30 de dezembro de 2001

Previsões

Jornal O Estado do Maranhão 
Fim de ano é época de fazer previsões. A temporada, curta e intensa, começa logo depois do Natal e vai até os primeiros dias do Ano Novo. É um bocado de gente tentando adivinhar os acontecimentos do ano seguinte, com o ar mais sério deste mundo, e do outro, e aquela segurança condescendente de quem sabe o que está dizendo.
O mundo artístico vai ser abalado pela morte de um astro popular, uma grande transação no futebol – a venda de um jogador brasileiro no mercado europeu – vai agitar o meio esportivo mundial, o Brasil enfrentará dificuldades econômicas, o conflito no Oriente Médio ainda não terá solução, haverá terremotos e enchentes pelo mundo, os argentinos continuarão pensando que são europeus, e por aí vai. Coisas quase impossíveis de serem previstas. Trabalho de especialistas que, a troco, apenas, da satisfação de fazer o bem à humanidade, prevenindo possíveis tragédias, oferecem aos deficientes de dons adivinhatórios, como nós, a chance de acautelarem-se contra os males escondidos no futuro.
Véspera de Natal. Venho andando pelo shopping, distraído, pensando nessas coisas, até arriscando, comigo mesmo, alguma filosofia sobre a importância da adivinhação na prosperidade e felicidade dos povos. Vejo, saindo de uma loja, um velho amigo com quem não me encontrava havia anos. Tapinhas nas costas, tudo bem, há quanto tempo. Como eu poderia adivinhar que ele agora morava em Pelotas, no Rio Grande do Sul, e faturava uns trocados baseado em suas previsões, feitas em uma cadeia nacional de rádio? Afinal de contas, o adivinhão era ele, não eu.
Pois é essa sua principal atividade. Mas, claro, ele arranjou um nome mais bonito para a profissão. Ele é um Previsor de Eventos Aleatórios com Influência sobre o Comportamento Humano – Precomo. Diz praticar a Previsão Transcendental – Pretrans que não se pode confundir com uma qualquer, dessas trombeteadas a toda hora por “esses charlatões que andam soltos por aí desacreditando a classe”.
Quero saber, então, se ele pode arriscar uma previsão, apenas uma, para mim. Em nome da velha amizade. Ele hesita por um segundo. Logo, porém, esboça um meio sorriso. Imagino ver em seus olhos uma certa desconfiança com respeito a minha crença na sua capacidade preditiva. Resolve, contudo, atender meu apelo, sob a condição de fazer somente uma previsão e de eu anunciá-la somente neste domingo, depois de sua divulgação, por ele mesmo, lá no Sul.
Xuxa, a apresentadora de televisão, afirmou meu amigo, continuará, em 2002, a cruzar o caminho de duendes, como ela afirma ter feito em 2001. Ela fará um acordo com um deles. Pelo contrato, a ser testemunhado por Paulo Coelho e Elba Ramalho, experientes em assuntos correlatos, o duende e Xuxa irão gerar um irmãozinho para filha dela, Sasha, a fim de diminuir um pouco a solidão da menina. Meu amigo só não pôde revelar, por se tratar da intimidade do casal, se a concepção será por inseminação artificial ou pelo método tradicional. Nem se o rebento puxará ao papai ou à mamãe. Duende ou humano? Quem sabe uma mistura dos dois. Não especificou também se o pai, esse pequenino, travesso e inofensivo ser de orelhas pontudas, é brasileiro, estrangeiro, cidadão celestial ou até um extraterrestre que nem de cidadania terráquea precisa.
Curioso, pensei em perguntar sobre outras figuras famosas do meio artístico. Mas, mantive-me fiel à promessa. Ele cumpriu a dele, de me revelar sua previsão mais interessante para 2002. Teria de cumprir a minha de não perguntar mais nada.
Continuo pelo shopping. Fico pensando na possibilidade de chamar os duendes para ajudar o Brasil a tornar realidade as previsões que todo brasileiro gostaria de fazer. De que o país vai crescer e livrar-se de todos os seus problemas, o apagão entre eles, e de que, para a felicidade do povo, venceremos a Copa do Mundo de futebol de 2002, pela quinta vez.
A minha própria previsão é de um próspero e feliz Ano Novo para todos os leitores. Essa não vai falhar, tenho certeza.

23 de dezembro de 2001

Noite amiga

Jornal O Estado do Maranhão
É de Machado de Assis o famoso verso “mudaria o Natal ou mudei eu?”. É parte do “Soneto de Natal”, que fala de um homem que “naquela noite amiga” relembra seus dias de garoto. Quer, melancólico, reviver com versos as impressões de sua infância feliz. Mas, frente à folha branca, que hoje seria a tela do monitor de vídeo do computador, a inspiração se ausenta, “frouxa e manca”. Só lhe ocorre “o pequeno verso”, que se tornou grande com o correr dos anos.
Que a expressão tenham permanecido, a ponto de entrar para o patrimônio particular de nossa bela língua, como um baú de onde todos podemos tirar um quinhão de filosofia popular e de senso comum, é prova da força extraordinária do fundador da Academia Brasileira de Letras. O soneto começa dando a impressão de desejar falar exclusivamente sobre o dilema do homem comum, dilacerado entre o desejo de expressar sentimentos e a incapacidade de fazê-lo.
Exatamente como Pestana, do conto “Um Homem Célebre”, do próprio Machado. Sendo um compositor de sucesso, de polcas muito populares, o personagem não conseguia compor peças clássicas, como gostaria. Quando sua mulher morreu, na noite de Natal, ele jurou compor um réquiem para a missa de um ano da morta. Em vão. Só lhe saíam plágios involuntários de Mozart, Beethoven, Gluck, Bach, Schumann e de outros.
O soneto termina, então, em uma nota surpreendente, com a famosa pergunta. De repente, somos transportados do problema existencial da oposição entre querer fazer e ter a capacidade de fazer, para o outro, muito mais abrangente, o da mudança versus permanência, que tem criado muita discussão entre filósofos, de verdade e de botequim, com imenso gasto de tempo, tinta e papel.
É claro que a pergunta é apenas retórica. Bem sabe Machado que o Natal mudou, como nós mesmos, o tempo todo.
Quem não se lembrará dos natais de sua época de criança? Ia-se dormir cedo para receber logo os presentes que Papai Noel vinha trazer. As tentativas de ficar acordado, mas de olhos fechados, fingindo estar dormindo, esperando o bom velhinho, eram inúteis. O sono sempre vencia a ansiedade e a curiosidade. Quando se percebia alguma coisa, os presentes já estavam debaixo da cama.
Fico a imaginar, muitas vezes, meus pais entrando no quarto, na ponta dos pés, contemplando nossos rostos sonhadores de crianças, para cumprir a tradição milenar, eterna, de nossa cultura. Quem ficava mais feliz? eles ou os filhos? Vejo hoje que acordávamos com a sensação de que a felicidade era o estado natural e permanente do ser humano.
Mudou o Natal, afinal? Lembro que os brinquedos não tinham sofisticação nenhuma, comparados com os de agora, sendo relativamente caros pelos padrões mais recentes. A fábrica de brinquedos Estrela tinha um tal domínio do mercado que ficávamos decpcionados, se ganhávamos um de outra marca. Em compensação, a variedade era menor, com escolhas mais restritas. Acho curioso os papais noéis de hoje, com aquele ho-ho-ho meio ridículo, copiado dos americanos.
Mudamos nós? Mudamos. Nossas atitudes se modificaram, muitos preconceitos caíram, somos mais tolerantes, melhoramos materialmente de vida. Mudamos nossa maneira de querer mudar o mundo. Agora, tentamos transformá-lo com mais cuidado, para evitar a repetição dos desastres humanos e sociais que vimos no século XX e continuamos a ver neste.
Mas, acho que foi na maneira de presentear que mais alteramos nosso comportamento. Passamos a encarar essa simbologia da amizade como mera obrigação. O dar e receber presentes no Natal perdeu um pouco o espírito natalino. Muita gente não faz mais a ceia de Natal. Prefere viajar,  fugindo do estresse urbano, para encontrar nas estradas congestionadas, e nos aeroportos e aviões cheios, mais estresse.
O fato é que, mesmo mudando, o Natal permanece como o metáfora da paz universal possível, apesar da violência e irracionalidade do mundo em que vivemos. Esse é, para mim, hoje, seu verdadeiro sentido. É o que permite desejar feliz Natal a todos.

16 de dezembro de 2001

Cantar

Jornal O Estado do Maranhão
A próxima terça-feira, dia 18 deste mês, será o dia do Coral João Mohana da Auditoria Geral do Estado – AGE fazer sua primeira apresentação, no centro administrativo do Estado, às 17:30 h.
O grupo surgiu de uma iniciativa dos funcionários, por ocasião da implantação do Programa de Qualidade Total no órgão. A direção da casa acredita na importância dessa atividade para a criação de um clima de harmonia e entendimento entre os funcionários e, como conseqüência, para a melhoria dos serviços prestados à sociedade. Por isso, aceitou a sugestão e criou o coral, com o importante apoio da Fundação Estadual da Cultura, através de seu presidente, Dr. Bulcão.
Alguém poderia supor que pessoas que trabalham com balanços, balancetes, orçamentos, relatórios, informática, cálculos financeiros, como é o caso na AGE, não poderiam interessar-se pelo canto coral, visto como atividade incompatível com as outras. A verdade, no entanto, é outra. Apesar de terem objetos diferentes, todas elas são iguais na satisfação que proporcionam a seus praticantes.
Vejo, por exemplo, em todos os funcionários da Auditoria, o orgulho de realizarem um trabalho, o de controle interno do Poder Executivo, reconhecido na administração estadual como de alto nível. Para os bons profissionais como eles, tal reconhecimento compensa a eventual aridez dos meios usados em seu trabalho. Afinal, a deles é uma tarefa nobre, a de evitar o desperdício de recursos públicos, saídos de nossos próprios bolsos.
O orgulho é semelhante ao proporcionado pelo coral a seus componentes, assim como a todos os outros companheiros que, talvez por julgarem-se sem dotes para o canto, apenas acompanham, mas com muito interesse, os progressos durante os ensaios. O canto em grupo, cujos bons resultados dependem não apenas do esforço individual, mas do esforço coordenado tendo em vista um fim único previamente acordado, que é um repertório a ser bem executado, provoca também esse mesmo sentimento de orgulho. Vale aí o lema “um por todos, todos por um”. Tudo isso fala, certamente, à alma e ao coração de todos.
Mas, ninguém se engane. Alcançar a beleza nascida do canto depende de freqüentes ensaios, duros exercícios tão exigentes quanto as atividades de controle interno.
O nome do coral, João Mohana, é uma homenagem a um homem que dedicou grande parte de seu esforço intelectual, durante trinta anos, à reunião de um riquíssimo acervo musical, motivo de satisfação para nossos conterrâneos. Constituída de músicas de compositores maranhenses ou por eles recolhidas, a coleção contém 2.125 partituras de missas, marchas, óperas, operetas, ladainhas, valsas, hinos, pastorais, dobrados, polkas, sambas.
João Mohana, de uma família de imigrantes libaneses, era médico, sacerdote, escritor e membro da Academia Maranhense de Letras, onde ocupou a cadeira número três. Escreveu dois romances, Maria da tempestade e O outro caminho, este premiado pela Academia Brasileira de Letras. Publicou vários livros de aconselhamento para casais. O mais conhecido é A vida sexual dos solteiros e casados, best seller no Brasil e no exterior. Suas obras estão traduzidas em vários idiomas. Ele faleceu em 1995.
A regente é a professora Zélia Matias, da Escola de Música do Maranhão. Sua competência é indiscutível. É uma qualidade necessária, mas não suficiente para o sucesso de um empreendimento desse tipo. Foram sua paciência, dedicação e persistência os principais ingrediente na manutenção da coesão do grupo e da consciência de que somente o esforço, não digo uníssono, pois o coral tem quatro vozes, mas conjunto, na mesma direção, seria capaz de fazer o coral ouvido e apreciado.
Dizem que quem canta seus males espanta. Pode ser. O coral João Mohana irá cantar, porém, não para espantar seus males. Eles são poucos e passageiros. Será, também, para despertar naqueles que irão escutá-lo o sentimento de comunhão com seus semelhantes que só a música, sob a inspiração de sua musa, Euterpe, pode criar em nós.

