18 de junho de 2012

A paranoia bullying


Folha de São Paulo, Caderno Ilustrada - 18/6/2012
Por Luiz Felipe Pondé


           O Estado invade o espaço institucional do cotidiano escolar com sua vocação de controle absoluto da vida

           Entro em sala de aula várias vezes na semana. Daí vem muito do que penso acerca dos modismos perniciosos que assolam o mundo da educação. 

          E daí também vem o fato de que, apesar de ser pessimista (nada tem de chique no pessimismo, apenas para quem não o conhece por dentro e o confunde com um estilo melancólico de se vestir), não desisto da vida e vou morar no bosque de "Walden" (ou algo semelhante), como fez o filósofo americano Thoreau no século 19. 
           Hoje vou comentar um caso específico de moda que em breve provavelmente vai destruir qualquer liberdade e espontaneidade na sala de aula: a "paranoia bullying".
          Se atentarmos para o que o Ministério Público prepara como controle da vida escolar "interna", veremos, mais uma vez, a face do totalitarismo via hiperatividade do poder jurídico.
          Ao invés de atacar o que deve ser atacado (o lixo que é a escola no Brasil, porque o Estado arrecada impostos como um dragão faminto, mas não dá nada em troca), o Estado e seu braço armado, o governo socialista que temos há décadas, que adora papos-furados como cotas raciais e bijuterias semelhantes, invade o espaço institucional do cotidiano escolar com sua vocação maior e eterna: o controle absoluto da vida nos seus detalhes mais íntimos.
          E ninguém parece enxergar isso, muito menos a pedagogia e sua vocação, nos últimos anos, para livros bobos da moda e palestrantes de autoajuda.
          Quando ouço alguma "autoridade pública em bullying", sinto que estou diante de um inquisidor, que, como todos, sempre se acha representantes do "bem".
          Seria de bom uso dar aulas de história dos perfis psicológicos dos grandes inquisidores, como Torquemada e Bernard de Gui, para essas "autoridades públicas" em invasão da vida íntima das pessoas e das instituições. Eles descobririam sua ascendência direta do grande inquisidor de Dostoiévski ("Irmãos Karamazov").
         Em breve, a melhor solução para o professor será a indiferença preventiva para com os alunos. Melhor uma aula burocrática e avaliações burocráticas do tipo "múltipla escolha" ou "diga se é falso ou verdadeiro", mesmo nas universidades, porque assim o aluno não poderá acusar o professor de "desumanidade" ao reprová-lo, ou pior, acusá-lo de bullying porque desconsiderou sua "cultura de ignorante", mas que "merece respeito assim como Shakespeare".
          Os "recursos" contra reprovação logo se transformarão em processos contra "bullying intelectual". E os fascistas do controle jurídico da vida terão orgasmos.
          Atitudes como estas destroem a autoridade da instituição, dos profissionais que nela trabalham e transformam todos em reféns da "máquina jurídica". O resultado é que família e escola perdem autonomia. O que este novo coronelismo não entende é que existe um risco inerente ao convívio escolar e que as autoridades imediatas, professores e coordenadores é que devem agir, e não polícia ou juízes.
         Na minha vida como aluno em universidade tive duas experiências com dois professores que hoje poderiam ser enquadradas facilmente neste papinho de "tratamento desumano", mas que foram essenciais na minha vida profissional e pessoal.
          A primeira, quando era um aluno da medicina na Universidade Federal da Bahia, ocorreu no dia em que perguntei a um professor como um paciente terminal via o fato de que ele ia em direção ao nada. Ele disse: "O senhor está na aula errada, deveria estar na aula de filosofia".
          Isso, numa faculdade de medicina, significa mais ou menos que você não tem a natureza forte o bastante para encarar a vida como ela é.
          A segunda, já na faculdade de filosofia da USP, aconteceu quando um professor me deu zero e disse para procurá-lo. Ao me ver, no meio da secretaria e na frente de vários funcionários e alunos, ele disparou: "Suas ideias são ótimas, seu português é um lixo".
          Em vez de preparar a polícia para prender bandidos que assaltam casas e restaurantes aos montes, o governo prefere brincar com essas bijuterias, fingindo que cumpre sua função de garantir a segurança pública. Será que isso é medo de enfrentar os criminosos de verdade?

