27 de julho de 2003

Perdas

Jornal O Estado do Maranhão
O inexorável destino comum a todos nós, indiferente às virtudes e defeitos, méritos e deméritos dos que vão sucumbindo mais dia menos dias a suas exigências sem sentido, tem dado ultimamente de arrancar de nosso convívio pessoas que, pela imensa contribuição dada ao patrimônio comum de nossa cultura, tão laboriosamente construída por gerações e gerações de maranhenses, multiplicaram esse estoque de riqueza impossível de ser medida em toneladas ou em dinheiros, mas que, mesmo sendo intangível, é, no entanto, ou por isso mesmo, indispensável à vida de qualquer povo.
As mortes nos últimos meses, no curto período de um ano, aproximadamente, de Eloy Coelho Neto, Amaral de Mattos, Mário Meireles, Antônio de Oliveira, estes todos da Academia Maranhense de Letras – AML, e mais de Ambrósio Amorim, já seria golpe bastante cruel para a alta cultura do Estado e a família dos mortos. Como se a imposição de semelhantes golpes, porém, não pudesse diminuir essa ânsia destruidora – que no fim, estejam certos, será vencida pela permanência das obras desses homens – eis que um novo e inesperado golpe atinge José de Ribamar Caldeira, também da AML, onde ocupava a cadeira 36, cujo patrono é Gomes de Sousa, fundada por Armando Vieira da Silva. Seria uma manifestação de despeito do destino por tudo feito por ele, pela contribuição dada à nossa vida cultural? Não duvido.
 Caldeira tinha todas as qualificações que se poderia imaginar em um homem voltado para o saber. Era Bacharel em Sociologia e Política pela Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, a ELSP; Mestre em Ciências Sociais, na área de Ciência Política, pela Unicamp, em Campinas, São Paulo; e Doutor em Ciências Sociais, na área de Sociologia, pela USP, em São Paulo. Seus estudos nesta cidade o colocaram em contato com o que de melhor se produzia em Sociologia no país e com o pensamento de renomados sociólogos e antropólogos, como Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro, Radcliffe-Brown e Donald Pierson.
Seu campo de interesses intelectuais era muito vasto, pois não se limitava tão-somente à Ciência Política e à Sociologia. Basta ver sua tese doutoral: Origens da indústria no sistema agroexportador maranhense – 1875/1895, na qual teve, necessariamente de fazer uma análise da economia do Estado no período analisado por ele. De grande interesse, também, pela qualidade e por mostrar essa versatilidade intelectual de Caldeira, é um dos seus últimos livros, publicado em 2000, com o título A criança e a mulher Tupinambá, um trabalho de cunho etnológico.
A vida de Caldeira foi em grande parte dedicada aos estudos e ao ensino. Em verdade, era tão intenso seu amor ao conhecimento, dedicava-se com tanto empenho à ciência, que dele se pode dizer que se tornou um asceta. Era como se ele não quisesse desperdiçar tempo em atividades sociais que lhe roubariam um tempo precioso, a ser mais bem aproveitado em seus trabalhos.
Dos mortos, se costuma dizer terem sido pais e maridos exemplares, nem sempre com inteira justiça. Neste caso, esse elogio não poderá ser nunca chamado de lugar-comum, pois, dizer essa verdade é lhe fazer inteira justiça. Ao lado de Marlene, sua querida esposa, e de seus filhos, formou uma família feliz. Eu o via e vejo como um intelectual brilhante sempre entusiasmado pelos seus estudos.
Sua atividade como professor e pesquisador na Universidade Federal do Maranhão, como professor adjunto durante muitos anos, permitiu-lhe estabelecer um diálogo permanente com a juventude maranhense e debruçar-se sobre a realidade do Maranhão, ao desenvolver inúmeras pesquisas, tão necessárias à correta compreensão da nossa realidade social e proposição de caminhos para sua modificação.
Ao morrer, Caldeira deixa uma herança de amor pela ciência, pelos livros, por sua família, por seus amigos, por sua terra. Mais não se poderia pedir como exemplo aos nossos jovens. Estes poderão ter, no trabalho dele, um guia seguro para seus primeiros passos na conquista do mundo pelo conhecimento.

