10 de fevereiro de 2002

Carnaval

Jornal O Estado do Maranhão 
No meu tempo de criança, o circuito de carnaval era feito em uma linha reta. Ela começava na praça Gonçalves Dias, quase na margem esquerda do rio Anil, e terminava na praça do Cemitério, perto da margem direita do Bacanga. Incluía, assim, a rua Rio Branco e a do Passeio, bem como o trecho entre as duas, numa das laterais da praça do Panteon.
Íamos de mudança para um segmento dessa reta, a família inteira, meu pais e a penca de crianças, durante a temporada carnavalesca. Ficávamos hospedados na casa de minha avó, Josefina Moreira, na rua do Passeio, em frente de uma construção que nunca acabava. Ou assim parecia a mim. Havia sido projetada para ser o Hospital da Cruz Vermelha. Acabou servindo de sede ao atual Socorrão I.
A cada ano, eu chegava com a esperança de encontrar a obra terminada. Imaginava o prédio pronto e o movimento de pessoas entrando e saindo apressadas. Umas procurando lenitivo para os males do corpo, outras o dando. O pronto-socorro da cidade ficava na mesma rua, em um pequeno prédio de dois andares situado a dois quarteirões, em frente ao antigo Rialto. Assistíamos, nesse cinema, aos filmes seriados nos domingos. Vibrávamos com Tarzan, Fantasma, Super-homem, Capitão Márvel e com os caubóis do oeste americano.
Eu imaginava o edifício como algo grandioso, quando terminado. Achava que, em um lugar como aquele, para mim do maior tamanho possível de ser construído, majestoso, imponente e bem iluminado, ninguém iria ter problemas, como os que uma amiga de minha mãe, tão jovem quanto ela, tivera em outro hospital. Nadir – era o nome dela – havia morrido, após um parto, em conseqüência de febre puerperal. Eu ficara inquieto. Minha mãe também não vivia tendo filhos, quase todo ano?
 O movimento começava de tarde, aí pelas três ou quatro horas. Durava até as nove mais ou menos, hora de início da folia atualmente. Ficávamos na janela ou em cadeiras colocadas na calçada a fim de “ver máscara”, como dizia minha avó, mas em verdade para ver tudo o que passava pela rua e mais o que passava pela imaginação. Víamos, então, desfilar, sem jurados, notas, classificações ou disputas, toda a tradição de nosso carnaval.
Havia os blocos, que mais tarde evoluíram para as escolas de samba. Eles desfilavam em uma formação compacta, retangular, quase militar, de linhas e colunas alinhadas, sem distinção de alas, sendo, o grupo todo, a própria bateria. À frente iam um mestre-sala e uma porta-bandeira fazendo evoluções, ao lado de meninos e meninas sambando com um lenço branco, seguro por uma das pontas entre os dedos indicador e polegar.
Chamava-se de corso ao desfile dos grupos de meninas, colocadas lado a lado, no interior do perímetro das carrocerias de caminhões, com a frente das saias das fantasias simples colocadas para fora do madeirame. Reunidas daquela forma, as saias formavam uma faixa colorida cobrindo as faces laterais e a traseira. O veículo subia e descia o circuito, com as moças cantando, balançando a cabeça para um lado e para o outro em direção aos ombros, batendo com graça seus pandeiros, acompanhadas por pequenas bandas.
Essas coisas e muito mais nos encantavam, mas pertencem a outra era. Os novos tempos são de profissionalização do carnaval, como ocorre com todas as manifestações de cultura popular, do reggae ao São João, com todos seus males e benefícios. Não se deve cometer o engano, porém, de achar que não sobrou espaço para as manifestações espontâneas do povo, com sua alegria, irreverência e criatividade. Elas continuam vigorosas, a julgar pelo que se vê agora.
Nosso carnaval de rua passou por um período de decadência, até chegar à infeliz situação de abaianizar-se com a importação da música axé dos trios elétricos. De uns anos para cá, felizmente, recuperou sua força, com o apoio do governo do Estado, e retomou o circuito antigo. Não é mais a mesma festa de antes porque está sempre em transformação, como tudo que tem vida. Contudo, é tão bom e autêntico quanto os antigos carnavais.

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