14 de outubro de 2007

Vou estar...

Jornal O Estado do Maranhão

Andou bem o governador do Distrito Federal ao decretar a demissão do gerundismo. Aliás, ele deveria estar fazendo isso, ou melhor, ele deveria estar tentando adotar a medida há muito tempo para evitar estarem falando mal do governo, os críticos de sempre.
Se pareço estar usando o gerundismo, é porque de fato estou. A doença é altamente contagiosa e verbalmente transmissível. Por isso, precisamos estar sempre de olho na sua insidiosa mania de se infiltrar no discurso alheio. Daqui até o fim prometo me policiar, com o fim de evitar o contágio.
O decreto se refere, em verdade, não ao gerundismo, mas ao gerúndio. Levado ao pé da letra, estaria demitida com a canetada uma das formas nominais do verbo na língua portuguesa, tarefa impossível. A intenção do ato foi banir o uso abusivo e errado do gerúndio e evitar que o gerundismo em suas formas mais abusivas sirva como desculpa para a incompetência e burocratismo. Mas, não pretendia apenas isso, pois não se pode supor que o governador ignorasse ser impossível legislar sobre gramática, embora, na prática, muitos militantes do PT tenham demitido há séculos o plural, que eles parecem odiar. Tenho comigo ser evidente a ironia do governador. Ele quis colocar em evidência, penso eu, o fato de o uso, aparentemente inocente, de modismos lingüísticos, servir ao fim de encobrir o descaso com a coisa pública e a inépcia estatal.
Assim como há leituras literais da Bíblia, há leituras literais de decretos, como a daquele professor de português que disse que o assunto deveria ser deixado por conta da Academia Brasileira de Letras. Por sinal, em momentos polêmicos surgem na televisão, não se sabe vindos de onde, especialistas em qualquer coisa, peritos em obviedades, se atentarmos bem.
“Fica proibido o uso do gerúndio para desculpa de ineficiência”, diz um artigo do decreto. Isso evitaria diálogos deste tipo: “Como estão as obras em Taguatinga?”, poderia perguntar o chefe do governo do Distrito Federal a um de seus secretários de Estado. Poderia ouvir como resposta isto: “Vou estar providenciando um relatório imediatamente. Os técnicos vão estar produzindo um paper (esta palavra deveria ser demitida também), em menos de uma semana, governador”.
Vou estar traduzindo... Peço desculpas pelo escorregão, eu quis dizer, tão-só, dou a tradução: “Não providenciei a tempo a droga do relatório e agora vou ter de botar aqueles incompetentes pra inventar qualquer coisa, depois a gente faz um ajuste no fim da obra. O diabo é que justamente pela incompetência deles não sei quando isso vai estar ficando pronto. Governadores não deveriam sair de seus gabinetes e estar metendo o bedelho em obras públicas”.
Parece que os portugueses tiveram percepção mais aprofundada da equivocada polêmica com respeito à intenção do governador. Vejamos, na grafia portuguesa: “O decreto em que um governador brasileiro ‘demite’ o gerúndio é ‘irónico’, para além de não se poderem ‘demitir ideias, objectos ou conceitos’, salientam duas investigadoras do Departamento de Linguística da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa”, segundo resumo do jornal Expresso, de Lisboa.
Proponho um remédio contra a renitente praga do gerundismo. Em vez de se usar o gerúndio como no Brasil, verbo auxiliar+gerúndio, de uso bastante antigo na língua, por que não se adota a forma de Portugal, verbo auxiliar+preposição ‘a’+infinitivo, de uso muito mais moderno? Diríamos, então, estou a fazer, em lugar de estou fazendo. O diabo é que, como o vírus da doença é resistente e refratário a vacinas, alguém poderia estar querendo inovar (olha aí outro escorregão): Vou estar a estar fazendo... Sei lá, algo assim, bastante inovador, original.
É, vou ter de estar pensando numa solução melhor.

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