20 de julho de 2003

Estrada real

Jornal O Estado do Maranhão
Proclos de Bizâncio foi o último grande expoente da Escola Neoplatônica, instalada em Alexandria no século III d. C. Ele escreveu os Comentários a Euclides, famoso matemático grego, que viveu na mesma Alexandria por volta de 300 a. C., quase seiscentos anos antes, portanto. Segundo ele, certa vez Ptolomeu I, primeiro governante da dinastia que, desde a morte de Alexandre, o Grande, em 323 a. C., reinou no Egito, anteriormente parte do Império Macedônico, perguntou a Euclides se não haveria um caminho rápido no aprendizado da geometria. O matemático teria respondido: “Não há estrada real para a geometria.”
Algo semelhante me disse o Euclides maranhense, em verdade Euclides Barbosa Moreira Neto, quando eu lhe perguntei se existia um caminho fácil ou se existia um segredo na feitura de tantas coisas no campo cultural, como as que ele realiza em todo o Estado. O segredo, diz ele, é o amor pela cultura em todas as suas formas e a determinação de realizar.
Se olharmos a lista de eventos já realizados ou programados para este ano pelo DAC –Departamento de Assuntos Culturais, da Universidade Federal do Maranhão – Ufma, dirigido por ele, descobriremos a variedade e importância de suas realizações: o 26º Guarnicê de Cinema, a 7ª Mostra Maranhense de Canto Lírico, o 6º Festival Universitário de Reggae – Unireggae, o 27º Festival Maranhense de Coros – Femaco, o 17º Festival Maranhense de Poesia, a 6a Mostra Maranhense de Arte Efêmera, a 6ª Mostra Maranhense de Humor, a 5a Tocata de Bandas e Fanfarras do Maranhão, a 5ª Cantata Natalina, o Projeto Carcará, o Projeto Quarta Cultural, o Projeto Sexta Poética, o Programa de Artes Plásticas, o Projeto Cineclube no Campus. Está tudo aí: cinema, literatura, artes plásticas e música. O popular e o erudito juntos.
Não se engane, porém, o leitor. Vistas assim, na forma de uma simples enumeração, as realizações de Euclides podem enganar. Primeiro, porque se pode pensar que o DAC nada em dinheiro. Que nada! Como quase todas as universidades públicas brasileiras, a Ufma pena com a falta de recursos. Ela fornece o possível: as instalações do Departamento e alguma verba de custeio. Todo o restante, que não é pouco, vem de outras fontes, como o governo do Estado, prefeituras e iniciativa privada. Esses apoios nascem, em grande parte, da credibilidade, estabelecida ao longo de anos de trabalho, de Euclides. Enquanto muitos lamentam a falta de recursos e cruzam os braços, ele põe as mãos à obra e obtém excelente resultados.
O segundo engano seria pensar em suas iniciativas como de repercussão somente no âmbito da Universidade. O melhor e mais conhecido exemplo de que não é assim, é o Festival Guarnicê de Cinema, origem de grande agitação da nossa vida cultural, dentro e fora da Ufma, trazendo até aqui grandes nomes dessa arte do Brasil e do exterior.
Esse evento, já em sua 26ª edição, segue a linha nobre da atuação de Euclides: a ênfase na criação de oportunidades aos jovens talentos locais. A própria organização do Festival, voltada para as curtas e médias-metragens, espécie de escola para os de longa, mostra essa preocupação. Seu impacto em nosso meio tem sido muito grande.
Aliás, somos privilegiados com respeito ao cinema, pois um outro festival, com ênfase nas longas-metragens, realizado com muito sucesso em março em São Luís, por Frederico Machado, complementa o Guarnicê. Ou melhor, os dois formam um conjunto dedicado a criar as condições, com essas iniciativas, para a produção de bons filmes aqui.
Como se isso tudo fosse pouco, Euclides ainda se envolve de corpo e alma com a Favela do Samba. Fico a imaginar sua presença na Escola, com seu eterno boné, que poderia lhe dar um ar de parisiense perdido na quadra de ensaios, caso ele não tivesse intimidade com o samba.
Penso que a estrada para chegar aonde ele chegou não é de fato real, isto é, da realeza, para quem o trânsito é sempre fácil. Mas é real da realidade e está em permanente construção com o cimento e o concreto dos sonhos.

