29 de dezembro de 2002

Qual tempo?

Jornal O Estado do Maranhão
Sempre me ocorre fazer esta pergunta, às vésperas do Ano Novo: Passamos pelo tempo ou o tempo passa por nós? Ao longo do ano, a simples andar dos dias, das semanas e dos meses não nos dá, ou o faz de uma maneira muito atenuada, essa percepção de passagem do tempo ou de nossa passagem por ele. Períodos de vinte e quatro horas, de sete dias e ou de trinta dias são pequenos demais para fazer com que desejemos comemorá-los. As celebrações de períodos tão curtos se tornariam banais, desinteressantes e enfadonhas, pela sua freqüência. Deve ser por isso que não se comemoram aniversários mensalmente nem semanalmente.
O fim de um mês, ou de um dia, e começo de outro, não nos oferece a mesma sensação de conclusão de uma volta completa e começo de outra dada pelo fim do ano. Esta última impressão nos faz sentir essa passagem como um marco temporal natural, adequado. È a intuitiva confirmação do retorno periódico de todas as coisas, até mesmo do próprio universo, no seu eterno processo de expansão, após grandes explosões, como no Big Bang da teoria dos astrofísicos e astrônomos, e contração, pela força de gravidade, prevista também por eles, até nova explosão, em um incessante recomeçar.
O tempo sempre foi percebido pela humanidade como algo absoluto, sem princípio nem fim, em relação ao qual tudo deveria acontecer, como a medida última de todas as coisas de nossas existências. Quem sabe a indagação sobre essa infinitude, em contraste com nossa finitude, tenha sido uma das primeiras, ou talvez a primeira, feita pelo ser humano, e origem de todo o nosso filosofar. Tudo seria relativo, menos o tempo.
No entanto, essa é mais uma das percepções errôneas sobre fatos do nosso cotidiano, para os quais o senso-comum tão-somente é um guia em quem não se deve confiar. Aliás, se fôssemos orientar todas as nossas decisões pelas aparências, pelo que parece ser, apenas, pelo entendimento comum, todo o conhecimento científico que possuímos atualmente poderia ser abandonado como a base de nosso progresso material e espiritual como tem sido desde o início da civilização.
No começo do século XX, há quase cem anos, portanto, Albert Einstein mostrou que tempo absoluto não existe, é uma ilusão. Para um viajante espacial, deslocando-se a altíssimas velocidades, seu relógio, de qualquer espécie, mesmo do tipo biológico, como o tique-taque de seu coração, torna-se mais lento do que o de uma pessoa deixada na Terra. Para o viajante o tempo irá passar mais devagar, comparado com o do observador em nosso planeta. No seu retorno seu irmão gêmeo estará mais velho do que ele. Isso não é ficção nem delírio de magos ou bruxos, mas a teoria da relatividade especial.
A razão de não percebermos esse fenômeno no nosso dia-a-dia está em que ele somente pode ser observado a velocidades que não podem ser alcançadas, próximas à da luz. Atualmente, com tecnologias relativamente primitivas, isso somente pode ser feito com partículas sub-atômicas, aceleradas em laboratórios com bons equipamentos. Se fosse possível fazer alguém viajar a tais velocidades, mesmo sem sair da Terra, a diferença na passagem do tempo poderia ser facilmente percebida.
Mas, a verdade é esta: cada um de nós, independentemente das leis da física e dos postulados da relatividade, tem seu tempo particular, seu ritmo único de fazer as coisas e de estar no mundo. Haverá sempre alguém que vê a vida com pressa, como se todos os seus planos tivessem de ser realizados imediatamente, como se nada pudesse esperar até amanhã. Outras, ao contrário, preferem viver como se sua própria vida fosse eterna, como se nada fosse tão importante que não pudesse ser adiado.
Ao fim, no entanto, podemos dizer que passar pelo tempo ou ser por ele passado pode ser uma questão de velocidade. Se não temos muita pressa o tempo como que passa por nós. Se, no entanto, formos bastante rápidos, quase tanto quanto a luz, acabamos passando por ele. Ele fica para trás deixando-nos mais jovens e felizes.

