25 de abril de 2004

A mensagem

Jornal O Estado do Maranhão 
Os últimos quinze dias foram para mim de verdadeira provação bíblica e indescritível angústia existencial, pois me vi privado sem aviso prévio do meu computador. Tal tragédia criou mil problemas à realização das mais corriqueiras tarefas de meu dia-a-dia, como, por exemplo, esta de maltraçar algumas linhas destinadas à publicação neste jornal.
Para o ataque traiçoeiro à minha inseparável máquina, contribuíram em partes igualmente irritantes o ar salitroso do bairro do Olho D’água, que tudo corrói pacientemente, e a Companhia Energética do Maranhão - Cemar, que corrói nossa paciência toda e, não satisfeita, ainda faz oscilar a corrente elétrica, a fim evitar o perigo de os usuários esquecerem a qualidade desastrosa dos serviços da companhia.
Nunca poderei esquecer a situação em que me encontrava. Cabeça baixa, olhos pregados no chão, olhar perdido e passos vacilantes, vagava apático pela cidade pensando na minha situação de dependência em relação a essa máquina, vista ainda, algumas vezes, com desconfiança por tanta gente. Devo ter sofrido, com sua ausência, uma autêntica crise de abstinência, como aquelas originadas na retirada aos viciados do objeto do seu vício. Agora, superada a tensão desse momento ruim, passei a dar maior valor a ela. Prometi a mim mesmo jamais chamá-la novamente de lerda e de baixa potência, como fiz muitas vezes, ameaçando-a de entupi-la de viagra. Procurarei compreender melhor suas fraquezas e vacilações.
Pois bem. Eu, esse dependente da informática e da internet que assume um ar de superioridade quando vê alguém escrevendo a mão ou datilografando (nem sei se essa palavra é usada ainda) em uma velha Remington, fui “acusado”, faz poucas semanas, pelos colegas de trabalho, de não me utilizar de mensagens por correio eletrônico, ou seja de e-mails, e, portanto, do computador, para me comunicar no serviço. Fiquei surpreso.
Deixo logo claro isto, antes de fazerem deduções equivocadas. Existe um excelente ambiente de companheirismo e cooperação na Gerência de Indústria e Comércio. A “acusação” tinha, em primeiro lugar, a boa intenção de tornar mais rápida e eficiente o diálogo entre os diversos setores do órgão. Mas, não deixei de perceber uma certo espírito de gozação entre amigos na sugestão de eu usar o meio eletrônico com mais freqüência. Então o cara ligado na informática não utiliza o computador com o fim de difundir informações e dar orientações aos colegas?
Aleguei que a Gerência era pequena e nenhum funcionário estava a mais de 30 metros de seu mais distante colega. Seria mais fácil, eu dizia, ir às outras salas e discutir os assuntos importantes pessoalmente do que enviar frias mensagens pela internet. Mas, havia mais, embora eu não soubesse exatamente o quê até ter notícia de um estudo feito no Reino Unido em uma instituição de nome complicado, a Buckinghamshire Chilterns University College, de Londres. Além de confirmar meus argumentos, esse estudo apresenta outros em favor da moderação no uso de e-mails. Estes provocam a elevação da pressão arterial dos empregados de companhias privadas e públicas, especialmente se contêm críticas ou cobranças e são enviados pelos superiores hierárquicos.
A Câmara Municipal de Liverpool, mostrando estar consciente dos perigos do seu uso imoderado, eliminou a troca de mensagens entre seus funcionários às quartas-feiras. Eles são incentivados a resolver os problemas da instituição pessoalmente ou por telefone. Os dirigentes perceberam que o correio eletrônico pode ser usado como uma forma de evitar o enfrentamento de uma situação difícil. “Em alguns casos, o e-mail pode servir como uma camuflagem para a dificuldade de agir, de buscar uma solução”, disse Matthew Finnegan, diretor de midia da Câmara.
Tudo isso é prova dos cuidados que se deve ter na adoção de novas tecnologias. Em muitos casos, elas podem levar a tais conflitos sociais e culturais que sua adoção, em outras circunstâncias benéfica para a sociedade, acaba não ocorrendo. Esta é a mensagem dessa história toda.