9 de dezembro de 2001

A tia

Jornal O Estado do Maranhão
Sou de uma geração criada em famílias grandes. Grandes não apenas porque os casais tinham muito mais filhos do que têm hoje, mas, também, pela convivência das gerações. Tinha-se contato freqüente, além dos irmãos e dos pais, com tios, primos e avós. O estilo de vida era outro e as exigências de sobrevivência econômica menores. Havia sobra de tempo para uso em formas de socialização hoje em desuso.
Sem a televisão, computadores e jogos eletrônicos, as crianças tinham a oportunidade de estar mais vezes com as outras de sua idade. Os adultos podiam visitar os parentes e amigos à noite ou em fins de semana, sem nenhum sentimento de culpa pela conversa jogada fora. Os aniversários eram grandes e alegres reuniões familiares nas quais o espírito de camaradagem espontânea estava sempre presente. Ou dizer isso, agora, será mera idealização? Fico sem saber ao certo. Em famílias grandes, os conflitos são inevitáveis.
Entre as minhas tias, uma participou mais de perto das vidas de todos os sobrinhos. Foi a tia Dayse. Para imensa tristeza da família, ela acaba de morrer, sem filhos biológicos, com a idade de oitenta e um anos. Faço este registro por achar que não apenas os famosos e ricos merecem necrológios. Talvez eles sejam os menos precisados dessas homenagens, por já receberem sua cota  de muitos e entusiasmados elogios em vida, algumas vezes até com justiça.
Única dos nove irmãos a entrar no novo século, foi a eles se juntar na desconhecida e misteriosa terra do após vida. Por que nunca se casou? Não sei. Sabe-se de olhares para os rapazes de sua época, sendo mais de uma vez correspondida. Nunca chegou, porém, a falar sobre o assunto. Eternos, esses mistérios do coração! Tenho comigo, porque conheci seu amor pelos sobrinhos, que ela pensava ser impossível, casando, ter a quantidade de filhos que veio a ter sendo tia-mãe, como foi. Escolha admirável.Ajudou a criá-los todos, com incansável dedicação. Foi assim com os filhos da irmã Aldenora e dos irmãos João e Carlos Saturnino Moreira, meu pai. Não apenas ajudou a encaminhar-nos na vida mas criou, mesmo, três de nós, minhas irmãs Lina e Erina e meu irmão João Carlos.
Quem, em tempos mais recentes, a ouvisse fazer referências a “os meninos” ou “as meninas” não pensaria que ela estava falando de pessoas de quarenta ou cinqüenta anos, ou mais, que já lhe haviam dado netos e até bisnetos. Não dizem que, para as mães de verdade, os filhos nunca crescem? São sempre frágeis e desamparadas crianças sem capacidade para enfrentar o mundo cruel lá fora, na ausência da proteção materna? O melhor a fazer é protegê-las carinhosamente, as pobres criaturas.
Aí está a origem de sua preocupação, quase uma obsessão, com a alimentação das “crianças”. Durante os meus dez anos de residência em Brasília, eu vinha muitas vezes, a serviço, a São Luís e ficava com ela. As ofertas, quase imposições, de papas e mingaus, na hora de dormir, ou de doces e outros mimos o dia inteiro, era tantas que eu tinha de alegar ordens médicas ou o peso acima do normal para evitar os excessos. Resistir inteiramente era impossível, especialmente deitado na rede que ela armava quando eu chegava.
Uma das lembranças mais vivas para mim são suas celebrações gastronômicas. Nada era combinado. Mas sabíamos que, se aparecêssemos na casa dela, antes de seguir para os festejos de Carnaval ou para os arraiais de São João, iríamos encontrar o mingau de milho, o bolo de tapioca, o manuê, o bolo de chocolate, os pudins, a feijoada, a galinha ao molho pardo, a bacalhoada, a peixada, a torta de camarão e tudo o mais que os médicos proíbem aos diabéticos como ela. Ela aproveitava essas ocasiões para alegremente contrariar as recomendações médicas.
Restam agora as lembranças perenes. Elas povoarão nossa memória. Seremos testemunhas da herança que a tia Dayse deixou. Não foi exatamente como a do poeta Tribuzi, de “filhos e sonetos”. Mas foi de sua parte mais nobre, a de filhos. E mais de netos, bisnetos e amigos.

2 de dezembro de 2001

O leão e cabul

Jornal O Estado do Maranhão
O leão de que falo não é nenhum valente guerreiro tribal afegão, possível herói da defesa de Cabul, na batalha recente que, afinal, não houve, pela sua posse. É o rei da selva mesmo, de nome Marjan, do zoológico da cidade. Seguindo sua natural propensão para devorar seres humanos insensatos o suficiente para aproximaram-se demais dele, especialmente quando o irrecusável apelo da fome se apresenta, abocanhou um combatente. O super-homem havia entrado na jaula para demonstrar valentia. O irmão do imprudente, num acesso de fúria santa que seria aplicada com melhores resultados nos campos de batalha, vingou-se jogando uma granada no animal, arrancando-lhe um olho e deformando-lhe o focinho. Pobre leão! Pôde apenas conservar sua vasta juba, restos inúteis de sua majestade espezinhada.
Melhor sorte teve outro rei, o do Afeganistão, Mohammed Zaher Sha. Retirado, em 1973, de posto vitalício, onde pretendia ficar por toda sua eternidade terrena, foi, deposto, para a Itália, cercado de poucos mas fiéis súditos e amados familiares. Saiu ileso, fisicamente, embora justamente desiludido com a ingratidão humana. Em Roma, teve o tempo de 27 anos para filosofar sobre a transitoriedade do poder e da vida e sobre a importância da lealdade, em falta no seu país.
Mas, ao contrário de seu colega animal, conservou algo de sua majestade, tendo melhor destino do que seus sucessores. Mohammed Daoud, seu substituto, foi assassinado em 1978; Noor Mohammed Taraki, substituto do substituto, foi chacinado, em 1979, por Hafizullah Amin, que lhe tomou o lugar, apenas para ser eliminado quando os russos invadiram o país e colocaram Babrak Karmal no trono de balanço.
Recebo, agora, uma mensagem, por correio eletrônico, de uma associação americana chamada Tiger Touch (Toque de Tigre), parte de uma rede chamada Great Cats in Crisis (Grandes Gatos em Crise), de organizações dedicadas “a resgatar e oferecer santuário para os grandes gatos com a vida em perigo”. Esse pessoal anda aflito com a sorte de Marjan e outros animais do zoológico da capital do Afeganistão. De tanta preocupação,  estabeleceram um fundo denominado The Marjan Relief Fund (O Fundo de Socorro Marjan), para prover a alimentação e os remédios necessários ao leão de Cabul.
Nada a reparar em tal esforço. É inequívoco sinal de nobreza de sentimentos. Vejam, por exemplo, o lema da organização: ”Leões precisam de amor também”. Além disso, dos dois reis, o mais indefeso e necessitado é o leão, embora ambos já estejam entrados em anos. O rei humano, em verdade ex-rei, dispensa qualquer proteção, pois já tem a dos amigos americanos, russos, ingleses, australianos e outros. Talvez por afirmar sua intenção de querer, apenas, colaborar para a formação de um governo de transição. Diz não pretender ter o trono de volta. Se for verdadeiro, tal desejo mostra bem sua diferença para o rei animal que jamais renunciaria ao poder. Mesmo velho e doente.
Mas, eu fico pensando nos súditos, ou ex-súditos afegãos. Não seriam eles os mais necessitados desse socorro? Não seria o caso de dar-lhes prioridade, mesmo que tão-somente por solidariedade, vamos dizer, de espécie, de humano para humano? Não foram eles que, muito mais do que granadas, receberam bombas sofisticadas, “inteligentes”, “cirúrgicas”? Cirúrgicas a ponto de, como em cirurgias de verdade, matarem o sujeito antes que ele desconfiasse da morte iminente, o que não deixa de ser um verdadeiro ato de piedade cristã, por evitar às vítimas a angústia de encarar o fim inevitável.
A Tiger Touch diz reconhecer a ocorrência de “muito sofrimento humano”, mas que “nós somos também responsáveis pelos animais que mantemos cativos”. Correto. No entanto, não será mais humano dar prioridade ao alívio da dor humana? Alguém acha que os afegãos, seja de que etnia forem, não são humanos, são feras?
Afinal, quem é mais feroz? O leão, tão maltratado e humilhado pelos homens, ou os homens, destruidores impiedosos de seus semelhantes e de animais?