22 de dezembro de 2002

Papai Noel

Jornal O Estado do Maranhão
Definitivamente, o Natal mudou. Pelo menos na maneira das crianças pedirem seus presentes ao popular Bom Velhinho. Nos últimos anos, crescentemente elas estão enviando seus pedidos pela Internet. Mas, para sua decepção, as respostas ainda demoram muito. Mesmo assim, elas insistem. Uma menina irlandesa, por exemplo, disse em uma carta: “Papai Noel, eu acho você a pessoa mais legal da Internet”. Outra explicou o seu drama: “Querido Papai Noel, eu não tenho um endereço de e-mail. Então, estou usando o do meu irmão. Por favor, não deixe nossos presentes misturarem-se".
Os números são pequenos, até agora, comparados com a maneira tradicional de pedir, mas, com o crescimento exponencial da grande rede, não estará longe o dia de as cartas eletrônicas superarem em quantidade as feitas à moda antiga.
Quando essa época chegar, em tempo não muito distante, vai ver algum douto analista das tendências do mundo moderno irá aparecer com a sugestão de aposentadoria para Papai Noel. Eles irão dizer, imagino, que, a fim de adaptar-se aos novos tempos e dar resposta à demanda que irá aumentar rapidamente, essa querida figura será obrigada a usar a própria Internet.
A situação seria a seguinte. Uma equipe de centenas de pessoas, sob a liderança dele, ficaria ali onde ele mora, o Pólo Norte, recebendo as mensagens eletrônicas de crianças do mundo todo. Pela rapidez com que o Velhinho pode ser alcançado por esse meio, as mensagens se acumulariam rapidamente, caso a equipe não usasse a própria Internet nas encomendas destinadas a atender os pedidos. Estes seriam enviados diretamente à casa de cada criança, usando os serviços disponíveis na rede. Papai Noel estaria dispensado da tarefa supostamente cansativa e tediosa. Ele nem precisaria inspecionar a qualidade dos brinquedos. Estaria de certa forma morto a partir daí, até sumir da imaginação de todos. Melhor assim, diriam. Com sua idade incerta, não reclamaria de nada, preferindo aposentar-se mesmo, cansado de estar carregando aqueles sacos imensos durante todos esses anos.
Esse santo, em verdade São Nicolau, chamado Santa Claus nos Estados Unidos, sendo Claus corruptela de Nicolau, abreviado como Santa pelas crianças americanas, foi um bispo de Mira, cidade na atual Turquia, que viveu no século III. Segundo a tradição, com origem na Idade Média, que se espalhou por toda a Europa, inicialmente nos países mais frios e sujeitos à ocorrência de neve, o santo distribuía presentes no dia 6 de dezembro, dias das crianças. Depois, com a consolidação do cristianismo e sua hegemonia religiosa e cultural, o costume foi associado com o nascimento de Jesus.
Pura ilusão aquela desse pessoal que acha ser possível Papai Noel poder aposentar-se. Eles não entendem coisa alguma de Natal, de crianças nem dele, chamado Pai Natal em Portugal. Aliás, na França usa-se Frère Nöel, Pai Natal também. Isso mostra ser a designação usada no Brasil uma mistura de português com francês. Previram também o desaparecimento dele, nos anos trinta do século XX, quando ele ganhou a aparência de uma pessoa gorda e barbuda usando sempre as cores vermelha e branca, que tão bem o identificam, por influência do marketing da Coca-Cola, que tinha, como ainda tem, como imagem para significar o inverno uma figura com aquelas características.
Um Natal sem Papai Noel não seria Natal. Essa figura estará presente para sempre nas comemorações natalinas. Não importam a eletrônica, os computadores, a Internet, a tecnologia e tudo mais. Podem as formas mudar, mas não a essência da fantasia das crianças. A imaginação tem grande parte na felicidade humana, como o mostram os pedidos desses meninos e meninas de todos os lugares. O Velhinho é o símbolo da generosidade possível em todos nós, que jamais desaparecerá. É o contraponto ao egoísmo e aos instintos humanos mais destrutivos, tão bem percebidos por Jesus Cristo. É esse sentimento de compartilhamento que nos permite desejar a todos um Feliz Natal.

