentes caros que dava freqüentemente ao invejado afilhado Cursino. Quantas vezes fizemos essa travessia? Uma ou dezenas? O carro de praça (é assim que se chamava o táxi) tinha que ser contratado dias antes do passeio com os motoristas conceituados que todo mundo conhecia na cidade: Dadeco, Astrolábio, Pindobuçu. Desses, eu nunca me esqueci. Se meu pai chamava outros, não os pude conservar na memória.
Dadeco, num carro marrom de ar elegante, acho que usava óculos, mas não sei se os imaginei depois. Ciumento do carro. Muitas vezes eu ia ali no banco da frente entre meu pai e ele. Quieto, admirando a direção de plástico rígido e o aro de metal de raio pequeno que servia como enfeite e buzina. Astrolábio era, para mim, sério demais, não gostava de muita conversa. O carro preto e pesado, de linhas arredondadas, me parecia enorme, com a parte da frente, do pára-brisa ao pára-choque, ocupando quase a metade do comprimento do veículo. Pindobuçu (será que era ele o que usava óculos, ou os dois usavam?) era simpático e risonho com seu tom de voz um pouco agudo e cabeça coberta com uma cabeleira grisalha. Seu carro era um meio termo entre a sobriedade e elegância do de Dadeco e as linhas mais populares do de Astrolábio.
Quase não me recordo da viagem, se o barco jogava, se não jogava, quanto tempo levava. Sei que o barco era a remo. Do cheiro do mar, sim, me lembro, ou seria do rio? Ali, aonde o Anil chega na baía de São Marcos, não se sabe onde o salgado começa ou o doce acaba.Cheiro de água doce, cheiro de mar, cheiro de verde, cheiro de mangue, todos juntos, o ar salitroso fazendo pegajosas nossas peles e aumentando a queimadura do sol.
A sensação era de aventura, como as que víamos nos seriados de domingo no cine Rialto, na rua do Passeio, para aonde íamos do distante Monte Castelo. Era também de fascinação com as histórias que se contavam do lugar: — Tem areia movediça na Ponta da Areia, já morreu muita gente lá. A Ponta da Areia não era, então, mais do que uma pequena colônia de pescadores de casas simples, rústicas e agradáveis. Antes tinha sido o local de aldeias indígenas das quais a história, nos livros dos invasores brancos, não deixou registro.
 Na chegada éramos recebidos pelos agregados da propriedade de seu Queiroz que nos ajudavam a desembarcar. Tomávamos nosso banho de mar sob o olhar vigilante da mãe, comíamos o peixe e o camarão, descansávamos um pouco abrigados em barracas improvisadas, tomávamos guaraná Jesus ou água de coco, (era uma época sem Coca-Cola) os adultos conversavam, e regressávamos todos depois do almoço sem nunca sermos tragados pela areia, um pouco frustrados pela ausência de perigo que nos amedrontava e atraía.
Para terminar a jornada, à noite, em casa, ouvíamos histórias do interior, de Cajapió, contadas pela avó Marcelina, de navios encantados, sereias e do diabo que se disfarçava nos bailes e era descoberto porque tinha os pés voltados para trás. Não tinha televisão, internet, computador. Não tinha ponte como agora. Não era melhor, não era pior. Era diferente.