13 de julho de 2003

Vida de cachorro

Jornal O Estado do Maranhão
Recebo um telefonema de um velho amigo, de quem não tinha notícias havia meses, morador de Foz do Iguaçu, falando da vida que, segundo ele, anda pela hora da morte. Nada caminha certo neste país e no mundo. Nada muda, ou melhor, tudo muda para ficar no mesmo. Caras novas, barbudas, há. O que não há são idéias novas. Ele termina seus comentários dizendo que está levando uma vida de cachorro, como resultado da política econômica do governo, classificada por ele de neoliberal e imposta pelo FMI.
Aí, ele se espantou com meu protesto veemente. Não contra o palavrão “neoliberal”, atirado assim, sem mais nem menos, contra o governo do PT. Meu amigo conhece meu pensamento acerca do caminho tomado por Lula com respeito à condução do país: ele está, acertadamente, fazendo o possível e o razoável. Se essa orientação conflita com as velhas idéias petistas sobre a melhor maneira de gerir a economia brasileira, então pior para elas. A mudança do PT é bem-vinda. A responsabilidade de governar e a própria realidade se impõem ante ideologias, voluntarismos e idealismos.
Minha reação foi contra a comparação, inadequada, para dizer pouco, com a vida dos cachorros. Quer dizer então que a vida do melhor amigo do homem é pior do que a do próprio homem? Diz isso quem não leu a história daquele cãozinho (ou foi uma cadelinha?) de Nova York. Levado por sua dona a um passeio no Central Park, ele começou a dar sinais de alheamento de tudo, de desconcentração. O quadro era de estresse e depressão. Se, de repente, aparecesse um bandido com a intenção de assaltar sua dona ele não levantaria sequer as orelhas. Problemas existenciais? Quem poderá dizer? Nem latir o pobre coitado latia, a fim de comunicar sua angústia. O certo é que sua dona decidiu levá-lo a um psicólogo, obtendo bons resultados, não se descuidando, está claro, dos costumeiros mimos e das idas ao cabeleireiro, ao dentista e ao salão de beleza.
Para que não se diga, contudo, serem essas mordomias caninas exclusivas de países do primeiro mundo, vejam agora isto. No Brasil, vem aumentando a quantidade de hotéis dispostos a aceitar hóspedes acompanhados de cães. Dessa forma, os bichinhos escapam do trauma da separação, quando os proprietários da casa – talvez fosse melhor dizer os co-proprietários, porque os animais também agem como tal ­­–, saem de férias. Nessas ocasiões, a despesa com vigilância aumenta, pois alguém tem de tomar conta da residência, enquanto seus ocupantes estão fora, porque, como se sabe, os tempos estão difíceis quanto à segurança pública. Assaltos acontecem a toda hora. Ou se fica de olho na casa, ou se deixa alguém olhando quando se sai.
Mas, quem garante que, ficando na residência, em estado depressivo por causa do afastamento, alheios a tudo, esses cachorros iriam vigiar alguma coisa? Poderia ser até o contrário. Num acesso de raiva, pelo desprezo de que se julgariam vítimas, eles poderiam facilitar a entrada de estranhos, numa torpe vingança contra a suposta indiferença de quem devia cuidar deles. Mais seguro é levá-los mesmo.
Os proprietários dos hotéis dizem gostar dos animais. Eles não causam nem uma pequena fração dos problemas criados pelos seus donos. Estes, sim, desrespeitam as regras e levam seus filhos-animais ou animais-filhos a passear, por exemplo, pelos restaurantes e bares. Pensam dar, assim, uma prova de amor aos queridos bichos. Porém, como mães superprotetoras de seres humanos, estão em verdade, tolhendo o espírito de iniciativa dos filhos, que se tornarão cachorros inseguros e despreparados para enfrentar o mundo-cão, ou mesmo o mundo-homem, lá fora.
Mas, nenhum casal foi tão longe quanto aquele no Hotel Villa de Capri, em Ubatuba, São Paulo. Acompanhado de um lindo cachorrinho, o mais mimoso de quantos já passaram por lá, o casal pediu uma cama extra, pequena. Foi atendido. A cama pequena era para o marido. A mulher dormiria na grande com o cachorro. Meu amigo disse:
– Dormir com a madame! Essa vida de cachorro é que eu queria.