25 de novembro de 2001

Cimitarra

Jornal O Estado do Maranhão
Tomo por empréstimo o título do novo livro de Laura Amélia Damous, Cimitarra, para dar notícia de seu lançamento, amanhã, às 19 horas, no Centro de Cultura Popular Domingos Vieira Filho, na Praia Grande. Já quase tardava a nova obra. A última da autora foi dada à luz há oito anos. Somente o saber que essa poetisa sem par na cultura maranhense dá prioridade à qualidade e não, apenas, à quantidade da sua produção poética, tornou possível esperar esses anos todos, ainda que com mal controlada ansiedade e mal disfarçadas cobranças. A espera resultou ser recompensadora.
Estão reunidos em Cimitarra poemas inéditos e outros recolhidos por Laura de seus livros anteriores, Brevíssima canção do amor constante, Arco do tempo e Trajes de Luzes. Como eu disse na contracapa “sua poesia é personalíssima. A concisão do verso, a surpresa dos achados poéticos, o rigor simultâneo à espontaneidade, a originalidade, a força expressiva do dizer, tudo confirma a excelente poesia dessa Emily Dickinson maranhense que nos ensina a dizer muito com poucas palavras”.
Em texto sobre Arco do tempo, colocado na orelha, Jomar Moraes, ao falar sobre a concisão verbal de Laura, diz que ela escreve de maneira controlada e utiliza os meios adequados à expressão da emoção. Em verdade, essa é uma característica da arte moderna. Vejo na obra de Laura Amélia esse componente distintivo do modernismo, a emoção sob controle – sinal de sintonia com seu tempo – mantida, porém, a inevitável inquietação. Mas, vejo mais. Vejo a surpresa, o imprevisto, o inesperado, o inusitado, a desbanalização, a desautomatização da linguagem, marcas da boa poesia, independentemente do gosto estético dominante em qualquer época. Marcas de perenidade e universalidade.
As palavras, traídas pelo automatismo abusivo com que as usamos no dia-a-dia, mas subtraídas dessa trivialidade cotidiana pela poesia de Laura, são transfiguradas semanticamente. Provocam, por isso, por meio de versos criadores de metáforas de extraordinária inventividade, perplexidade e espanto, tão característicos da nossa reação ante a poesia autêntica. Veja-se, por exemplo, o poema Cimitarra, o primeiro do livro: “A lua afiada/ decepa/ a noite/ Estamos órfãos”. Ou esse outro, Ausência: “O ar/ é feito de ti/ oxigênio ausente”. E esse, Olfato: “Jaz em mim/ Jasmim/ (teu cheiro)”. Os especialistas e teóricos do fazer poético têm aí bom material para estudos que estão fora de minha jurisdição.
Em paralelo à beleza da poesia, a beleza da capa.  Esta foi concebida como uma colagem, com fundo marrom, de três quadros da coleção particular da autora, inspirados nela. São telas dos artistas plásticos Zé Jorge Leite Soares, Ciro Falcão e Lobato. Dos dois textos de apresentação, um é do poeta maranhense Nauro Machado, ganhador do prêmio de poesia da Academia Brasileira de Letras, em 1999. O outro é de Hildeberto Barbosa Filho, poeta e professor da Universidade federal da Paraíba.
A edição foi patrocinada pela Universidade Estadual do Maranhão – Uema. Sem o apoio do seu reitor, professor César Pires, teria sido muito mais difícil do que foi, colocar esse Cimitarra à disposição dos leitores. É prova, tal atitude, da compreensão, pela direção da Uema, do papel que instituições de educação superior devem ter no fomento à cultura de seu Estado e da sensibilidade que não pode faltar a seus dirigentes.
Colocar o livro na rua não foi uma tarefa fácil, com respeito a sua confecção. É que a gráfica Minerva, encarregada de imprimi-lo, demorou, aproximadamente, cinco meses para dá-lo como pronto, a despeito de o original ter-lhe sido entregue totalmente composto, pronto para ser impresso. Ainda assim, apareceram, apenas, quinhentos exemplares. Os outros mil e quinhentos terão de ser apanhados a prestação, em pequenas quantidades semanais.
Mas isso irá passar. Não essa poesia. Ela ficará e confirmará o talento dessa escritora que, certamente, persistirá na construção de sua obra com outros belos livros.

18 de novembro de 2001

Copa 2002

Jornal O Estado do Maranhão
Pareceu e, de fato, foi um pouco ridículo, para uma potência do futebol como o Brasil, ter comemorado, na quarta feira passada, a classificação para a Copa do Mundo de 2002 como se tivesse vencido, por exemplo, uma Argentina, uma Itália ou uma Alemanha na partida final. Essa reação se explica pelo frustrações de uma inédita campanha de derrotas nos jogos eliminatórios, em disputa com antigos fregueses de caderno.
Era inimaginável, até recentemente, irmos para um jogo com medo de perder para a Venezuela, país que tem como seus esportes mais populares o beisebol e o basquetebol, seguidos do futebol na preferência do público. No entanto, o receio esteve presente até o início do jogo. Felizmente, a lógica prevaleceu, o que nem sempre acontece no futebol. O time brasileiro venceu jogando, para valer, somente no primeiro tempo da partida.
Afinal, o Brasil, em dezesseis Copas, ganhou quatro, foi vice-campeão em duas, terceiro em duas e quarto em uma, terminando, portanto, entre os quatro primeiros colocados em mais da metade delas. Se alguém disser que isso é coisa do passado ou é pouco, eu direi que nas mais recentes disputas, fomos campeão, em 1994, e vice, em 1998 e que nenhum outro país fez tanto quanto o nosso.
O mal brasileiro, nesse terreno, ou gramado, tem origem em seus dirigentes. Eles não entram em campo. Todavia, participam, como suspeitos, até agora, de mil roubalheiras. Digo roubalheiras com base em duas CPIs criadas para investigar o futebol. Elas encontraram indícios de evasão de divisas, lavagem de dinheiro e enriquecimento ilícito, conforme a documentação e os depoimentos reunidos pela devassa. Na Comissão da Câmara, uma tal de tropa de choque da CBF impediu a votação do relatório final e tornou inócua toda a investigação. A do Senado sofre, no momento, igual sabotagem por outros membros da mesma “tropa” sem uniforme, mas de finos fraque, casaca e cartola. Tal manobra poderá ser a salvação do presidente da CBF, Ricardo Teixeira, principal acusado, mas a perdição definitiva do nosso futebol.
Independentemente dessas lambanças, contudo, temos uma longa tradição de não acreditar na seleção antes de competições importantes, talvez porque ser pessimista é sempre seguro. Estatisticamente, os pessimistas estarão certos na maioria das vezes. Além disso, quando suas previsões falharem, ninguém vai dizer nada na euforia da vitória. No caso de serem corretas, eles vão poder dizer satisfeitos e superiores: – Eu não disse?!
Quem folhear os jornais e revistas de 1958 vai perceber a incredulidade brasileira ou, pelo menos, da chamada crônica esportiva, a respeito da seleção que ia disputar a Copa. O técnico Feola era um dorminhoco, os jogadores não tinham preparo físico, os russos estavam jogando um futebol científico, o time inglês, chamado servilmente de English Team, usava táticas maravilhosas, a França tinha um ataque arrasador. Todo mundo estava jogando um bolão. Só o time brasileiro era de peladeiros, de pernas-de-pau.
Em 1970, dizia-se que a nossa participação na Copa do México ia ser pior do que a de 1966. Nesta, não havíamos passado da primeira fase. Vivíamos a época da ditadura militar. Dizia-se que Dario, o Dadá Maravilha, fora convocado, para salvar a pátria, por “sugestão”de Medici, o general-presidente. O certo é que o futebol brasileiro não prestava.
Nas eliminatórias, contra essa mesma Venezuela, o primeiro tempo terminou de zero a zero. Os comentários eram todos sobre o domínio dos venezuelanos. Eles iam ganhar no segundo tempo. Pois bem, o Brasil fez cinco a zero. Nelson Rodrigues, com suas tiradas espirituosas, disse em uma crônica, quando a seleção embarcou para o México: – Partiu o escrete. Terminou o seu exílio. Acrescento que em 94 e 98 foi a mesma coisa.
A história bem poderá se repetir em 2002. Não como farsa, como acontece geralmente, mas como reafirmação da superioridade do nosso futebol. Para isso, será necessário afugentar os principais culpados pela crise da seleção.

11 de novembro de 2001

Um ano

Jornal O Estado do Maranhão
Chego, com este, a 52 artigos dominicais aqui em O Estado do Maranhão. Escrevê-los tem sido uma experiência inestimável para mim nesses doze meses. Digo isso porque renovo semanalmente a chance de expor, com o máximo de boa fé, posso assegurar, algumas idéias e de receber a aprovação ou a desaprovação dos leitores. É claro que, em ambos os casos, o proveito maior é meu. Algumas vezes, concordando ou discordando, eles fazem-me perceber algumas nuances daquilo que tentei dizer, mas não disse com nitidez. Sou obrigado, dessa forma, a ter mais cuidado e certificar-me de que estou transmitindo exatamente o pretendido.
Chego, assim, a outra vantagem desse exercício semanal. Ele me força a esclarecer melhor as idéias para mim mesmo, arrumá-las melhor, por assim dizer, para poder expô-las de forma mais clara. Ou menos obscura, pelo menos. Independentemente do mérito de minhas opiniões, tal treinamento torna possível, portanto, evitar interpretações equivocadas, mal entendidos e perda de tempo com explicações que, com esse cuidado, sequer necessitam ser apresentadas.
As reações dos leitores são, quase sempre, bastante corteses, sejam favoráveis ou contrárias aos meus pontos de vista. Percebo que a maioria, embora, naturalmente, preocupada com o assunto em si, também, faz seus julgamentos com base em outros critérios. Suas análises não se sustentam, apenas, na concordância, ou não, apriorística com a minha maneira de ver. Elas vão mais longe. Ponderam sobre a existência, ou não, de coerência e clareza na minha exposição e de lógica nos meus argumentos. Não são puramente ideológicas nem supõem um ponto de partida moralmente correto, em contraposição a uma hipotética incorreção ética do articulista.
Mas, há exceções, infelizmente. Embora em quantidade muito pequena, existem os que não desejam debater, mas impor pontos de vista sem qualquer discussão, por meio do uso de rótulos e palavras de ordem. Foi por isso que já fui carimbado, de corpo presente, ao vivo, de terrorista, em uma ponta do espectro ideológico, e de reacionário, na outra. Acabei um reacionário extremista, portanto. Sou levado a pensar, então, sobre meu acerto em algumas coisas. Devo estar andando longe dos extremismos. Cada um desses autênticos extremistas me coloca na ponta oposta à sua.
O “terrorista” foi por conta dos meus comentários acerca do atentado do dia 11 de setembro deste ano aos Estados Unidos, país que muito admiro, onde vivi por cinco anos. Tenho um filho, Lino Filho, com dupla nacionalidade, americana e brasileira, por ter nascido lá. Em resumo, eu dizia que aquele ato de violência não tinha justificativa moral alguma, mas tinha uma explicação na política externa americanas, sem exclusão da responsabilidade dos governos corruptos dos países pobres, pelas mazelas de seus povos.
O “reacionário” veio de minhas observações sobre a greve das universidades federais. Pelo tom emocional da reação, só posso concluir pelo meu acerto em dizer que falanges minoritárias da universidade gostam muito de criticar, mas pouco de ser criticadas. Na maioria das vezes, preferem, em lugar da discussão civilizada e racional, colocar um carimbo nos que não rezam pela sua cartilha. É mais fácil porque dispensa o extenuante trabalho de argumentar, de racionar, de pensar. Todo rótulo é pré-definido e conhecido, pelo menos para as platéias a que é endereçado. Vem daí o aplauso infantil entusiasmado a esses arroubos “de esquerda”, tornados um reflexo condicionado aplicado a toda hora e a todo mundo.
Mas, ao fim, sai-se enriquecido da experiência. Expor-se ao julgamento dos leitores é participar do jogo democrático, exigente do livre debate e circulação de idéias. É acreditar, como acredito, no amadurecimento de nossa sociedade, o suficiente para torná-la tolerante das opiniões divergentes. É uma atitude que certamente ajuda a eliminar o perigo da opinião única, de tantos prejuízos no passado, e ainda hoje, às sociedades nas quais é proibido discordar.