3 de dezembro de 2000

Façam o que eu digo

Jornal O Estado do Maranhão
Em reunião realizada em 1997 na cidade de Kyoto, no Japão, os países industrializados comprometeram-se a reduzir em 5%, até 2012, sobre os níveis de 1990, a emissão de gases-estufa. Estes são, em sua maioria, gerados pelo consumo de combustíveis derivados do petróleo, e provocam, de acordo com diversos estudos, o aquecimento da Terra, quando retidos na atmosfera. Nada mais natural o compromisso, uma vez que são exatamente esses países os responsáveis pela maior parcela da geração dos gases. O documento assinado na ocasião ficou conhecido como o Protocolo de Kyoto.
Um novo encontro foi realizado em novembro deste ano, há quinze dias, na cidade de Haia, na Holanda, chamado Sexta Conferência das Partes da Convenção do Clima – COP-6. Deveria ocorrer, então, a ratificação do Protocolo, pelo estabelecimento de “mecanismos de flexibilidade” que deveriam ser usados para tornar viável o cumprimento da meta acordada anteriormente. Não houve acordo. Do fracasso, salvou-se a idéia, aprovada por todos, de que a Conferência não seria encerrada completamente e deveria continuar em maio de 2001 em Bonn, na Alemanha.
Os Estados Unidos, Canadá, Austrália e Japão propuseram, em Haia, o uso de “sumidouros de carbono”, áreas florestais e agrícolas que, acredita-se, podem absorver carbono, o principal gás-estufa. Pela proposta, a existência dessas áreas, ou sua criação, serviria de crédito a ser descontado da meta de redução de 5%, após um cálculo adequado da quantidade que cada uma pudesse retirar do ambiente. A Comunidade Européia e as ONGs se opuseram fortemente à posição americana.
O mecanismo tornaria possível, aos governos que financiassem tanto a implantação de florestas artificiais em países em desenvolvimento, como o aumento das áreas agrícolas destes, diminuir o esforço que eles mesmos teriam que fazer sem a utilização dos sumidouros. Exemplo: uma floresta a ser plantada no Maranhão, com recursos do Programa Piloto de Proteção às Florestas Tropicais do Brasil – PPG7, representaria crédito para os países doadores ao Programa, a ser usado no cumprimento de suas obrigações o que, na prática, equivaleria a uma redução de emissões menor do que 5%. E mais: a substituição de florestas naturais por campos agrícolas ou por pastagens não alteraria os compromissos dos países desenvolvidos onde isso ocorresse, apesar dos evidentes prejuízos para o ambiente de procedimento desse tipo.
Argumentam os opositores que o mecanismo seria benéfico apenas para os países com grandes superfícies agrícolas como os Estados Unidos, Canadá e Austrália, e para os que, como o Japão, alocassem recursos para o financiamento da expansão da agricultura ou recuperação de áreas degradadas em outros países. De fato, não seria a proposta, tal como apresentada, uma forma de comprar direitos de danificar a atmosfera e aumentar o aquecimento global?
A posição dos Estados Unidos não é surpreendente. Eles são responsáveis por 25% das emissões e aumentaram-nas em 11% entre 1990 e 2000. Na Conferência do Rio, ou ECO-92, recusaram-se a assinar a Convenção da Biodiversidade e impuseram a retirada de diversas cláusulas da Convenção do Clima, esvaziando-a de qualquer conteúdo relevante. Ao mesmo tempo, têm usado freqüentemente a retórica da preservação dos recursos naturais do nosso planeta, com ênfase na Amazônia, para pressionar economicamente o Brasil e outros países.
Tudo isso leva-nos a concluir que estão agindo, prioritariamente, em defesa de seus interesses. Dado esse quadro e diante do discurso ambientalista de Al Gore, sua eventual eleição tornaria mais fácil para os sindicatos e empresas americanos, consistentemente protecionistas, a utilização de temas ambientais como desculpa para impedir a entrada de produtos brasileiros no mercado americano.
O que se vê, portanto, é um sermão, do governo americano e de outros países desenvolvidos, sem força para converter ninguém: — Protejam o ambiente e não criem barreiras ao livre comércio. É o antigo “façam o que eu digo, não façam o que eu faço”.