17 de junho de 2012

Economia e natureza

                                                                                 Jornal O Estado do Maranhão

          Começou a Rio + 20, ou Conferência das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sus-tentável. A primeira foi em Estocolmo em 1972 e a segunda no Rio de Janeiro em 1992. A terceira, agora, começou sob divergências acerca de vinte grandes temas, entre eles a criação de um fundo de U$ 30 bilhões destinados ao financiamento de ações de sustentabilidade em países em desenvolvimento.
          Muita tinta e saliva já foram gastas e ainda o são em discussões sobre o tema do encontro. São diárias as exortações de militantes profissionais bem pagos de ONGs em favor de educação ambiental nas escolas, combate ao desmatamento, restrição ao consumo de produtos danosos, como sacos plásticos, controle da poluição do ar, todas essas medidas idealmente capazes de levar as pessoas a evitarem um comportamento ofensivo ao planeta Terra. Quase sempre, contudo, os aspectos econômicos subjacentes são deixados de lado, como se não tivessem muita importância ou a resolução dos problemas dependesse apenas de certo idealismo ingênuo.
          Tomemos o exemplo de um pequeno agricultor sem possibilidade ou capacidade de produzir seu próprio sustento, a não ser pela queima da floresta, que recebesse um apelo para não agir assim. Na ausência de alternativa econômica adequada, ele diria, como um me disse uma vez: “Está bem. Eu não queimo mais. Mas quem vai alimentar minha família?”
          Consideremos agora a sustentabilidade de uma perspectiva mais ampla, como um problema econômico a ser analisado com as ferramentas de análise da Ciência da Escassez. Em pequeno livro publicado há alguns anos, Dois estudos econômicos, fiz uma análise do assunto, resumida a seguir.
           A teoria econômica nos diz que o produto é o resultado da aplicação combinada de capital, trabalho e tecnologia – os fatores de produção –, segundo uma determinada função de produção, e que os fatores são remunerados na medida de sua contribuição ao produto.
           Ora, os recursos naturais – chamados de capital natural –, não são considerados como fator naquela função. A razão é que a teoria considera os serviços da natureza como se grátis fossem ou, dito de outra forma, a natureza não cobra por seus serviços e não reclama uma participação no produto, colocando-se, deste modo, fora do domínio da economia.
           Mas, claro, na economia moderna, vem ocorrendo um processo intenso de consumo do capital natural que chama nossa atenção para a perda dos mais variados serviços prestados pela natureza hoje e para a oportunidade perdida pelas gerações futuras de contar com esse capital. Isso significa dizer: um preço pode ou deve ser atribuído aos serviços ambientais, embora nem sempre seja possível obtê-lo no mercado e, nos casos de ser possível, imperfeições o impedem de refletir corretamente a valor dos serviços perdidos.
           A teoria prevê, ainda, que a escassez gerada pela taxa de exploração dos recursos naturais, acima de sua taxa natural de regeneração, fará com que o preço aumente até um nível em que a taxa de exploração voltará a um valor compatível com a de regeneração. No entanto, não se observa esse mecanismo equilibrador nas economias de mercado tal como as conhecemos atualmente, de tal modo que a escassez do capital natural não é refletida em preços crescentes.
            A explicação desse desequilíbrio está no fato de os mercados, geralmente, serem fortemente influenciados pelos arranjos institucionais da economia e terem um viés hostil ao meio ambiente, como a evidência empírica mostra.
           Trata-se, portanto, na perspectiva do desenvolvimento sustentável, de um lado, de incorporar adequadamente à teoria a natureza como um fator de produção que terá de receber a compensação ou remuneração correspondente a sua contribuição à produção e por outro, de criar mecanismos institucionais de mercado que reflitam com a máxima fidelidade possível a escassez relativa dos recursos ambientais. Não há, portanto, incompatibilidade entre o crescimento econômico e a preservação ambiental, se a natureza for levada em conta de maneira correta.
           O x da questão, difícil x, é passar desse entendimento teórico à prática.