18 de abril de 2004

Encantamentos

Jornal O Estado do Maranhão 
Havia encantamentos na terça-feira passada, dia 13 de abril, no Armazém da Estrela, à rua da Estrela no centro histórico de São Luís. Um deles eram as brincadeiras, as folias, as festas, os brinquedos, enfim, do Maranhão. Todos têm um encanto misterioso em suas próprias existências ou nas dos livros, como este em que foram retratados – dizer retratados é dizer melhor do que dizer fotografadas, porque é ir além da máquina fotográfica, mero instrumento para o registro da visão do artista – por Albani Ramos em Brinquedos encantados lançado entre as maiores estrelas do mundo cultural maranhense, com prefácio de José Sarney.
O outro encantamento era o livro, pela beleza de suas imagens, que revelam a sensibilidade do autor para as manifestações populares de nossa cultura, e pelo cuidado de edição e bom-gosto de concepção e execução. Essa característica encantatória permite que se possa imaginar esse trabalho, creio eu, como realizado, intencionalmente ou não, por meio da utilização de uma meta linguagem, pois se trata de um encantamento, o livro, falando de encantamento também, os brinquedos do povo.
Albani nos dá uma síntese visual da cultura popular do Maranhão em sete grandes áreas ou temas: Ciclo Natalino, Carnaval, São Bilibeu, Divino Espírito Santo, Bumba-meu-boi, Festas, e Culto Afro. Cada uma delas tem um texto introdutório do membro da Academia Maranhense de Letras, o escritor Sebastião Moreira Duarte. Muito apropriadamente, ele, na apresentação geral, diz que “fundamos aqui uma Província das Festas, de uma ponta a outra do calendário”, afirmação confirmada pelo Calendário das Festas, feito pelo autor, em que se vê que, de janeiro a dezembro, não há uma única semana sem uma festa popular por estas bandas.
Afora o prazer estético proporcionado por suas imagens em cores fortes e pela ênfase no movimento, em que o elemento africano negro, tão forte na nossa formação humana e social, aparece tão nitidamente, Os brinquedos encantados desempenham uma função importante, a de registro histórico e sociológico. A dinâmica cultural, com o ciclo de nascimento, vida e morte de suas manifestações, únicas em cada sociedade, mas inevitavelmente envolvidas em constantes universais reveladoras dos elementos comuns a todos os humanos, seres que se distinguem dos outros pela capacidade de construir conscientemente sua cultura, a dinâmica cultural, eu dizia, leva ao incessante desaparecimento de alguns de seus próprios modos de expressão e ao nascimento de outros ou a sua adaptação a novas circunstâncias.
Trabalhos desta natureza, com tal diversidade de registro, amplitude de cobertura, cuidado de sistematização e consistência de enfoque são inexistentes em nosso meio. Este de Albani compõe agora, e mais irá compor no futuro, um bom alicerce de ajuda aos sociólogos e aos historiadores de nossa cultura no estudo de nossa sociedade. Mas, enquanto a posteridade não chega (de qualquer maneira nós não estaremos presentes a ela) poderemos ter o privilégio de tê-lo em nossas mãos para com ele nos conhecermos melhor como um povo orgulhoso de suas tradições.
A publicação de Brinquedos encantados é o resultado de um trabalho meritório em favor da cultura maranhense, que vem sendo desenvolvido pelo Instituto GEIA, sob a direção do economista Jorge Murad. Mobilizando o apoio de um grupo de empresas localizadas no Maranhão e outras entidades, ele dá continuidade ao trabalho iniciado no governo Roseana Sarney com a publicação da coleção Maranhão Sempre, de trabalhos importantes da historiografia do Maranhão e de obras dos mais aclamados poetas maranhenses contemporâneos. A Coleção Geia de Temas Maranhenses, que agora publica seu terceiro volume, deu a público anteriormente O Maranhão Histórico, de Ribeiro do Amaral, e Administrações Maranhenses 1822-1929, de Henrique Costa Fernandes. Em algumas semanas, o quarto livro da série, A revolta de Bequimão, do historiador Mílson Coutinho, se juntará aos outros três.
Por enquanto, é ter olhos para ver os encantamentos dos brinquedos.

