2 de abril de 2006

Gato na Caixa

Jornal O Estado do Maranhão

Quando Collor governava o Brasil e acusações de desonestidade contra seu governo cresciam dia a dia, o testemunho de um motorista tornou-se decisivo no processo de impeachment que resultaria no afastamento do presidente. Aquele homem simples foi saudado como a encarnação de todas as virtudes do povo. O PT quase o canonizou, deixando de fazê-lo porque o partido não dispunha ainda de um papa, como hoje, embora já fosse uma igreja de confusos ritos, como o de fazer intermináveis assembléias e reuniões a troco de tudo e de nada.
Tínhamos naquela hora a impressão de estar diante de um daqueles operários-padrão retratados na arte realista do socialismo soviético, com bandeiras trêmulas ao vento, olhar rútilo em direção ao futuro e inimigos da revolução subjugados aos pés do herói proletário. Imagem cultivada ainda hoje pela fantasia de algumas pessoas politicamente corretas, como as que resolveram nos últimos tempos modificar as letras das cantigas de roda ou de ninar, com propostas exóticas. Atirei o Pau no Gato seria assim: “Não atire o pau no gato / Porque isso / Não se faz / O gatinho é nosso amigo /Não devemos maltratar /os animais”, palavras que, como perceberá logo o perspicaz leitor, soam muito edificantes.
Apareceu há pouco outro do povo, homem também simples, caseiro de profissão. Ele desconhece como se armam grandes esquemas para afanar o dinheiro público – algum cético dirá que por falta de oportunidade e bons professores –, porém tem olhos de ver, e, de fato, viu o ex-ministro da Fazenda, Antonio Palocci, diversas vezes na “casa do lobby”, local em Brasília onde seus auxiliares planejavam atividades heterodoxas, incluídas aí festas com a presença de jovens mulheres da multimilenar profissão, contratadas por empresária do ramo, Jane Mary Corner. Palocci, em depoimento a uma CPI, havia dito nunca ter ido lá. Quem dizia a verdade?
Se estivéssemos no ocaso da era Collor, a resposta seria simples como velhas canções de ninar: o homem virtuoso do povo contava a verdade e o ex-ministro mentia. Pau no gato! No entanto, os tempos são outros. O PT deixou de descobrir virtudes em humildes trabalhadores. Pensa, ao contrário, que o caseiro fora corrompido pela oposição. Com base nessa hipótese, divulgou um extrato bancário dele, com valores incompatíveis com sua renda e obtido de maneira ilegal na Caixa Econômica Federal. O dinheiro veio de seu pai biológico, que confirmou os depósitos. Mas, afinal, que diferença faria a origem dos recursos, se Palocci era de fato freqüentador da casa? O PT tinha a esperança de desqualificá-lo, um homem do povo, quem diria, como testemunha. Arrumou mais um escândalo para o governo Lula.
O presidente da Caixa, hoje exonerado, prometeu apurar a ilegalidade com rigor, por certo semelhante ao da apuração de outras acusações recentes. Em seguida, após depor na Polícia Federal, afirmou que ele mesmo dera a Palocci o extrato. Sua promessa fora, assim, de investigar o próprio crime. Não revelou até agora o mandante, embora tenha insinuado haver um. Apesar disso, é fácil saber a verdade.
Não dizem ser a ficção mais real do que a própria realidade e esta a mais delirante ficção? Nos romances policiais, o culpado não é sempre o mordomo? Pois foi ele. Pura realidade. A Caixa ainda não tem mordomos, grita ali um leitor que detesta ficção e, por isso, confunde o real com o irreal. Então, respondo, foi o porteiro. Quem mais poderia ser? E não me venham com a ficção de ter sido algum alto funcionário governamental. Quem não concordar comigo, atire o primeiro pau no gato da Caixa.
Como diz Luiz Alfredo Raposo, excelente poeta piauiense-pernambucano: “Nisso tudo, quem se sai airosamente são as meninas da Dona Jane Mary Corner. Até aqui delas não se ouviu um pio”.

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