1 de setembro de 2001

Doutrinas em conflito?

Jornal O Estado do Maranhão
Há uma luta na cidade. Não chega a ser uma guerra, daquelas onde vale tudo, com repercussões imensas e imprevisíveis, com ódios irreconciliáveis. Mas não se trata também de um conflito corriqueiro, vulgar. Em verdade vos digo, caríssimos leitores, ser essa luta de outro tipo. Não tem nada em comum com outras, profanas, vistas diariamente nos meios de comunicação. Não provoca dores físicas. Apenas as espirituais, de difícil avaliação pelos padrões banais do cotidiano. Não fere o corpo, mas a alma.
O caso apareceu na imprensa de São Luís há algumas semanas. Da leitura da notícia redigida de forma um tanto obscura, pude entender que uma igreja, ostentando em seu nome a palavra paz, entrou com um pedido de reintegração de posse de um templo no qual funciona uma outra igreja intitulada evangélica. O advogado desta disse que iria apresentar ao juiz, na audiência de justificação, um termo de concessão de direito de posse fornecido pela extinta Cohab-MA em 1994.
Fez, o ilustre causídico, uma revelação interessante e curiosa: o hoje desfeito ajuste entre as igrejas foi de caráter espiritual, por tempo indeterminado. Ele dá a impressão de compreender, com essa afirmativa, a impossibilidade de submeter-se um acordo de natureza tão etérea a cartórios, registros, contratos, tabeliães, traslados e emolumentos, negócios meramente materiais. Deveria o acordo, então, ser levado a julgamento por cortes celestiais as quais devem julgar questões de salvação ou condenação de almas e, pode ser, de pactos es­pi­rituais rompidos? Talvez sim. Além disso, como se poderia marcar um tempo certo para a eternidade do espírito?
Contudo, o jeito foi apelar para a imperfeição humana. Apesar de seu caráter, podemos dizer, imaterial, a aliança terminou num desacordo sobre a materialidade do templo e do direito a sua ocupação. O problema terá de ser resolvido pela justiça dos homens, sempre tão falha, parcial e influenciada pelos freqüentemente irresistíveis vícios mundanos.
Isso tudo me faz lembrar as justamente famosas brigas judiciais por ocasião da maioria dos divórcios vistos por esse mundo todo. O começo da união é de promessas de eterna felicidade, simbolizada pela troca de alianças entre os parceiros em meio a incontáveis e sinceras, naquela hora, juras de amor perene. Todavia, há, no fim, troca de acusações cruéis e uma fria decisão judicial.
Ou, o que era para ter o aval e a direção de forças espirituais, resultou, no nosso caso, em apelo aos pobres pecadores das imperfeitas cortes da Terra. O advogado da igreja, por sinal, talvez pensando exclusivamente nas recompensas extraterrestres, em um futuro que todos nós, mortais, esperamos estar distante pela medida do tempo feita pelos homens, afirma trabalhar vo­lun­ta­riamente, sem cobrar um tostão de seus irmãos. Não se pode duvidar.
Ele admitiu, no entanto, a ocorrência de divergência doutrinária como causa do lamentável des­entendimento. Ora, nisso não há surpresa. A história da humanidade está repleta de disputas religiosas, muitas vezes transformadas em desapiedadas guerras. Não chego, porém, ao absurdo de considerar a possibilidade de acontecer o mesmo aqui.
Vejo, apenas, uma aversão perigosa àquilo que diverge de nossas próprias crenças. Em ambientes de ódio e exacerbação do espírito de seita, como atualmente na Irlanda do Norte e no Oriente Médio, isso conduz a mortes e destruição. Contra tal sentimento, não sei se inato no ser humano, devemos estar sempre alertas. Algo semelhante ocorre com o nacionalismo xenófobo, tribalismo disfarçado, que tem, até em regiões supostamente civilizadas, como a Europa, conduzido a tragédias como as dos Bálcãs.
Torço pela breve resolução do problema, na hipótese de ele não estar, ainda, resolvido. Se não estiver, e já que as duas igrejas não podem estar com a razão simultaneamente, somente lhes restará esperar que o mesmo deus reverenciado por ambas as cubra com a luz da paz, para revigorar o espírito evangélico delas.

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