4 de novembro de 2001

1954

Jornal O Estado do Maranhão 
A quase eleição de Marta Rocha como miss Universo, a Copa do Mundo da Suíça em que o Brasil perdeu para a Hungria, o suicídio de Getúlio Vargas e a presença de minha mãe na maternidade Benedito Leite, para ter uma menina, depois de cinco meninos em cinco anos, foram acontecimentos memoráveis de minha infância.
Todos foram de 1954, quando eu tinha seis anos. Mas, por um desses saltos mortais da memória, que nos leva a reconstruir incessantemente o passado, minha visão deles mudou, até que eu pudesse vê-los todos juntos, como parte de um abrir de olhos para a vida e seus mistérios sem resposta. Mas, por muito tempo, eu os vi distantes uns dos outros, cada um com sua capacidade singular de emocionar.
Na época, ou logo após, eu não poderia vê-los com o plácido olhar do adulto de hoje. Como poderia fazê-lo a criança que me contempla agora, com olhos serenos, ali do primeiro plano de uma foto antiga de casamento do tio Saul com Edilde, se mal tinha consciência de si e do mundo? Se tudo era ainda surpresa, novidade, se a vida era nova na velha cidade?
O Brasil começava a crer no próprio futuro, embora não houvesse ainda a euforia com o sucesso na Copa do Mundo de 1958, as vitórias de Maria Ester Bueno no tênis, a implantação de indústria automobilística, a projeção mundial da música brasileira, com a Bossa Nova, a construção de Brasília e da Belém-Brasília.
Em 1954 quase tivemos uma miss Universo, Marta Rocha. Como no futebol, que, em 1950, quase fora campeão mundial, para grande frustração nacional, a baiana Marta Rocha foi vice-campeã. Perdeu por causa de um quadril maior do que o busto em duas reles polegadas.
Atribuiu-se a derrota a uma suposta má fé dos juízes, por inveja da beleza brasileira. A revista O Cruzeiro, a de maior circulação na época, fez de Marta um símbolo de nosso potencial como povo. Eu ficava admirando as fotos daquelas belas mulheres, sem saber ao certo o que era polegada, mas sabendo que não devia ser uma coisa boa porque prejudicara a nossa miss. Maldita polegada!
Na Copa de 54, perdemos para o bicho papão do torneio, a Hungria, que acabaria sendo derrotado pela Alemanha na final. Ouviam-se os jogos em aparelhos de rádio a válvula, em ondas curtas. Esse tipo de transmissão provocava ruídos e oscilações no sinal do rádio. A gente tinha de colar o ouvido ao alto-falante para ouvir melhor os exageros dos locutores brasileiros. Sem televisão, tinha-se de acreditar nos seus arrebatamentos patrióticos. Os árbitros, coincidentemente, eram todos desonestos, contra o Brasil.
Foi em um daqueles aparelhos, da marca Zenith, em cima de uma prateleira de madeira presa na parede da sala, que ouvi os jogos, na nossa recém construída casa, no então tranqüilo bairro do Monte Castelo, cheio ainda de pitombeiras, mangueiras e jardins, por onde iam passear as pombas que eu criava, mal raiava “sangüínea e fresca a madrugada”.
Getúlio Vargas suicidou-se no dia 24 de agosto, quando minha mãe já estava na maternidade. Ela daria à luz sua única e desejada filha no dia seguinte, 25. Isso acabou ligando os dois acontecimentos na minha memória. A Rádio Nacional do Rio de Janeiro dava, pela conhecida voz de Heron Domingues, no popular noticiário Repórter Esso, notícias da comoção nacional e tocava músicas fúnebres o tempo todo. Lembro bem dos ataques de grupos exaltados a Carlos Lacerda, considerado responsável pela morte, por seus ataques a Getúlio.
No horário de visitação íamos ver a recém nascida e a mãe. Chegávamos, os irmãos, até mesmo os de braço, levados pela tia Dayse. Vínhamos da casa de minha avó, Josefina Moreira, na rua do Passeio, para onde nos mudávamos quando minha mãe estava nos dias de descansar. O hospital ficava na rua do Norte, perto dali. Eu chegava curioso, olhava para as duas e me punha a pensar sobre a história da cegonha. Por que a barriga crescia tanto e depois sumia?
Acabada a contemplação da vida nova, voltávamos para casa e continuávamos a ouvir as notícias da morte recente.

28 de outubro de 2001

Desenvolvimento sustentável

Jornal O Estado do Maranhão
A consolidação e aceitação do conceito de desenvolvimento sustentável resultaram de discussões que, tendo início nos anos 60, tiveram dois marcos importantes, já em 1972, o estudo Limites do crescimento, do Clube de Roma, e a Conferência de Estocolmo.
Ambos destacaram as ameaças à vida em nosso planeta e a impossibilidade de as gerações futuras poderem contar com uma base de recursos naturais adequada a suas necessidades, caso o estilo de desenvolvimento predador da época não mudasse. Ainda na década dos setenta, os debates enfatizaram também as relações entre estruturas concentradoras de poder e degradação ambiental.
Em 1987, a Comissão das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento – UNCED publicou um relatório, Nosso Futuro Comum. É desse documento a bem conhecida definição: "Desenvolvimento sustentável é o desenvolvimento que satisfaz as necessidades do presente sem comprometer a capacidade de as futuras gerações satisfazerem as suas próprias necessidades".
Em 1992, foi realizada a Conferência da UNCED, conhecida como Rio-92. Para ter-se uma idéia do aumento do interesse pelo assunto, é suficiente dizer que, enquanto em Estocolmo estiveram presentes 114 nações, com 1.200 delegados e apenas dois chefes de Estado, ao Rio de Janeiro compareceram quase todos os países, 106 chefes de Estado e, aproximadamente, 35.000 participantes.
Era esperança de muitos que da Rio-92 resultasse uma declaração de princípios básicos para a proteção do meio ambiente e para o desenvolvimento; a assinatura de convenções sobre biodiversidade, mudança climática, biotecnologia e florestas; um plano de ação para o desenvolvimento sustentável no século XXI, a Agenda 21, com os correspondentes acordos financeiros para sua implementação; a redefinição do papel das diversas agência das Nações Unidas, para adequá-las à idéia de desenvolvimento sustentável e um tratado sobre transferência de tecnologia. As expectativas foram, em grande parte, frustradas. No entanto, houve progressos. Um deles foi a criação da Comissão das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável – UNCSD, encarregada da implementação da Agenda 21, com recursos administrados pelo Global Environmental Facility – GEF.
Vê-se que as discussões passaram por etapas delimitadas por importantes eventos. Na primeira delas, cresceu a insatisfação com as tentativas fracassadas de desenvolvimento industrial acelerado dos países pobres e com a ameaça de exaustão da natureza e seus recursos. Na seguinte, a atenção voltou-se para a necessidade de mudança na forma de acesso à terra e dos recursos naturais – e na própria estrutura de poder – como condição necessária, mas não suficiente, para o estabelecimento de um novo tipo de desenvolvimento. Na seqüência, foram aprofundados os debates sobre as relações entre economia, tecnologia e política e foi enfatizada a necessidade de adotar-se uma nova ética que levasse em consideração a eqüidade entre as pessoas da mesma geração e, do mesmo modo, entre as gerações. A idéia era evitar que a melhoria na qualidade de vida da geração atual fosse feita em detrimento do bem estar das gerações futuras.
O processo culminou com a aceitação ampla do novo conceito. As relações entre desenvolvimento e ambiente foram, enfim, incorporadas ao discurso de quase todos os governos, a partir da ECO-92. Admitia-se, dessa forma, que, sem preservação, qualquer desenvolvimento seria insustentável. Daí falar-se na necessidade de sustentabilidade. A Agenda 21 representa a aceitação desse conceito, materializada em programas de governo. Ela é um compromisso com o desenvolvimento no qual o ambiente tem um lugar especial, mas não exclusivo.
Em 2002, haverá um novo encontro, o Rio+10, para marcar os dez anos da realização da Rio-92. Será a hora de os países apresentarem os resultados de suas políticas para a implantação do desenvolvimento sustentável. Era para valer ou tratava-se de retórica, apenas? Veremos.