11 de abril de 2004

Sem dúvida

Jornal O Estado do Maranhão 
Será o Brasil um pária da comunidade internacional, que desrespeita acordos, planeja e executa golpes de Estado no exterior, ameaça militarmente países mais fracos respaldado por seu poderio militar atômico, e os invade, derrubando ditadores com o fim de substituí-los por outros mais confiáveis? Age como um senhor da guerra disposto a usar meios escusos para seus fins igualmente escusos? Pressiona seus parceiros comerciais para obter vantagens econômicas? Recusa-se a assinar tratados de controle da emissão de gases poluentes, apesar de lançá-los em quantidades imensas na atmosfera em prejuízo do ambiente no mundo todo? Será? Seremos uma nação condenada a causar medo? Seremos tão prepotentes assim? Nossa arrogância não tem limites?
Uma notícia do Washington Post do dia 4 deste mês poderia justificar respostas positivas a todos essas perguntas. Disse o jornal norte-americano, requentando o café servido em dezembro do ano passado, que o Brasil proibiu inspetores da ONU de examinar instalação de enriquecimento de urânio em Resende, no Rio de Janeiro. Esse elemento químico tem o potencial de ser utilizado para a produção de bombas atômicas.
Dita dessa forma, secamente, sem menção ao contexto ou a história do fato, poderia parecer que a referência era a um fora da lei internacional. Vejam o que afirmou um ex-negociador nuclear dos Estados Unidos: “Se nós não queremos esse tipo de instalações no Irã ou na Coréia do Norte, nós também não devemos querê-las no Brasil”.
Ora, esses dois países tinham instalações não declaradas e agiam sem dar nenhuma informação a ninguém, procedimento, aliás, adotado pelas atuais potências atômicas, quando iniciaram seus programas de pesquisa em energia nuclear. A situação agora é inteiramente diferente. Todas os dados acerca das atividades brasileiras nessa área são enviados à Agência Internacional de Energia Atômica – AEIA, de acordo com disposições do Tratado de Tlatelolco, que cria uma zona sem armas nucleares na América Latina, e do Tratado de Não-Proliferação Nuclear. Aquela agência realizou, desde dezembro de 2003, oito visitas à fábrica de Resende, informação não fornecida, essa sim, aos leitores do Washington Post. Não há crime nenhum a esconder nem esqueleto no armário brasileiro.
Logo após a divulgação pelo jornal da meia-verdade –como se sabe, mais danosa do que a mentira inteira –, um funcionário do Departamento de Estado americano citou um discurso de George Bush em que ele pedia a todos os países que assinassem um protocolo de inspeção adicional permitindo inspeções-surpresa da Agência. Não por coincidência, as “acusações” ocorrem justamente a poucos dias de uma visita ao Brasil do secretário de Energia dos Estados Unidos e da recente admissão pelos negociadores de ambos os países de que as negociações para a implantação da Alca chegaram a um impasse a respeito de diversos assuntos, entre eles o relativo ao protecionismo agrícola americano.
Na avaliação da diplomacia brasileira, os americanos querem em verdade ter acesso às ultracentrífugas de enriquecimento de urânio e, portanto,  à tecnologia usada nelas, desenvolvida aqui, com investimentos de aproximadamente R$ 3 bilhões, mas de baixo custo operacional. A questão é mais bem entendida, então, quando se atenta para seus aspectos econômicos. O desejo de ter acesso aos detalhes tecnológicos é parte de uma estratégia americana de agir no interesse de grupos econômicos de lá, na tentativa de se antecipar a um concorrente, se possível até pela apropriação indevida de segredos tecnológicos. Essa, a razão de o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, afirmar que a assinatura do protocolo adicional se dará de forma racional e soberana, no momento mais conveniente aos interesses brasileiros.
A nossa história, sob governos das mais diversas orientações, tem sido de respeito a seus compromissos, especialmente com respeito ao uso da energia nuclear para fins pacíficos. Nada autoriza a imposição de dúvidas sobre esse comportamento. Tudo o confirma.