3 de junho de 2012

Por fora da lei

Jornal O Estado do Maranhão     

    A imprensa local noticiou com destaque que a partir do dia 16 de abril passado o trânsito de veículos automotores estaria proibido, em caráter definitivo, nas praias de São Luís em cumprimento a decisão da Justiça Federal em ação interposta pelo Ministério Público Federal – MPF.
          A proibição já tinha vigência legal desde 2008, pela portaria de número 03/08 da Secretaria Municipal de Trânsito e Transportes – SMTT. Excetuavam-se da proibição veículos dos órgãos prestadores de serviços públicos de limpeza, policiamento e salva-vidas. Mas, a própria Secretaria jamais fez cumprir a norma por ela mesma estabelecida. Durante quatro anos, de 2008 até pouco mais de um mês atrás, era como se tudo fosse permitido. Foi necessária a intervenção do Ministério Público Federal e da Justiça para a portaria viger de verdade.
          Foram anunciadas então medidas destinadas ao cumprimento da decisão. Quem insistisse em trafegar ali seria multado e teria seu carro apreendido e guinchado até o pátio da SMTT, localizado no Ipase. Foram colocadas placas de sinalização horizontal em algumas ruas perto da praia do Olho d’Água (não sei se nas outras) e, segundo a imprensa, estaria em desenvolvimento um plano de fiscalização intensiva que iria funcionar 24 horas por dia. Os agentes de trânsito trabalhariam em viaturas e motos em pontos móveis e fixos. Tudo perfeito, exceto pelo fato de que, se as medidas foram adotadas, foi apenas por algum tempo, pois li também há poucos dias notícias sobre automóveis, caminhonetes e até caminhões passando pela areia como se a norma não valesse, como é comum acontecer.
          Contudo, a repressão não deixou de funcionar, pois os agentes resolveram encher o saco justamente de quem não deveriam: os moradores de áreas junto ao mar. Uma comerciante do Olho d’Água– vejam só o absurdo – foi impedida de levar os filhos à escola, sob a ameaça de ter o automóvel guinchado. Por uma interpretação rombuda da portaria, eles queriam confinar a moradora em sua moradia ou então obrigá-la a comprar um helicóptero, visto não haver à disposição dela via alternativa nenhuma para sair de sua residência.
          O MPF, vendo a inação das autoridades, requereu então à Justiça Federal a imposição de multa pessoal ao secretário da SMTT, caso a situação não mudasse, e determinou que o município voltasse a fazer a fiscalização. Se este trabalho foi retomado, sua duração, é quase certo, será curta. Se depender apenas do órgão municipal, creio eu, tudo voltará à desordem. Felizmente o MPF está atento.
          Mas, afinal, por que estou falando sobre esses fatos? Porque os vejo como simbólicos de uma atitude generalizada em nossa cidade, parte da cultura do desrespeito à legalidade, tanto, paradoxalmente, de parte dos órgãos encarregados de tornar efetivos os diplomas legais (neste caso a SMTT) quanto dos habitantes da cidade que, assim, perdem, de fato, a condição de verdadeiros cidadãos.
          Outro exemplo de desrespeito. O dono de um bar chamado Los Periquitos, originalmente instalado no Cohatrac, violava sistematicamente a Lei do Silêncio. A reação dos moradores obrigou-o a procurar outro local para suas atividades. Instalou-se com outro nome, Bar Novo Trapiche, numa área residencial na Ponta da Areia, onde continuou a antiga prática. O órgão estadual encarregado de fazer cumprir a Lei do Silêncio, a Delegacia de Costumes, nunca fez uma medição do nível de ruído do bar nos momentos apropriados nem recentemente nem no Carnaval, quando a situação se deteriorou, apesar da solicitação de dezenas de moradores da área. O que fazer, perguntaria o bolchevique Lenine e depois liquidaria os importunos, algo longe da cabeça dos moradores.
          É assim, as leis não são cumpridas, as autoridades se esquivam de suas obrigações, os infratores sentem-se fortalecidos, persistem em seu comportamento danoso e seguem impunes a correrem por fora da lei. Essa cultura terá de mudar se desejarmos viver numa cidade e numa sociedade em que, na convivência entre os cidadãos, a civilidade é a regra e a falta de educação cívica a exceção.

Machado de Assis no Amazon