21 de outubro de 2001

Greve nas federais

Jornal O Estado do Maranhão 
O professor José Henrique Vilhena, reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, em entrevista recente à Veja, afirma que “existe uma doença que ataca a graduação das universidades, o corporativismo”. Nasce daí um permanente estado de greve que impede a aprovação de qualquer proposta de mudança para melhorar o ensino, apesar do gasto da sociedade brasileira, de bilhões de reais por ano, com essas instituições.
 Agora, 440.000 de seus alunos estão ameaçados de perder o vestibular e um semestre de estudos, com prejuízo imediato de oportunidades de trabalho, por causa de uma greve de dois meses. Os grevistas pedem um aumento de 75% e a incorporação de gratificações aos vencimentos. No caso dos professores, a Gratificação por Estímulo à Docência – GED.
Sem levar em conta a curiosidade de pagar-se alguém para fazer algo para o que já é contratado, através de concurso público, pode-se ver a GED como parte de um sistema de estímulo à produtividade. Quem se esforçar e produzir mais, ganhará mais. A incorporação seria a eliminação de uma das possibilidades de avaliação do trabalho do docente, e teria impactos multiplicados na folha de pagamento.
Pedir 75% de aumento, no atual ambiente econômico-financeiro do país, é achar que o governo ainda conta com o imposto inflacionário para cobrir despesas extraordinárias, o que, felizmente, não ocorre mais. É acreditar na teoria conspiratória da história. Neste caso, ela afirma a existência de um plano do governo, de não dar aumento para os professores, para “sucatear” as universidades públicas, sob as ordens do FMI. Coisas do neoliberalismo e da globalização.
Tenho a impressão de que a verdadeira motivação para a posição dos grevistas quanto à GED é a recusa a qualquer sistema de avaliação. O mesmo ocorreu com o provão. Mas, como o governo não fechou os cursos de notas ruins, a resistência diminuiu. Avaliar defeitos, e também méritos, nos campi, é visto como autoritarismo. Isso em um ambiente no qual se critica descuidada e permanentemente e, portanto, avalia-se, tudo e todos, o tempo todo. Só não vale criticar esses críticos. Avaliação é ótima idéia, para os outros lá fora.
O reitor da UFRJ não falou sobre outra doença universitária, a democratite aguda, de fácil diagnóstico, mas difícil cura. Como o sufixo indica, essa enfermidade é uma inflamação da democracia, provocada por um agente patológico bastante conhecido, o aedis discursorum Brasilis. O sintoma principal é a criação de conselhos e a convocação de assembléias para tudo e para nada, de tal forma que todo mundo discute, finge participar e ninguém assume responsabilidade por coisa alguma, em um triste assembleísmo paralisante.
É parte dessa confusão o sistema de escolha dos reitores e seus auxiliares, por eleição direta, que muito mais prejuízos do que benefícios trouxe ao ensino. Na maioria das vezes, com as exceções de sempre, o eleito é o mais simpático, não cobra nem exige o cumprimento de obrigações, é “legal”, dá boas notas, tem habilidade política ou é do partido tal e tal. O prejudicial não é a politização, mas a partidarização.
No entanto, em instituições destinadas à produção de conhecimentos, o poder deveria estar com o saber. Suas regras de funcionamento não deveriam ser uma cópia daquelas da prática política tão severamente criticada pelo próprio mundo universitário. Os mecanismos de funcionamento da política não servem necessariamente para a vida acadêmica, como a realidade tem demonstrado.
Sem a busca de alternativas de financiamento para suas pesquisas, sem o pagamento do custo dos estudos por aqueles que podem pagar, para que os que não podem possam estudar de graça, sem uma reforma na administração, no ensino, na pesquisa e na mentalidade, as universidades federais não poderão melhorar os baixíssimos salários dos professores, dar uma boa formação aos alunos nem produzir os conhecimentos de que o país tanto necessita para melhorar a qualidade vida de seu povo.

14 de outubro de 2001

Um liberal

Jornal O Estado do Maranhão
É do cientista político Nicola Matteucci a afirmação de que as dificuldades de uma definição consensual do que seja liberalismo são de três ordens. A primeira está na história do liberalismo, de ligação estreita com a democracia. Isso torna difícil distinguir um da outra porque é exatamente o liberalismo o critério utilizado para distinguir a democracia de cunho liberal da não-liberal.
A segunda é que o liberalismo, nos diversos países, não apareceu simultaneamente. Na Inglaterra é um fenômeno do fim do século XVII. No resto da Europa, é do século XIX. Terceiro, as experiências liberais encontraram culturas e problemas políticos específicos que criaram diferentes perfis da doutrina em cada país. É por isso que ser liberal nos Estados Unidos é ser de esquerda. Aqui é ser de direita. No entanto, há algo constante nessas idéias.
O liberalismo lutou sempre por instituições representativas e por ampla autonomia econômica e cultural da sociedade civil. Na ética e na política, sustentou a defesa do indivíduo contra o poder opressor do Estado. Recentemente, não tem se preocupado apenas com as liberdades clássicas de reunião, imprensa, participação, mas também com o direito de ser livre da ignorância, medo, etc.
Essa é a essência da visão de um dos mais importantes intelectuais brasileiros do século XX, Roberto Campos, falecido na terça-feira passada. Diplomata, ministro, senador, deputado e escritor, membro da Academia Brasileira de Letras, ele foi não apenas um economista, mas um homem de vasta erudição, um teórico brilhante, um polemista de incisiva ironia e um homem de ação.
Era natural de Cuiabá.Quando a família transferiu-se para Guaxupé, em Minas Gerais, foi estudar em um seminário católico. A seguir, estudou Teologia em Belo Horizonte, mas não chegou a ordenar-se. Depois, em Batatais, São Paulo, ensinou Latim e Astronomia. Foi diplomata de carreira desde 1939. Tornou-se adido comercial da Embaixada do Brasil em Washington em 1942, quando estudou economia na Universidade George Washington. Em 1949, concluiu seu doutorado na Universidade Columbia.
Em 1951, passou a integrar a Comissão Mista Brasil-Estados Unidos para o Desenvolvimento Econômico, durante o Governo Vargas. Ali, sob influência dele, foram elaborados os estudos que resultaram na criação do BNDE, órgão com importante papel nas políticas de apoio à substituição de importações e na modernização da indústria brasileira. Durante o Governo Kubitschek, influenciou na formulação da política econômica do governo, elaborando o Plano de Estabilização Monetária e esboçando o Plano de Metas. Foi para a presidência do BNDE em 1958. Durante o Governo Goulart foi embaixador nos Estados Unidos.
Ministro do Planejamento, de 1964 a 1967, do primeiro presidente militar, Castelo Branco, promoveu, junto com Gouveia de Bulhões, a reorganização das finanças públicas, com as reformas tributária, bancária e administrativa. Criou, ou ajudou a criar, nesse período, o Banco Central, o BNH e outras empresas estatais, do que, em parte, arrependeu-se depois.
Foi um defensor da privatização dos “dinossauros”, como ele dizia, estatais, do fim dos monopólios, da abertura da economia e da disciplina monetária. Combateu com brilhantismo a irracionalidade que, durante muito tempo, comandou a implantação de políticas econômicas no país. Essa mentalidade chegou ao apogeu em 1988, quando foi inserido na nova Constituição um dispositivo que limitava os juros da economia a 12% ao ano, com a renúncia ao uso de qualquer política monetária. Restos esquerdistas da ancestral moral judaico-cristã.
Ele viveu o suficiente para ver a maioria de suas idéias adotadas no Brasil. Se o país mudou e hoje está melhor do que em 1994, como acredito estar, é por causa, em boa parte, de sua incansável luta pela adoção de políticas econômicas racionais e pela rejeição de arrogantes irracionalismos ideológicos de pretensos monopolistas da sensibilidade social. No fim, a vitória foi dele, um liberal.

7 de outubro de 2001

Reformas

Jornal O Estado do Maranhão
Do total de 420 deputados federais brasileiros, 156, equivalentes a 30% da Câmara dos Deputados, mudaram de partido durante a atual legislatura iniciada em 1999. No Senado, “apenas” 16% seguiram esse edificante exemplo. Partidos cresceram ou diminuíram, subiram ou desceram, engordaram ou emagreceram, sem dar a mínima satisfação aos eleitores ou à opinião pública e sem mudar a orientação ideológica ou os programas partidários para justificar essa movimentação toda.
Houve um deputado que trocou sete vezes de partido. O ilustre representante do povo demorou longos 4 meses e 21 dias, em média, em cada um por onde passeou. Ele revelou o estranho desejo de mudar novamente, se alguém bater seu recorde, para recuperar o título de campeão.
Outro, mais comedido em seu ímpeto mudancista, tendo pulado de galho modestas seis vezes, alegou que variou tanto porque, como bom democrata, não suportava por muito tempo os colegas travestidos de manda-chuvas. Revoltava-se por não ser dele, homem de elevados e sólidos princípios e de tanto merecimento, o posto de chefe. O próprio relator de uma reforma eleitoral em tramitação no Congresso acaba de trocar de partido. Será uma indicação de como será seu relatório sobre a matéria?
O caso é de infidelidade. Contudo, a bem da justiça, não se pode deixar de mencionar uma virtude dos deputados ecléticos. Eles não escondem seus (de)feitos. Pelo menos no caso do troca-troca. Tanto que, orgulhosamente, anunciam aos quatro ventos, com cobertura da imprensa, a troca de time, quero dizer, de partido. Curioso é outros fazerem o oposto. Reúnem a imprensa, da mesma forma, não para anunciar, depois de muito suspense, o abandono do barco partidário, como haviam prometido, mas a decisão de não mais deixá-lo.
Acredito que a principal razão para essa anarquia está na legislação. Ela não só permite como até incentiva esse comportamento dos parlamentares. Mas, o Brasil necessita exatamente do inverso, um conjunto de normas para ajudar na consolidação nosso sistema político-partidário, de tal forma que se possa ter a estabilidade indispensável à solução de nossos problemas econômicos e sociais.
Uma reforma profunda nessa área é a mais importante a ser feita no país a curto prazo. Sem ela o Brasil continuará a pagar um preço muito alto pela demora e, muitas vezes, inviabilização de medidas que precisam ser adotadas com urgência em diversas áreas, mas não o são. Isso ocorre nos campos tributário e fiscal, apenas para ficar num exemplo de uma tentativa que se arrasta há anos, enquanto a competitividade de nossa economia continua a diminuir em comparação com a de outras.
A verdade é que nenhum governo, pelo menos desde a redemocratização de 1946, com exceção dos governos militares, conseguiu estabelecer maiorias duradouras e estáveis no Congresso Nacional que permitisse a implementação de diretrizes governamentais coerentes e duradouras.
Cada votação de medidas importantes para o país transforma-se numa batalha pela captura de votos de parlamentares sem compromisso com os programas de seus partidos e sem nenhuma disciplina ou fidelidade partidárias. O resultado tem sido um forte incentivo à política do “é dando que se recebe”, não no sentido cristão da expressão, mas no de troca de favores de forma pouco ética, o chamado fisiologismo.
 Após a estabilidade monetária duramente conquistada a partir de 1994, resta-nos, já com atraso, fazer as outras reformas necessárias ao país. A demora em fazê-las é evidência da necessidade de adaptação de nossos arranjos institucionais para tornar possível a implantação delas.
A fidelidade partidária, junto com eleições distritais, em um sistema parlamentarista, merece ser trazida novamente à discussão. O presidencialismo já foi testado durante mais de cem anos e mostrou não dispor dos mecanismos eficientes de amortização de crises, característicos do parlamentarismo. Esse é o caminho para a solução permanente das freqüentes crises vividas pelo Brasil.