4 de abril de 2004

Coragyps Atratus

Jornal O Estado do Maranhão 
Os bichos pertencem à espécie Coragyps atratus, gênero Coragyps, família Cathartidae, ordem Ciconiiformes, classe Aves, subfilo Vertebrata, filo Chordata, reino Animalia. São os popularíssimos urubus da cabeça seca, muito comuns por estas bandas. Eles são encontrados desde o sul do Canadá até o sul da América do Sul, segundo a Encyclopedia of North America Birds (Enciclopédia dos Pássaros da América do Norte). Preferem habitats abertos, o que inclui lixões em áreas urbanas e rurais, e evitam florestas fechadas.
Esses animais estão a ponto a ser mandados pelo Piauí para o Maranhão. Sob a alegação de que os urubus piauienses estariam causando problemas no aeroporto de Teresina, ameaçando a vida das pessoas por causa do risco de colisão com os aviões, a gerência executiva do Ibama nesse Estado, digamos, irmão – embora depois desse episódio desagregador da unidade nacional eu não saiba mais como chamá-lo –, elaborou um plano de expulsão, essa é a palavra correta, expulsão, dos pobres animais da própria moradia e de envio deles para perto de Presidente Dutra no Maranhão.
Eu conheço a má fama que os acompanha, os olhares de repulsa à sua aparição, as histórias terríveis sobre eles, mas não posso deixar de lavrar um protesto contra esse tipo de tratamento a uma espécie injustiçada desde as tábuas de Moisés e antes. Está certo que não chegam a ser humanos, como a cadela Orca do ex-ministro do Trabalho, Rogério Magri. (Se por acaso o leitor tiver lido algumas de minhas crônicas, já terá percebido minha obsessão com a humanidade dos cachorros, à qual volto de vez em quando, como volto aos entendidos de mesa redonda de futebol na TV e ao “capitalismo selvagem” do antigo PT; afinal, não é só de Nélson Rodrigues o direito de ser obsessivo). Mas, isso não é razão para tratá-los dessa maneira humilhante.
Por que agredi-los, como se eles não servissem para nada, como se não passassem de malfeitores ou astutos contraventores do jogo do bicho, viciados em gravar as próprias conversas com seus parceiros de negócios escusos com a pérfida intenção de derrubar governos e colocar em perigo a estabilidade político-social da nação? Ouço ali um leitor gritar, tapando o nariz, que os urubus provocam um bocado de incômodo, chegando a ameaçar a saúde pública com seu mau cheiro tão característico. É verdade. Mas, de quem é a culpa? Deles ou de quem produz esses lixões por toda parte, dessa sociedade de consumismo desenfreado?
Mas, vamos olhar a situação pelo lado positivo, como nesses fantásticos livros de auto-ajuda que proliferam com tanta facilidade. Seu comportamento familiar é modelar, pois são, com as exceções de sempre, monogâmicos convictos. Chocar os ovos é tarefa tanto da mãe quanto do pai, sem aquela de o tempo todo o macho vir com a mesma história: “Querida, vou dar uma volta no lixão e volto já”, mas só voltar tarde da noite cheio de penas desconhecidas e com o bico de quem andou aprontando alguma.
Eles formam famílias ampliadas por associação com os parentes. Quem garante que ao mandá-los para o Maranhão os piauienses não destruiriam essa exemplar união, separando maridos de mulheres, irmãos de irmãos, primos de primos, tios de sobrinhos? Será um exagero chamá-los, depois de removidos para Presidente Dutra, de sem-lixão, à semelhança dos sem-terra ou dos sem-teto? Consideremos esse drama e mais isto. O Coragyps atratus é um ser ecológico porque elimina do ambiente matéria orgânica em decomposição, sendo uma espécie de reciclador natural.
Onde está a Sociedade Protetora dos Urubus, tão calada até agora? Os ambientalistas não vão dizer coisa alguma?  Ninguém vai fazer nada? Será que só as tartarugas marinhas (Eretmochelys imbricata) e os micos-leões-dourados (Leontopithecus rosalia) são dignos de protestos e palavras de ordem? Essa omissão não levará a uma guerra entre o Maranhão e o Piauí, à Guerra do Coragyps atratus, semelhante à Guerra da Lagosta (Procambarus clarkii) entre Brasil e França nos anos 60, enquanto os urubus passeiam entre os girassóis?

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