26 de janeiro de 2003

O cara-chata

Jornal O Estado do Maranhão 
Mesmo muito tênues, algumas lembranças tenho do Cara-chata. Mas, há um episódio relacionado a ele, solto do resto, isolado de tudo, nítido ainda na minha memória, depois desses anos todos. Vejo um tio meu, Saul Raposo, na época com menos de trinta anos de idade, tentando recolocar no lugar certo, com as mãos sujas da graxa com seu cheiro característico espalhado pelo terraço da nossa casa do Monte Castelo, a parte de cima de um motor ou de um conjunto mecânico desconhecido para mim.
Repentinamente, o objeto escorrega na graxa dos dedos dele e os imprensa contra a borda inferior do conjunto de aço. A exclamação raivosa ante a dor inesperada me faz adivinhar.  Aquela não era uma palavra para ser dita em frente dos mais velhos. Se não era a primeira desse tipo ouvida por mim, era a primeira a entrar na minha consciência. Os trapos de algodão grosseiro, usados com gasolina na limpeza da sujeira dos óleos, serviram naquele momento para, secos, enxugar o pouco sangue surgido dessa constante batalha entre o homem e a máquina.
A luta do tio Saul naquele momento era a de fazer o ônibus – pois o Cara-chata era um ônibus de propriedade dele, seu motorista eventual, e de meu pai, em sociedade na firma Moreira & Raposo – retomar sua incessante jornada de transporte de passageiros entre o centro da cidade e o Anil.
É difícil dizer o ano. Não tenho dúvida, porém, de ter sido após 1951, porque lembro da menção dos mais velhos ao envolvimento do veículo na Greve de 1951, como ficou conhecido o movimento político com o objetivo de impedir a posse de Eugênio Barros no governo do Estado.
Eugênio chegara a São Luís num ambiente de muita tensão, vindo do Rio de Janeiro, com a revalidação de seu diploma de governador do Estado assegurada pelo Tribunal Superior Eleitoral, após dura luta com a oposição. Foi levado em caravana pelos amigos, do acanhado aeroporto do Tirirical à avenida Pedro II, onde está localizado o Palácio dos Leões, sede do governo.
No centro da cidade, o cortejo seguiu pela rua dos Remédios, tomando em seguida a Jansen Muller, a Egito, a Beiramar, passando sob o viaduto da avenida Pedro II até chegar aos Leões. Outros veículos da comitiva, atrasados, entre eles o Cara-chata e um ônibus vindo de Rosário, tomaram caminho diferente. Desceram pela rua do Sol, largo do Carmo e rua do Egito, passaram ao lado do cinema Roxy, para alcançar a praça Benedito Leite, chegando em sentido contrário ao do grupo adiantado da comitiva. De lá teriam acesso à avenida.
Os retardatários cruzaram o paralelo 38, linha de defesa logo depois da praça. Ela fora estabelecida para impedir o acesso à avenida dos adversários do governador, dispostos a invadir o Palácio, segundo anunciavam. Policiais militares pensaram tratar-se de um ataque e iniciaram uma fuzilaria. Várias pessoas foram feridas, um deles o então deputado Ivar Saldanha, e uma morreu, o monsenhor Joaquim Dourado, pároco de Rosário.
O meu pai, cunhado do deputado Newton Bello, partidário de Eugênio, vinha no Cara-chata. Quase foi atingido pelos disparos. Fico a imaginar como teria sido a vida de minha mãe, de seus três filhos pequenos, sendo eu o segundo, e do quarto em dias de nascer, se ele tivesse morrido naquela hora. Qual destino teríamos de cumprir sem sua presença?
O Cara-chata, fabricado pela General Motors, foi adquirido da firma Autoelétrica, localizada na rua de Nazaré. Foi o primeiro ônibus da cidade a ter a aparência dos de hoje, de uma caixa retangular, por causa da colocação do motor dentro da carroceria. Isso tirava-lhe a impressão de ter uma “cara comprida”, como os outros de então, montados sobre chassis de caminhão, com o motor colocado fora da cabine de passageiros. Essa a razão do apelido e de ser bem popular.
Andei no Cara-chata algumas vezes, mas não sei por onde. Hoje, na minha lembrança, ele mistura o cheiro de graxa, um palavrão, a idéia de pioneirismo de meu pai e a clara sensação de uma bala voando, como senhora de nossos destinos.

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