6 de julho de 2003

Coisa de mulher

Jornal O Estado do Maranhão  
Futebol é coisa pra homem. Ou assim dizem os homens. De fato, se olharmos unicamente para o aspecto físico do esporte, pode ser que possamos descobrir uma pitada de verdade nessa afirmação. Esse é um jogo de muito contato físico entre seus praticantes. Cada vez mais, o vigor desempenha nele um papel decisivo, podendo fazer a diferença entre vitória e derrota, glória e crucificação.
Entendam-me, porém. Não quero dizer que a habilidade dos jogadores não conta. Não é isso. Para poder mostrar seu talento, no entanto, o jogador hoje em dia tem de ter, como primeiro e mais importante pré-requisito a um bom desempenho, um excelente condicionamento físico.
Uma olhada nas velhas fitas de vídeo da Copa do Mundo de 1970, para ficar num exemplo caro ao torcedor brasileiro, irá nos mostrar a diferença entre a velocidade e força utilizadas nos jogos daquela época e nos de hoje. Lembro de Gérson pegar uma bola no meio de campo, com todo o tempo do mundo para olhar a quem lançá-la com perfeição e graça. Atualmente, ele não teria tempo nem de levantar a cabeça e provavelmente estaria no chão em poucos segundos, pensando ter sido atropelado por um trem carregado de minério de ferro. Para o jogo chegar a ser tão rápido e vigoroso como no presente, o preparo físico teve de ser aperfeiçoado, permitindo a elevação constante da competitividade das competições.
Mas, isso tudo não faz do futebol um esporte proibido às mulheres. Evidência disso é a sua popularidade nos Estados Unidos, o Brasil do futebol feminino em competições internacionais. Aliás, ele é chamado de “soccer” pelos americanos e não de “football”, nome usado pelos ingleses e pelo resto do mundo. Ademais, esse argumento acerca da suposta limitação física das mulheres poderia ser usado em relação a qualquer outro esporte. A conclusão lógica seria, então, de as mulheres não poderem participar de nenhuma competição de contato, porque todas exigem grande esforço físico e músculos sólidos!
Admitamos, por um raciocínio manco, que as mulheres não tenham mesmo a capacidade de praticar o futebol. Em um caso, porém, exigente também em termos de condicionamento físico, elas são extremamente capazes. É na direção dos jogos. Foi o que se viu no domingo passado na disputa entre o São Paulo e o Guarani, pelo campeonato brasileiro. O trio de arbitragem não era formado de juiz e bandeirinhas, mas de juíza e bandeirinhas femininas. Não vou fazer comentários sobre o agradável aspecto estético da novidade, a fim de não ser acusado de machista. Melhor é falar delas e de seu desempenho em meio àquele bando de marmanjos.
Sílvia Regina Carvalho era a juíza e Aline Lambert e Ana Paula Oliveira as bandeirinhas. Esta última, por sinal, recusou uma generosa oferta de suas revistas masculina para pousar nua. Diz que prefere aparecer com a bandeirinha na mão. Mas, não seria possível ela matar dois coelhos de uma só cajadada, posando nua com uma bandeirinha na mão? Ela poderia faturar uns trocados extras e, ao mesmo tempo, manter-se fiel à profissão.
Eu atribuo a excelente atuação desse trio na partida de domingo à admirável capacidade de atenção a detalhes das mulheres. Na marcação de impedimentos, por exemplo, essa aptidão é de extraordinária valia. Acho também que, por serem muito mais realistas do que os homens, o que não equivale a falta de romantismo da parte delas, não se iludindo facilmente, as mulheres não se deixam enganar pelas encenações, velho hábito dos jogadores brasileiros. Outra qualidade feminina, a de saber comandar sem dar a impressão de fazê-lo, ajudou a levar a partida sem problemas até o seu final.
Mas, como nem tudo são as flores recebidas no início do jogo, elas saíram de campo vaiadas pela torcida do Guarani, por causa de dois gols corretamente anulados, e protegidas pela polícia à saída do estádio.
Seja como for, é possível que alguns teimosos continuem a falar de futebol como coisa de homem exclusivamente. Mas terão de dizer também que seu comando é coisa de mulher.

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