30 de setembro de 2001

O futuro do livro

Jornal O Estado do Maranhão
Na palestra do brasilianista francês Jean Soublin, na Academia Maranhense de Letras, sobre as imagens do Brasil na França ao longo dos séculos, encontro Sálvio Dino. Somos amigos desde o começo dos anos setenta, quando ele era um deputado estadual cassado “por atividades subversivas”, mas não ainda imortal, e eu um recém-formado economista. Naquela época éramos assessores de Jayme Santana, meu ex-colega de faculdade, então Secretário da Fazenda do Governo Pedro Neiva de Santana.
Sálvio pergunta à saída do auditório se conheço o famoso Jean Paul Jacob, que anda prevendo a morte do livro de papel, esse antigo e querido companheiro. Olho para os lados, certificando-me da ausência de testemunhas da minha ignorância e, meio envergonhado, confesso baixinho que não, mas que já tinha tido notícia dessa conversa em algum lugar. Talvez, em algum canto de um suplemento dominical de um jornal qualquer.
Ele, que prepara um livro sobre a dinâmica da ocupação do território maranhense, na suposição, naturalmente, de que livros continuarão a existir, fará uma palestra para estudantes do segundo grau, como representante da Academia, sobre a importância e valor do livro nos dias de hoje. Quer todas as informações que possa reunir sobre o assunto.
Corro para a internet. Confirmo a existência do tal Jacob. Ele é engenheiro da IBM e conferencista do Departamento de Engenharia Eletrônica e Ciência da Computação da Universidade da Califórnia. É brasileiro, formado pelo Instituto Tecnológico da Aeronáutica – ITA. Não lhe faltam credenciais.
Esse engenheiro se dedica ao estudo da tecnologia e seus desenvolvimentos futuros, incluindo engenharia de software, inteligência artificial e multimídia. Entre suas previsões está, por exemplo, a de que futuramente, ao fazer compras em supermercados, ninguém precisará preocupar-se em usar cartão de crédito e, muito menos, em pagar com cheque ou dinheiro em espécie. Ao sair da loja, os consumidores serão automaticamente identificados por sua “aura digital”. Com isso, um débito automático será feito em sua conta bancária.
Não duvido de previsões desse tipo. Afinal de contas, inovações tecnológicas inconcebíveis até há pouco tempo são, agora, parte de nosso cotidiano. Vejam a telefonia celular e a própria internet. Quem apostaria, alguns anos atrás, na viabilidade de podermos carregar telefones no bolso e de termos uma rede mundial de computadores que nos permitisse ver imagens e textos armazenados em computadores a milhares de quilômetros de distância? Ou de nos comunicarmos, rapidamente e a baixo custo, por meio do correio eletrônico?
Mas, com o livro a história é outra. O próprio Jacob admite a inviabilidade econômica de algumas tecnologias novas. Ou a rejeição delas pelos usuários, por não representarem vantagens reais para eles, em comodidade de uso ou longevidade dos produtos que as utilizam.
Até agora, pelo menos, não há nenhuma tecnologia de suporte para a escrita com a durabilidade do papel nem com sua comodidade ou praticidade. Nenhum meio de armazenamento eletrônico dura tanto quanto o papel. Ninguém consegue ler um livro numa tela de computador, com as tecnologias atualmente disponíveis. O livro eletrônico, hoje, é apenas uma idéia. Poderá ser um complemento, não um substituto do livro tradicional. Este é portátil, fácil de ser manuseado e não depende de eletricidade Por muito tempo será assim, acredito.
Mas o Dr. Jacob despreza outro fator, o mais importante em qualquer avaliação sobre o futuro do livro. É a relação emocional com esse objeto cultural. O leitor quer tocá-lo, alisar sua capa, sentir o cheiro do papel, a textura. Quer olhá-lo e saber que quando precisar dele, o terá ali, ao alcance da mão e da vista, para atendê-lo, informá-lo, iluminá-lo. Quer senti-lo como seu.
Mas, como tudo passa, o livro um dia passará. Como passará o nosso planeta, engolido pelo sol. Nesse dia, porém, tudo o mais também terá passado: a vida e a morte, os deuses e os homens.

23 de setembro de 2001

Tragédias

Jornal O Estado do Maranhão
Não há justificativa de espécie alguma para os atentados ao povo norte-americano, com a perda de milhares de vidas de pessoas inocentes na destruição do World Trade Center e de parte do edifício do Pentágono. Perder apenas uma vida já seria suficientemente doloroso para qualquer povo.
Os americanos conheceram, de repente, o sentimento de viver sob a ameaça do terror que aflige outros povos. Como o do Iraque. Lá, crianças morrem diariamente, como resultado do bloqueio econômico americano ao país, sem contar as outras mortes resultantes das bombas dos Estados Unidos na Guerra do Golfo. Ela foi feita para defender a ditadura do Kwait, tão odiosa quanto a iraquiana. A única diferença é que uma é a favor dos Estados Unidos, a outra contra.
O povo iraniano viu os Estados Unidos treinarem e armarem esse mesmo Iraque, da mesma ditadura de Sadan, para a invasão do Iran. Armado e treinado por eles foi também Osama bin Laden quando combatia as tropas russas que foram obrigadas a sair correndo do Afeganistão. O uso da força bruta havia se revelado inútil. De anjo justiceiro ele passou a ser o diabo na Terra.
Um outro exemplo de vida sob o terror é o dos palestinos. Eles não vêem os Estados Unidos como um mediador neutro nos conflitos do Oriente Médio. O papel dos americanos, pela sua força, é fundamental para a paz naquela área. No entanto, há décadas, raras vezes têm se empenhado imparcialmente para solucionar os problemas da região.
Esses povos e outros têm sido estereotipados, há muito tempo, pela mídia americana, como bárbaros, ao mesmo tempo em que a política externa dos Estados Unidos ignora a cultura deles. Não é o caso de defender um relativismo cultural que justifique atitudes contrárias a valores universais de respeito à vida, sob o argumento de que “é assim na cultura deles”. Trata-se apenas de, num sistema imperial globalizado, sob o comando dos Estados Unidos, oferecer a todas as “províncias” do império um mínimo de boa fé na análise de suas queixas referentes às desigualdade na distribuição da riqueza mundial e às injustiças do sistema capitalista globalizado. Não estão isentos de culpa, porém, os governos corruptos dos países pobres, apoiados pelos próprios Estados Unidos se favoráveis a seus interesses.
A posição americana tem sido de arrogância e menosprezo pelos pontos de vista alheios, com o respaldo de suas armas de destruição em massa. Essa atitude gera ódios e ressentimentos que vêm se acumulando não apenas no mundo islâmico, que ajudou a civilizar a Europa durante séculos, mas no resto do mundo.
E o comércio internacional? São bem conhecidas as barreiras não tarifárias que os Estados Unidos criam à entrada em seu mercado de produtos do Brasil e dos países emergentes. O livre comércio é bom, contanto que o mercado de lá não seja aberto à concorrência “inimiga”. O presidente Bush foi claro recentemente ao dizer que só lhe interessa a defesa dos interesses econômicos de seu país. Os outros que se danem.
O que dizer da indiferença dos Estados Unidos com relação ao ambiente? Eles emitem 25% dos gases estufas gerados no planeta, mas recusam-se a ratificar o Protocolo de Kyoto que poria limites às emissões. E da retirada da conferência contra o racismo? E da rejeição do tratado de eliminação de armas bacteriológicas que eles tanto condenam nas mãos dos outros? E da quebra unilateral do acordo com a Rússia sobre armas nucleares? É o isolacionismo insensato e egoísta.
Lamentamos sinceramente a tragédia americana. Mas, não se podem esquecer as outras pelo mundo afora. As vítimas da violência, de qualquer nacionalidade – americana, iraquiana, afegã, irlandesa ou líbia –, são igualmente merecedoras de nossa compaixão. Cada vida tem um valor incomensurável, igual ao de qualquer outra. O uso de mais violência, o espírito belicoso e a histeria coletiva são o caminho mais rápido para outros morticínios. Somente soluções políticas, negociadas entre todos e para todos, evitarão novas tragédias.

16 de setembro de 2001

Atenas, mas uma vez?

Jornal O Estado do Maranhão
Entre o vasto material reunido por Jean-Michel Massa no seu Dispersos de Machado de Assis, há uma crônica de 3 de abril de 1866, publicada no Diário do Rio de Janeiro. Nela, Machado faz comentários sobre o primeiro volume, de um total de cinco, da obra de Sotero dos Reis, Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira, produto de suas atividades de professor no Maranhão. Lamenta, então, a negligência no estudo da língua portuguesa no Brasil da época para afirmar que “ [...] o autor do Curso de Literatura é uma das raras exceções, e para avaliar o cuidado e o zelo com que ele estuda a língua de Camões e de Vieira, basta ler este primeiro volume [...]”.
Em uma das notas a essa crônica, Massa afirma que Machado sempre manifestou certa benevolência com relação ao chamado Grupo Maranhense. Talvez, em sua opinião, por causa da amizade de Machado com Joaquim Serra. De fato, há referências elogiosas e freqüentes do escritor carioca ao amigo maranhense e a diversos intelectuais do Maranhão, em muitas ocasiões, ao longo de sua carreira de cronista.
Mas, claro, apenas a amizade com Joaquim Serra não pode ser uma boa explicação. No início de 1866 os dois ainda não se conheciam. Eles somente se encontraram mais para o fim do ano, quando Serra foi ao Rio de Janeiro representar seu Estado, do qual era Secretário de Governo, na Exposição Industrial. Ainda que se tivessem conhecido em abril, somente a amizade, tão recente, não justificaria o entusiasmo pelo nosso Estado.
 Creio numa sincera admiração pelo talento do grupo como melhor explicação para as constantes menções. Lembremos que, naquele tempo, o Rio de Janeiro ainda tinha muito de cidade provinciana, embora em rápido crescimento em função da economia cafeeira, e o Maranhão gozava de grande e justificado prestígio literário em todo o Império.
O Grupo que nos dera fama surgira como se viesse do nada, de um passado de extrema pobreza sem expressão literária alguma. Fora, todavia, uma conseqüência não obrigatória, por certo, da riqueza temporária, é verdade, mas bastante produtiva culturalmente, com origem na economia do algodão no século XIX. Como bem diz Jomar Moraes na Bibliografia Crítica da Literatura Maranhense, isso tudo dá o que pensar.
A freqüência da citação de maranhenses é um reflexo da importância do Grupo. Não se trata de benevolência. Basta citar alguns nomes, além de Sotero e Serra, para ver-se isso: Odorico Mendes, João Lisboa, Gonçalves Dias, Sousândrade, Trajano Galvão, Henriques Leal, Gomes de Sousa. De Odorico, aliás, Machado disse que naturalizara Virgílio e Homero na língua de Camões.
Mais importante, porém, do que descobrir os maranhenses nas crônicas de um escritor da importância de Machado de Assis, é buscar as razões para o surgimento do Grupo. Certamente haverá alguma relação entre o ciclo do algodão e o aparecimento de uma geração tão brilhante. Ou será apenas coincidência que, findo o período de grandeza econômica no Maranhão, os herdeiros da tradição de Atenas Brasileira, não tenham nunca, como grupo e consistentemente, superado em quantidade e qualidade as realizações daquela geração?
É uma tese marxista a afirmação de que a infra-estrutura eco­nômica condiciona as instituições das sociedades em todos os seus aspectos, inclusive os culturais. Em sua versão vulgar isso aconteceria mediante uma relação linear direta de causa e efeito. Mas, não se precisa recorrer a nada disso para admitir que uma base material, dada pelo excedente econômico, é necessária, embora não suficiente, ao desenvolvimento da cultura até o limite de suas potencialidades. Pode dar-se, no entanto, por várias razões, que essas precondições materiais existam, mas a cultura não floresça.
Aí está, portanto, um tema importante para discussão. Podemos, hoje, ter a esperança de ter um fenômeno semelhante ao do século XIX? Existem os pré-requisitos? Se existem, o resultado será similar ao do passado? É possível, afinal, ser Atenas, mais uma vez?