26 de novembro de 2000

Flórida, Estados Unidos

Jornal O Estado do Maranhão
Ocorreram dois fatos, de uns tempos para cá, nos Estados Unidos, de grande repercussão internacional. O primeiro foi a aventura amorosa de Bill Clinton com a estagiária da Casa Branca, Mônica Levinski; o outro foi tanto a atual confusão sobre a apuração das eleições na Flórida, decisivas para a escolha do próximo presidente americano, quanto a diferença que surgirá entre o resultado da apuração pelo voto popular e pelo colégio eleitoral, caso George W. Bush seja o eleito, e não Al Gore. Aparentemente sem coisa alguma em comum, eles, os fatos, têm, no entanto, algo que os aproxima.
Com Mônica, o presidente americano quis fumar, e parece que fumou, o cachimbo da paz, ou do amor, que por acaso era um charuto. Como se sabe, o resultado foi uma guerra que quase chegou ao impeachment político e matrimonial de Clinton, mas terminou sem vencedor ou vencedora. Em contraste, no caso mais recente, os dois candidatos à presidência recusam-se a fumar o tal cachimbo e continuam suas batalhas eleitorais na justiça. Mas não se tem dúvida de que haverá um vencedor ao final da guerra.
Os dois episódios levaram muitas pessoas no mundo todo a uma perplexidade tão grande que elas começaram a se perguntar se estavam realmente entendendo os acontecimentos. Não, provavelmente, no caso da Flórida, e sim, quase com certeza, no caso de Mônica, porque neste havia razões humanas e universais e, por isso, de mais fácil compreensão, para explicar a situação. Mas, por que a resposta negativa quando se fala de eleições?
A maneira de escolher o presidente dos Estados Unidos tem uma história. Ela poderá nos esclarecer acerca do que está ocorrendo no presente. Vejamos.
Depois da Declaração de Independência em 1776, as 13 colônias inglesas na costa leste da América do Norte, constituíram o núcleo inicial do que hoje conhecemos como Estados Unidos da América. Não dispunham elas de nenhum vínculo institucional que as unisse, a não ser dos Artigos da Confederação, um esboço de constituição apenas, que entraram em vigor em 1781. O período de 13 anos entre a independência e a retificação pelos Estados, em 1789, da Constituição que até hoje vigora, viu um Congresso fraco como a única autoridade federal, a ausência de um Poder Executivo e várias outras dificuldades cujas origens estavam, principalmente, no desejo de autonomia das ex-colônias.
Não foi possível, então, consolidar, por exemplo, uma moeda nacional e evitar que os Estados implantassem políticas protecionistas, pela criação de barreiras aduaneiras contra outros países, e entre eles mesmos, que formassem milícias estaduais e chegassem a construir navios de guerra, fatores, sem dúvida, desagregadores da pretendida união. Havia uma tensão entre as aspirações por autonomia dos entes recém federados e a necessidade, reconhecida por eles mesmos, de um governo central com um mínimo de autoridade que pudesse mobilizar os recursos da nova nação para a defesa externa, proteção de suas indústrias na competição com a Inglaterra e a adoção de outras medidas de interesse de todos.
No modelo institucional que prevaleceu com o advento da Constituição, implantada sob forte influência dos federalistas Alexandre Hamilton, James Madison e John Jay, o presidente da nova república deveria ser eleito por um colégio eleitoral para o qual os Estados enviariam seus representantes, eleitos, estes sim, diretamente pelo povo. A idéia era consolidar a federação, através do estabelecimento de um executivo federal forte e manter a autonomia dos participantes da federação. Seriam os Estados que elegeriam o presidente, através de seus delegados, e não o povo diretamente.
O sistema não causaria nenhuma divergência entre o resultado obtido pela soma dos votos populares de todos os Estados e o resultado do colégio eleitoral se não tivesse prevalecido ao longo do tempo a regra de o candidato a presidente ficar com todos os delegados do Estado onde ele obtiver a maioria dos votos populares. A alternativa seria uma divisão dos delegados, proporcional ao número de votos de cada candidato, que seria, no entanto, contrária ao princípio da eleição pelos membros federados.
Quanto às tecnologias de votação e de apuração das eleições, que parecem obsoletas, em comparação com os padrões brasileiros, a história é outra. Como, seguindo o espírito federativo, cada Estado tem liberdade para escolher seus próprios métodos, alguns têm sistemas bastante avançados e já testam, até, a votação pela Internet, enquanto outros pouco se modernizaram, talvez porque avaliassem que não seria necessário investir em grandes mudanças num sistema usado por somente metade do eleitorado. É esse mesmo espírito que restringe a disputa ao âmbito da Florida na atual controvérsia.
O que se percebe é que o sistema de escolha do presidente americano não está sendo seriamente questionado dentro dos Estados Unidos. Mas, terminada a disputa, concluirão os americanos, como antes, que as regras, a longo prazo, são boas para a União e para o povo?

