21 de abril de 2002

Disciplina filipina

Jornal O Estado do Maranhão
De louco e técnico de futebol, todo brasileiro tem um pouco. Por essa razão, resolvi meter a colher nessa história da cartilha de bom comportamento da seleção brasileira de futebol que irá à Copa do Mundo deste ano no Japão e na Coréia. O nosso técnico, o simpático e disciplinador coronel Filipão, dono  do estilo os-brutos-também-amam, resolveu estabelecer com esse decreto esportivo, verdadeira Ordenação Filipina dos pampas, regras rigorosas a serem seguidas pelos jogadores.
Embora tenha um nome italiano, Filipe Scolari – ou pré-Scolari segundo a turma do humorístico da TV, Casseta e Planeta –, é um verdadeiro alemão quando se trata de manter a disciplina de seus comandados. Escreveu, não leu a cartilha, o pau comeu. Escapadas noturnas, conversas ao celular, atrasos são faltas imperdoáveis. Sexo, nem pensar. Dizem ser ele o primeiro a dar o exemplo de abstinência. Qualquer um, quando surpreendido em pecado, como Romário, é punido com a exclusão do “grupo”.
Aliás, hoje em dia, a julgar pelas entrevistas dos jogadores e técnicos de futebol do Brasil, a palavra time foi banida do vocabulário futebolístico e substituída por “grupo”, assim como a palavra vitória virou “resultado positivo”. “O grupo está unido e dará tudo de si para conseguir um resultado positivo e levar pra casa os três pontos.”
Não sei se vocês já repararam também na epidemia de modéstia dos jogadores brasileiros. O sujeito marca um, dois golos.  (É golos mesmo. Como agora se chama vitória de resultado positivo e time de grupo, por que não designar o plural de gol como golos, como fazem corretamente os portugueses que estão aprendendo a jogar um bom futebol e fazer muitos golos?).
Aí, vem o repórter no fim do jogo e pede a ele a descrição do lance. Nem precisava, porque a televisão repetiu um bocado de vezes a jogada, vista por todo mundo no estádio. Mas o entrevistador pergunta mesmo assim. Afinal, ele está lá para isso: “Bem, o nosso ala driblou um adversário pela esquerda, foi à linha de fundo e cruzou pra dentro da área. Eu tive a sorte de acertar o chute, fazer o gol e garantir um resultado positivo”. Vejam a humildade de dizer que foi sorte. Eles nunca se referem a seus próprios méritos. Fica parecendo que a bola bate no pobre perna-de-pau e entra por acaso. A exibição de modéstia deve ser para não dar a impressão ao “grupo” de que o cara é um individualista que só pensa nele mesmo e manda os companheiros às favas.
Mas, nesse negócio de disciplina o Filipão deveria seguir o exemplo de seu conterrâneo, o cronista esportivo e técnico João Saldanha. Este não dava muita bola para a disciplina. Com ele, a única obrigação do jogador era a de apresenta-se bem. Só era proibido ser cabeça-de-bagre. Quem, tendo acompanhado um pouco a história do Brasil em Copas do Mundo, especialmente nas três primeiras conquistas, na Suécia, no Chile  no México, não ouviu falar das escapadas noturnas dos jogadores, fugindo dos rigores das concentrações? Ficaram famosas as histórias de Garrincha, mas não só dele. Há senhoras suecas, atualmente beirando os sessenta anos, suspirando, até hoje, por um jogador chamado Pelé.
Não sei qual a origem dessa mania dos nossos treinadores de achar que sexo e prática esportiva não se combinam. Vai ver, cada uma dessas duas atividades até contribui para o bom desempenho, na outra, de seus praticantes, pelo condicionamento físico que proporciona aos atletas da bola e do amor. A prática de uma ajuda os jogadores a sairem-se bem na outra. A história da seleção mostra isso.
Mas quem sabe o nosso técnico não acaba tendo razão? Afinal, nosso time melhorou depois da cartilha de Filipão, conforme se viu no jogo recente contra Portugal.. O diabo é que existe uma escrita. Toda vez que a seleção vai à Copa bem avaliada perde, como, por exemplo, em 1982. Quando está desacreditada ganha, como em 1958.
Vamos torcer para nosso time, desta vez, apagar essa escrita e voltar com o pentacampeonato, com ou sem cartilhas.

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