9 de setembro de 2001

Magia

Jornal O Estado do Maranhão
O patriotismo está em baixa no Brasil, a julgar pela atitude de um brasileiro famoso mundialmente, Paulo Coelho. Ele é homem de mil talentos, entre os quais os de compositor roqueiro, com várias parcerias com Raul Seixas, e escritor com mais de 32 milhões de livros vendidos em todo o pla­neta.
Possui, ainda, poderes mágicos. Gera ventos e chuvas, desengarrafa o trânsito com a força do pen­samento, torna-se invisível, prevê o desempenho de presidentes da República, adivinha o nome de namorados de ministras da Fazenda. Não se compreende, por isso, sua recusa a usar tais capacidades em benefício da pátria, justamente quando atravessamos uma séria crise de energia.
É evidente que ele não iria vulgarizar sua força, usando-a por um motivo sem importância. Mas, seria fora de propósito pedirmos a utilização tão-somente de sua capacidade de fazer chover? Afinal, o país não está precisando de um bom dilúvio bíblico? A prioridade nacional não é encher os reservatórios de água das hidrelétricas, para geração de energia?
Embora sem renegar seu passado de mago, em entrevista recente à revista Veja, ele afirma não precisar mais dar prova de nada, especialmente de público. Ventos ele disse já ter produzido enquanto dava uma entrevista ao jornal O Globo. No programa da apresentadora Marília Gabriela, na televisão, previu a derrocada do governo Collor. No de Jô Soares, deu as iniciais do namorado de Zélia Cardoso de Melo. Naquela época, ninguém sequer imaginava que por trás da sisudez da ministra da Fazenda pudesse haver um coração tão terno e amoroso a ponto de fazê-la dançar o bolero com seu amado BC, Bernardo Cabral. Ou terá sido o tango argentino, como no poema?
Entende-se o desejo dele de não fazer demonstrações públicas, ante olhos indiscretos e maldosos. Que faça chover no Brasil, então, quando estiver em casa, reservadamente, longe dos curiosos. O importante é o resultado, muita água Ele diz não querer gastar energia novamente com nada disso. Está certo, mas só parcialmente. Cruzando os braços, indiferente, estaria seguramente contribuindo para a poupar sua energia. Gastaria zero kilowatt de seus próprios recursos energéticos, afinal parte dos nacionais.
Todavia, ele deveria considerar que, ao fazer chover, seu dispêndio seria compensado várias vezes pela energia gerada nos reservatórios reabastecidos. Trabalho, talvez, de uns seis dias. Esse pequeno sacrifício não valeria a satisfação de ver milhões de brasileiros felizes? Onde está seu sentimento patriótico? No sétimo dia ele poderia descansar e contemplar com satisfação sua obra.
Na hipótese de insistir em não cumprir, ele mesmo, essa obrigação, seja por cansaço, por não ter mais saco, ou por outra razão qualquer, não é de crer que não se dispusesse a convocar para a tarefa seus amigos de todos os cantos dos céus e da terra, magos como ele. Poderíamos, assim, empregar recursos alienígenas, sem prejuízo dos nossos. Para comunicar-se com os colegas, não importando a distância, ele poderia lançar mão de seus poderes telepáticos. Com essa legião do bem, o Brasil estaria, enfim, salvo de racionamentos e apagões.
Se algum patriota mais exaltado, porém, inconformado com a indiferença dele, ameaçasse reagir com violência, ele recorreria a seu poder de tornar-se invisível, que exige uma quantidade ínfima de energia. Para maior segurança, ele poderia, até, fugir em sua limusine, abrindo, com a força do pensamento, caminho através do trânsito confuso, já que não parece ter o dom de voar. Será mesmo? Fiquei em dúvida. Vai ver, ele tem.
Por fim, caso sua insensibilidade frente aos sofrimentos da nação venha a prevalecer, a única coisa a fazer será torcer para que o mesmo sinal vindo de seu interior, que o aconselhou a desistir de sua candidatura à Academia Brasileira de Letras (“Não se candidate”), no momento em que ele sentou na areia para fumar um cigarro, manifeste-se novamente, sussurrando desta vez: – Paulo, ajuda teu povo. Cumpre tua missão. Manda chover!

1 de setembro de 2001

Doutrinas em conflito?

Jornal O Estado do Maranhão
Há uma luta na cidade. Não chega a ser uma guerra, daquelas onde vale tudo, com repercussões imensas e imprevisíveis, com ódios irreconciliáveis. Mas não se trata também de um conflito corriqueiro, vulgar. Em verdade vos digo, caríssimos leitores, ser essa luta de outro tipo. Não tem nada em comum com outras, profanas, vistas diariamente nos meios de comunicação. Não provoca dores físicas. Apenas as espirituais, de difícil avaliação pelos padrões banais do cotidiano. Não fere o corpo, mas a alma.
O caso apareceu na imprensa de São Luís há algumas semanas. Da leitura da notícia redigida de forma um tanto obscura, pude entender que uma igreja, ostentando em seu nome a palavra paz, entrou com um pedido de reintegração de posse de um templo no qual funciona uma outra igreja intitulada evangélica. O advogado desta disse que iria apresentar ao juiz, na audiência de justificação, um termo de concessão de direito de posse fornecido pela extinta Cohab-MA em 1994.
Fez, o ilustre causídico, uma revelação interessante e curiosa: o hoje desfeito ajuste entre as igrejas foi de caráter espiritual, por tempo indeterminado. Ele dá a impressão de compreender, com essa afirmativa, a impossibilidade de submeter-se um acordo de natureza tão etérea a cartórios, registros, contratos, tabeliães, traslados e emolumentos, negócios meramente materiais. Deveria o acordo, então, ser levado a julgamento por cortes celestiais as quais devem julgar questões de salvação ou condenação de almas e, pode ser, de pactos es­pi­rituais rompidos? Talvez sim. Além disso, como se poderia marcar um tempo certo para a eternidade do espírito?
Contudo, o jeito foi apelar para a imperfeição humana. Apesar de seu caráter, podemos dizer, imaterial, a aliança terminou num desacordo sobre a materialidade do templo e do direito a sua ocupação. O problema terá de ser resolvido pela justiça dos homens, sempre tão falha, parcial e influenciada pelos freqüentemente irresistíveis vícios mundanos.
Isso tudo me faz lembrar as justamente famosas brigas judiciais por ocasião da maioria dos divórcios vistos por esse mundo todo. O começo da união é de promessas de eterna felicidade, simbolizada pela troca de alianças entre os parceiros em meio a incontáveis e sinceras, naquela hora, juras de amor perene. Todavia, há, no fim, troca de acusações cruéis e uma fria decisão judicial.
Ou, o que era para ter o aval e a direção de forças espirituais, resultou, no nosso caso, em apelo aos pobres pecadores das imperfeitas cortes da Terra. O advogado da igreja, por sinal, talvez pensando exclusivamente nas recompensas extraterrestres, em um futuro que todos nós, mortais, esperamos estar distante pela medida do tempo feita pelos homens, afirma trabalhar vo­lun­ta­riamente, sem cobrar um tostão de seus irmãos. Não se pode duvidar.
Ele admitiu, no entanto, a ocorrência de divergência doutrinária como causa do lamentável des­entendimento. Ora, nisso não há surpresa. A história da humanidade está repleta de disputas religiosas, muitas vezes transformadas em desapiedadas guerras. Não chego, porém, ao absurdo de considerar a possibilidade de acontecer o mesmo aqui.
Vejo, apenas, uma aversão perigosa àquilo que diverge de nossas próprias crenças. Em ambientes de ódio e exacerbação do espírito de seita, como atualmente na Irlanda do Norte e no Oriente Médio, isso conduz a mortes e destruição. Contra tal sentimento, não sei se inato no ser humano, devemos estar sempre alertas. Algo semelhante ocorre com o nacionalismo xenófobo, tribalismo disfarçado, que tem, até em regiões supostamente civilizadas, como a Europa, conduzido a tragédias como as dos Bálcãs.
Torço pela breve resolução do problema, na hipótese de ele não estar, ainda, resolvido. Se não estiver, e já que as duas igrejas não podem estar com a razão simultaneamente, somente lhes restará esperar que o mesmo deus reverenciado por ambas as cubra com a luz da paz, para revigorar o espírito evangélico delas.