15 de dezembro de 2002

Algumas crônicas

Jornal O Estado do Maranhão
Depois de dois anos deste exercício semanal de escrever crônicas aqui em O Estado do Maranhão, ocorreu-me a possibilidade de haver nelas material suficiente para compor um livro. Selecionei, então, utilizando critérios subjetivos, como é inevitável quando selecionamos os frutos de nosso próprio trabalho, as que me pareceram mais bem realizadas. Dessa maneira, elas teriam alguma esperança de escapar à corrosiva ação do tempo, juiz rigoroso que a tudo ameaça com a severa punição do esquecimento.
Se, assim arrancadas de seu meio natural, o jornal, continuarem a parecer boas aos eventuais leitores, terão passado em um bom teste de qualidade. Se, pelo contrário, perderem qualquer sentido que possam ter tido, estarão reprovadas e, junto com elas, seu autor, mesmo antes do julgamento do tempo. Com isso em mente, compus o livro. Seu lançamento será depois de amanhã, dia 17, terça-feira, a partir das 19 horas, no Museu Histórico e Artístico do Maranhão.
Na etimologia da palavra crônica entra a idéia de tempo, vinda de sua origem grega khrónos, mas introduzida na língua portuguesa através do latim chronica, no século XIV, segundo o Dicionário Houaiss da língua portuguesa. É essa idéia que sempre está nela presente, desde quando designava simplesmente um relato de fatos históricos, ou supostamente históricos, ou de fatos relacionados à vida dos soberanos, como na Crônica dos sete primeiros reis de Portugal.
Hoje, o gênero continua tratando do tempo, geralmente de fatos da atualidade ou do dia-a-dia do cronista e dos seus leitores, procurando, segundo entendo, um significado para essa coleção de pequenos acontecimentos aparentemente banais e efêmeros, mas que podem revelar-se, e freqüentemente revelam-se, importantes nas nossas vidas. É a tentativa de ir além das aparências das coisas, das pessoas e das cidades e acompanhar suas mudanças. A crônica começa no cotidiano e termina na filosofia, entendida esta como reflexão sobre o sentido da vida. É, portanto, difícil de ser praticada, mas tem o jeito de ser fácil, pela leveza da linguagem e pelo tom despretensioso.
Jamais me ocorrera que escolher um nome para essa variedade de assuntos reunidos no mesmo volume daria tanto trabalho. Inicialmente, convicto da importância de, no título, dar a idéia de conjunto, logo descobri não ser essa uma tarefa simples. Desisti de adotar esse como o único critério de escolha. Depois, achei que poderia achar algo alusivo à publicação das crônicas em jornal e ao dia da semana de sua publicação, domingo. O sétimo dia? Ou, Domingo no Estado? Não gostei do que me veio à cabeça. Nada parecia adequado.
De repente, tive a impressão de ter descoberto algo aproveitável. Pensei em Baú de prosa ou Prosa de Baú. Um destes dois daria, eu pensava, a idéia de guardados que se vai buscar depois de certo tempo, para novo uso. Mas, aí vi outra coisa. Baú de prosa tinha ecos muito fortes do Baú de ossos, de Pedro Nava, que se transmitiam a Prosa de baú. Além disso, a palavra baú já havia sido usada por Viriato Correia em Baú velho.
Vários amigos, entre eles Jomar Moraes, Lucy Teixeira, Sebastião Duarte, José Chagas e Nauro Machado, todos com muita experiência no trato com as palavras, bem como o fotógrafo Albani Ramos, o autor da capa do livro, deram-me a sugestão de utilizar o título de uma das crônicas. Analisei cuidadosamente todas e não descobri nada que expressasse a unidade procurada por mim.
Todo o material já estava pronto para ser enviado à gráfica, quando escrevi a crônica Pedaços da eternidade. Phelipe Andrés, diretor do Programa de Preservação e Revitalização do Centro Histórico de São Luís, enviou-me um e-mail dizendo que eu deveria incluí-la no livro e neste usar o título dela. Concordei com sua observação.  O uso da palavra pedaços, de fato, daria a idéia de um mosaico representado pelas crônicas. Tirei uma destas e coloquei a sugerida por ele, dando seu título ao conjunto. O livro estava pronto para ser julgado.