19 de novembro de 2000

A lei de responsabilidade econômica

Jornal O Estado do Maranhão
A Lei de Responsabilidade Fiscal bem que poderia ser chamada de Lei de Responsabilidade Econômica porque não é senão em seus aspectos econômicos que sua aplicação mais deve ter importância para o Brasil daqui em diante. Seu lado ético é importante e as punições previstas em outra peça de legislação, na chamada lei de crimes fiscais, com certeza representam bem-vinda medida de controle dos maus gestores públicos. No entanto, o que de mais importante ela nos oferece é a criação de um conjunto de regras de controle permanente do déficit público.
O país dispõe agora de um instrumento de política econômica que permitirá aos mercados reconhecerem que, a não ser em circunstâncias que independam da vontade dos governantes, a administração pública, em todas as esferas de governo, não irá gerar déficits públicos para os quais não disponha de financiamento adequado. Ora, não é outra a principal causa da inflação, na nossa e em qualquer economia do nosso maltratado planeta: déficits públicos imoderados financiados pela emissão descontrolada de moeda, ausência de confiança dos mercados na solvência de fato do setor público e, em conseqüência, falta de financiamento do governo pelo setor privado a taxas de juros compatíveis com o crescimento real da receita pública.
A sociedade brasileira tem boa memória para aprender com a lembrança dos anos de altíssima inflação que tivemos até 1994 e rejeita seu retorno. Com certeza a cura da doença inflacionária cobrou, não um imposto, mas um alto pedágio dos brasileiros. Mas não tenho dúvidas de que os mais pobres foram aqueles que obtiveram os maiores benefícios que, de qualquer maneira, alcançaram todos. Já começam a ficar distantes os dias em que, ou se tinha de comprar o que quer que fosse hoje para não pagar muito mais caro amanhã, ou se tinha que aplicar qualquer sobra diária de caixa no mercado financeiro para evitar a desvalorização do dinheiro, que havia se tornado quente demais para ficar em nossas mãos, na ilusão de que nos estávamos protegendo da perda de renda e patrimônio. Essas defesas não estavam, é claro, ao alcance dos mais pobres.
Os orçamentos tornaram-se ficção de mau gosto pela impossibilidade de qualquer tipo de previsão econômico-financeira; a noção de preços relativos desmanchou-se rapidamente e com ela qualquer idéia de caro e barato; os cálculos de investimento sofreram distorções, geraram incertezas por toda a economia e levaram ao recuo nas intenções de novos investimentos pelas empresas e, sobretudo, o setor público, como açambarcador do imposto inflacionário, passou a deste viver como um arrogante gigolô da sociedade.
Pode-se concordar com a política econômica que dá prioridade ao combate ao déficit público, como a adotada pelo governo brasileiro, ou dela discordar. Alguns verão nela, até, a simples submissão do país ao maléfico FMI. Mas ninguém, de boa fé, poderá acusá-la de incoerência e de não produzir resultados positivos para o país. Atrevo-me mesmo a dizer que o controle da inflação foi um dos maiores programas sociais já realizados neste país. Sem o custo de uma burocracia cara e ineficiente, que pretende gerir programas que poucas vezes chegam aos seus destinatários, mihões de brasileiros pobres tiveram suas condições de vida melhoradas.
Resta atacar o desemprego e a pobreza, os mais graves problemas da economia brasileira atualmente. Não com programas que reforcem a danosa cultura do favor pela prática da doação. Esta deveria ser usada apenas em casos emergenciais. Necessitamos, ao contrário, de programas que criem oportunidades para todos como os de aumento de produtividade e qualificação da mão de obra, educação técnica e científica de qualidade, pesquisa de ponta em áreas selecionadas, estratégicas para o país, acesso desburocratizado ao crédito bancário pelos que dele necessitem para produzir, assistência técnica ao pequeno produtor rural e diversos outros que possam dar a cada brasileiro a chance de progredir por seus próprios meios e méritos.

Machado de Assis no Amazon