26 de agosto de 2001

A avó

Jornal O Estado do Maranhão
O menino gostava de ouvir as histórias da avó. Ela chegava às sete horas da noite, pequenina, ligeira, decidida como em tudo que fazia. Sentava-se em uma cadeira de balanço de madeira e lona no terraço do bangalô estilo anos 50, para conversar com a filha e encantar os netos. Abençoava uma a um antes de pegar, para abanar-se, o leque suavemente perfumado (cheiro de missa, de igreja?). Se não o trazia, usava o abano de palha de atiçar os fogareiros. Não era raro ela fumar um cigarro. Ele achava esquisito. Fumar não era coisa de homem?
Trazia fragmentos do dia e da vida trivial só na aparência. A feira pela manhã, o emprego dos filhos, as dificuldades da vida, os vizinhos abelhudos, as zangas com a nora, os comentários da rua estreita e pequena, os bentivis e as andorinhas no beiral da porta-e-janela no centro da cidade.
Nessa casa, uma telha deslocada deixava o sol marcar as horas com um raio oblíquo, formando um feixe de luz de partículas de poeira em suspensão, que desciam e subiam entre o teto e o piso. Relógio imprevisto nas tardes luminosas e calorentas. Quando o sol no chão estava de um lado da rede armada no quarto pequeno, era quase meio dia. Quando passava para o outro lado, eram quase duas horas.
Trazia também o interior, Cajapió, conhecido dele tão-só pelas histórias contadas por ela, de gente, de boi, de cavalo, de mato, de mar, e pelos parentes humildes que ainda moravam por lá. Eles apareciam algumas vezes com suas falas melodiosas e sintaxe própria, curiosa para ele. Nos pés, grossos tamancos, sandálias de couro ou, por vezes, nada. Às costas, cofos de farinha d’água e de jaçanãs salpresas.
Eram presentes para a mãe e a avó, quem sabe para elas não esquecerem da terra, não perderem as raízes, lembrarem-se das origens depois de tantos anos na cidade. Para aqueles meninos da capital ficarem sabendo da existência de outros lugares, diferentes daquele onde nasceram e viviam. Falavam das pescarias, dos peixes de nomes estranhos, dos animais caçados. Almoçavam, saíam, visitavam outros parentes e voltavam ao anoitecer para o jantar. No dia seguinte iam embora, já saudosos de seu chão.
As histórias da avó formavam uma enciclopédia viva de encantamento e imaginação. Eram como as das mil e uma noites, uma nova a cada crepúsculo. Serviam para transmitir um sistema de valores éticos e morais universais, de lealdade, honestidade, solidariedade e fé. Esta não ficou no menino, apesar das tentativas de mantê-la e da freqüência constante a colégios religiosos depois.
Havia as de assombrações, almas penadas, cemitérios, bailes fantasmas, mortos-­vivos nos campos e cidades, vaqueiros castigados injustamente pelos patrões, fugas de romeus e julietas em belos alazães, amores impossíveis, castigo do destino a filhos pela rejeição aos pais, traições de amigos desleais. O real e o imaginário misturando-se. Em algumas, o recurso aos santos e a Nossa Senhora como remédio para as aflições do momento.
Uma falava-lhe com mais afeto ao coração e à imaginação. Era a de um navio encantado que podia ser visto da praia, por volta da meia-noite, a uma distância suficiente para ver-se sua comunidade fantasma. Ele cruzava lentamente toda a extensão da linha do horizonte, iluminado por intensa e branca luz que chegava até à areia, como um altar em procissão, inclinando-se levemente para um lado e para o outro. Depois voltava na direção contrária, tão belo quanto antes, carregando ainda na ponta do mastro maior uma estrela. Aparecia e desaparecia apenas para exibir sua beleza ofuscante.
Muitos anos após, ele assistiu ao filme Amarcord, de Fellini, recordação nostálgica, pelo diretor italiano, de sua aldeia de nascimento. Ao ver a cena da passagem do navio Rex todo iluminado, admirado por Gradisca, suas irmãs e o proprietário do cinema Fulgor, lembrou-se de sua avó, Marcelina Raposo, e compreendeu que ela e Fellini tinham algo em comum: a capacidade de transformar o amor pela terra natal na fina arte de recordar e contar.

19 de agosto de 2001

A cidade, O homem

Jornal O Estado do Maranhão
Os maranhenses orgulham-se do centro histórico de São Luís. Mas não foi sempre assim. Até1979, a situação era triste e dolorosa. Causava vergonha o abandono de seus prédios e ruas, fantasmas de pedra e cal. Eles sequer podiam perambular pela cidade em busca de redenção. Se tinham cometido pecados, já os haviam purgado no longo desamparo.
A partir daquele ano, boas consciências desabrocharam. Sucessivos governos estaduais começaram a trabalhar pela preservação. Mas, nenhum fez tanto quanto o atual. Além de estar cumprindo a maior das etapas de investimentos no centro histórico, a governadora Roseana Sarney tomou a iniciativa que resultou na designação de São Luís, pela Unesco, como Patrimônio da Humanidade.
Enquanto tratava de preservar, seu governo investia na infraestrutura de turismo. Os visitantes começaram a chegar em números crescentes. Não para contemplar ruínas e ouvir lamentações, mas para testemunhar a permanência de nossa história, da qual é bela amostra o antigo e restaurado Solar dos Vasconcelos, sede do Memorial do Centro Histórico.
O Programa de Preservação e Revitalização deve muito ao trabalho de Phelipe Andrés, um mineiro aqui chegado em 1977, para surpreender-se com “uma Ouro Preto à beiramar”. Ele veio cumprir uma profecia de ser encontrado por uma cidade, para dela fazer seu projeto de vida.
Naquele ano, insatisfeito como engenheiro civil no Rio de Janeiro, e de passagem, certo dia, pela imensa rodoviária de São Paulo, Phelipe encontrou, por extraordinária coincidência, um amigo de infância de Juiz de Fora. Agora quase irreconhecível, com longas barbas e ares de filósofo, aquele homem, presença do passado, disse-lhe que, no futuro, prestasse atenção nas cidades que as pessoas iriam mencionar como por acaso. Aquela do sonho de Phelipe iria escolhê-lo. Não o contrário.
Poucos dias depois, encontrou uma amiga maranhense que lhe falou de São Luís e seus sortilégios. Outros transmitiram-lhe o apelo encantatório da cidade. Esta falava, assim, pela palavra dos amigos. Ele aceitou o chamado. Amou-a e a ela se entregou, mal tocou a terra pelas mãos de Miguel Nunes, ex-presidente da Cemar.
Fascinado pela beleza da arquitetura e pelas velas coloridas dos barcos do Portinho, depressa superou seu desconhecimento sobre nossa história. Não exagero ao dizer que ele teve papel fundamental na realização, em 1979, do I Encontro Nacional da Praia Grande, quando foram lançadas as bases conceituais do Programa, ainda orientadoras das ações governamentais na área.
Da reunião, precedida pela vinda ao Maranhão dos arquitetos Viana de Lima, em 1973, e John Gisiger, em 1978, que produziram estudos básicos sobre as políticas de preservação, participaram técnicos estrangeiros e brasileiros, as comunidades, universidades e sindicatos.
A restauração de casarões, igrejas e palácios é a parte mais visível do trabalho. Há outros subprogramas que formam um conjunto coerente: Promoção Social e Habitação, Recuperação da Infra-Estrutura de Serviços Públicos, Incentivo às Atividades de Turismo Cultural, Revitalização das Atividades Portuárias, Recuperação do Patrimônio Ambiental Urbano e da Arquitetura Industrial, Pesquisa e Documentação, e Editoração e Divulgação. Desde 1995, na etapa atual, foram executadas, estão em execução, planejamento ou estudos, 47 obras.
Phelipe tem a capacidade de concentrar-se nas coisas importantes para o centro histórico a longo prazo, de ser realista e paciente ao enfrentar as dificuldade do dia-a-dia, de fazer como o experiente homem do mar que durante a tempestade leva o barco devagar e, sobretudo, de amar a cidade, como o prova ele ter salvo da destruição muitos livros dos séculos XVII a XIX da Câmara de São Luís. Essas qualidades são muito importantes para o sucesso da preservação.
Ao contemplar essa vida de trabalho e dedicação a nossa cidade, pergunto-me por que a Câmara de São Luís ainda não homenageou Phelipe. Ele é o primeiro a merecer tal consideração.

12 de agosto de 2001

Economistas, 50 anos de profissão

Jornal O Estado do Maranhão
Este ano, a semana do economista, a ser comemorada de 13 a 17 deste mês, será marcada, no Maranhão, pelos trinta e cinco anos de implantação do curso de economia na antiga Faculdade de Economia do Maranhão. No resto do Brasil, a comemoração será pela passagem dos cinqüenta anos de regulamentação da profissão. Aqui em São Luís, haverá, organizada pelo Conselho Regional de Economia, uma série de palestras diárias, às 19 horas, no auditório da Uniceuma. Economistas maranhenses e de outros Estados se reunirão para a discussão de temas como ética profissional, situação do setor externo da economia brasileira, conjuntura econômica e social do nosso Estado e origens da crise de energia elétrica no Brasil.
Não se pense, porém, que a profissão tem apenas esse meio século de existência. Ela é antiga de mais de duzentos anos. Firmou-se, com a obra de Adam Smith, no século XVIII, em paralelo à consolidação da moderna ciência econômica, chamada por Carlyle de sombria. Desde então, o estudo de escolhas e suas conseqüências sempre foi o dilema fundamental do economista. Talvez por isso, por mostrarem os resultados inevitáveis da adoção de políticas econômicas alternativas sujeitas sempre à escassez de recursos reais, eles sejam tão rejeitados pelos políticos.
 Estes costumam prometer, em época de eleições, mais saúde, segurança e educação, estradas asfaltadas, menos impostos, salários mais elevados, incentivos fiscais, miraculosos programas sociais, tudo simultaneamente, para implementação imediata, mas sem fonte visível de financiamento para as novas despesas. Dito de outra forma, oferecem o milagre da multiplicação das verbas.
Aí, os economistas aparecem para estragar a festa e advertir a sociedade, como são moralmente obrigados a fazê-lo, acerca das conseqüências desastrosas dessas promessas irresponsáveis, mas – ou por isso mesmo – atraentes. Eles são apenas os mensageiros, mas tornam-se os culpados das más notícias. No entanto, é nos momentos de crise que todos recorrem a eles em busca de orientação, a despeito, algumas vezes, dos insucessos de suas receitas, por conta, principalmente, da dificuldade de se levar em conta adequadamente, na teoria, as mudanças políticas e institucionais que afetam os resultados das políticas econômicas propostas.
No Brasil, a consolidação da economia como disciplina científica merecedora de ser ensinada em cursos universitários estende-se, inicialmente, até a primeira metade dos anos sessenta. Seus praticantes eram, em geral, engenheiros e advogados autodidatas, na maioria das vezes ligados a organismos governamentais, que discutiam sobre o desenvolvimentismo e publicavam ensaios sobre o assunto. Eram pessoas de formação prática que não dependiam do ensino de má qualidade das faculdades da época.
A fase seguinte viu o aparecimento de reformas curriculares e a renovação do quadro de professores com a implantação de programas de pós-graduação e o envio de estudantes para doutorados no exterior. A formação desses profissionais passou, portanto, a ser feita na Universidade e não mais nos órgãos do governo. Isso tudo tornou o ensino de economia mais profissionalizante e ajustou a formação do economista às necessidades do mercado, sem perda, porém, da característica inicial de ligação da ciência econômica com assuntos políticos e ideológicos.
A regulamentação da profissão foi feita em 1951, através da lei 1.411, de 13 de agosto. Mas, independentemente dos aspectos legais do exercício da profissão, os economistas têm dado uma contribuição importante à sociedade, que não se restringe ao campo econômico. Raramente, têm adotado uma atitude de distanciamento do mundo real. Ao contrário, tendo a política como um forte elo com o cotidiano das pessoas, a influência deles tem sido tão profunda na sociedade que até os homens ditos práticos, tão orgulhosos de seu desprezo pelo conhecimento teórico, estão sob o jugo de idéias de economistas mortos, como bem disse Keynes.

Machado de Assis no Amazon