8 de dezembro de 2002

Resgates

Jornal O Estado do Maranhão
A quinta-feira da semana passada, dia 6 de dezembro de 2002,  foi um dia importante para a história do Maranhão. Digo história como ciência do acontecido, não simplesmente como uma narrativa de fatos, caso em que ela se aproxima da literatura. Eis o que eu quero dizer: naquele dia, na sede da Academia Maranhense de Letras, foi lançado o Catálogo dos manuscritos avulsos relativos ao Maranhão existentes no Arquivo Histórico Ultramarino.
Já pelo título, pode-se ver que não exagero ao atribuir ao lançamento um grande valor para o estudo científico do nosso passado. O livro apresenta treze mil fichas, com sumários de documentos históricos relativos à província do Maranhão, editadas paciente e incansavelmente por Jomar Moraes. Esse trabalho passa a ser, daqui por diante, fonte de consulta obrigatória para qualquer estudo sobre a história do Maranhão no período de 1614 a 1833. Anteriormente, a fim de consultar as fichas, o pesquisador era obrigado a ir ao Arquivo Histórico Ultramarino, em Portugal, resignar-se a citar de segunda mão ou desistir do uso da fonte.
O leitor não deve, porém, pensar que os documentos originais sumariados continuarão fora do alcance dos estudiosos. Em verdade, o trabalho não seria muito útil se tal fosse o caso. A íntegra desses documentos também já estão disponíveis, em dezessete CD-ROMs e diversos microfilmes, no Arquivo Público do Maranhão.
O livro é parte do Projeto Resgate Barão do Rio Branco, do Ministério da Cultura, que já publicou volumes referentes ás capitanias de Alagoas, Ceará, Espírito Santo, Goiás, Mato Grosso, Minas Gerais, Paraíba, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Rio Negro, Santa Catarina, São Paulo e Sergipe, assim como às colônias do Sacramento e Rio da Prata. Inclui o projeto, ainda, um tomo com os códices do Fundo do Conselho Ultramarino e outro relativo a documentos da secretaria do Conselho.
O volume maranhense contou, no início dos trabalhos para sua feitura, aqui em São Luís, com a colaboração vital do governo do Estado e do homem de negócios e membro da Academia, onde ocupa da cadeira 26, Carlos Gaspar. Foi dessas fontes a generosa doação dos recursos que tornaram viável financeiramente o projeto, na parte de interesse do Maranhão, e possível a Jomar, com sua dedicação e competência costumeiras, cumprir a extenuante tarefa de edição.
As fontes postas à nossa disposição compõem, pelo tipo de documentos sumariados – relatórios, requerimentos, correspondências, petições de autoridades e de cidadãos, tudo tratando, em boa parte, do cotidiano da província – um valioso acervo documental que ajudará na elaboração de uma história do cotidiano ou de uma história da mentalidade do Maranhão, seguindo uma das tendências dos estudos atuais nessa área. Tarefa que se torna, a partir deste momento, um desafio permanente para os pesquisadores interessados no estudo do nosso passado.
Mas, a quinta-feira não nos ofereceu somente essa riqueza. Ela nos ofereceu também outra boa notícia e um outro resgate, além desse dos documentos. A poetisa Laura Amélia Damous foi eleita para a cadeira 26 da Academia, vaga com a morte recente e profundamente sentida por todos os acadêmicos e pela sociedade, do seu ocupante anterior, Eloy Coelho Neto. A eleição de Laura aumenta a tão necessária presença da sensibilidade feminina na Academia. Com a nova acadêmica, chega a cinco o número de mulheres lá. A academia Brasileira tem apenas quatro.
De Laura, eu disse uma vez, e posso repetir, sem medo de errar na comparação que a engrandece, que é a Emily Dickinson maranhense, pela concisão de sua expressão, pela surpresa de seus achados poéticos e por sua originalidade e universalidade, ainda que venha escrevendo toda sua obra, também concisa no tamanho, mas não na qualidade, na província, como Emily.
Aplica-se a Laura o que Antônio Cândido disse sobre os artistas verdadeiramente originais: “[...] procuram de fato refrescar o sentido das palavras, distanciando-se dos nossos hábitos mentais nesse trabalho de renovação.”

1 de dezembro de 2002

O canto da fabril

Jornal O Estado do Maranhão
Ouço notícias sobre a possível mudança do nome do canto da Fabril. De acordo com uma proposta em tramitação na Câmara dos Vereadores de São Luís, segundo uma rádio local, a nova denominação seria canto Evangélico ou algo semelhante. Não me perguntem por quê. Poderia ser o início de um ecumenismo religioso? Haveria ali por perto igrejas cristãs, católicas ou protestantes, mesquitas xiitas ou sunitas, sinagogas, templos budistas ou de religiões afro-brasileiras, ou mesmo de qualquer um desses deuses de distantes terras orientais? Não se sabe. Mas talvez seja o caso que um lugar para abrigar todos esses lugares de adoração e oração esteja em planejamento pelas autoridades.
Aquele local é atravessado por dois grandes eixos. Um, na direção norte-sul, leva, no sentido sul, ao antigo Caminho Grande e, no sentido norte, ao centro da cidade. Duas pontas olhando para a história de nossa cidade. Outro eixo, perpendicular ao primeiro, indica, para o lado leste, o rio Anil e, para o oeste, o Bacanga, que envolvem a cidade como querendo mostrar que, da diversidade dos rios, nasce a unidade da cidade. Seria aquele ponto, então, a representação do nosso ecumenismo cultural? É uma hipótese a ser levada em conta por quem quiser entender a hipotética modificação.
O canto da Fabril é assim chamado por causa de uma indústria de tecidos que funcionou ali perto, onde depois o grupo Lusitana de supermercados teve um depósito de mercadorias. A fábrica, chamada Companhia Fabril Maranhense, foi fundada em janeiro de 1893, há mais de cem anos, portanto, tendo grande importância na vida econômica e social de São Luís e do Estado. Mesmo quando mudou sua razão social para Fábrica Santa Isabel, após a troca de seus proprietários, o povo continuou a chamar o canto como antigamente. Qual a razão para mudar agora?
A mudança não poderá e não deverá ser feita. Não somente porque dessa maneira manteríamos uma tradição de gerações e gerações desta cidade, aceita espontaneamente durante todos esses anos, contribuindo para a preservação de nossa história, que já não recebe tantos cuidados assim, mas também porque esse é o tipo de mudança que, parece a mim, não pegaria, por não dizer nada ao povo de São Luís e por ser arbitrária.
Daqui a pouco vai aparecer alguém propondo alterações na denominação das cidades maranhenses, sob a desculpa do ecumenismo. São José de Ribamar seria simplesmente José de Ribamar; Santa Inês, Inês; São Vicente de Férrer, Vicente de Férrer; São Benedito do Rio Preto, Benedito do Rio Preto; São Luís, Luís e assim por diante. Ou então nossas ruas e praças passariam a ser chamadas de Oração, Reza, Terço, Corão, Torá, e não se sabe mais o quê.
Mas, existe ainda uma outra possibilidade que espero nunca se tornar realidade. Perto do canto da Fabril, está o Estádio Municipal Nhozinho Santos Esse nome vem desde sua construção em meados do século XX. Nhozinho Santos, cujo nome completo era Joaquim Moreira Alves dos Santos, era um homem extremamente inovador. Ele era filho de Crispim Alves dos Santos, dono único da Fabril.
Provavelmente em 1907, na volta de seus estudos na Inglaterra, Nhozinho trouxe para o Maranhão o primeiro livro de regras de futebol – é o Charles Miller maranhense – e fundou o Fabril Athletic Club, o FAC, primeiro time de futebol de nossa terra. O primeiro automóvel de São Luís foi dele, que se tornou professor dos primeiros chauffers daqui. Importou nossa primeira motocicleta, adquiriu o primeiro grupo gerador e construiu a primeira piscina da cidade, em área da fábrica.
Caso essa mania mudancista sem sentido prevalecesse, não estaríamos livres de ver arrancada do estádio a justa homenagem a Nhozinho Santos. Em seu lugar, ninguém deveria surpreender-se de ver alguém mais “ecumênico”. Quem sabe, por um “ecumenismo” futebolístico, quisessem reverenciar um desses pernas-de-pau que vêm do Sul do país para passar três ou quatro meses aqui praticando um futebol sistemática e ecumenicamente ruim.

24 de novembro de 2002

Pedaços de eternidade

Jornal O Estado do Maranhão
Um buraco negro está viajando em direção ao sistema solar à espantosa velocidade de quatrocentos mil quilômetros por hora. Pelos padrões da astronomia, ele passará a pequena distância do Sol, de “apenas” mil anos-luz. Não será capaz de causar qualquer dano ao nosso planeta ou aos outros do nosso sistema, na hipótese de manter sua atual trajetória que, segundo os especialistas, pode ser imprevisível. Caso ele mude, entretanto, vindo diretamente em nossa direção, poderemos cair nele. Seria quase como entrar pelo cano ou descer pelo ralo, negro ou não.
Buracos negros não são buracos, no sentido de serem uma cavidade em uma superfície. Mas, dão a impressão de sê-lo porque, sendo estrelas extremamente compactas, têm uma descomunal força de gravidade. Sugam tudo que passa em sua proximidade, aprisionando, até mesmo, a luz. Esta, uma vez capturada nunca mais sai do interior deles. O resultado é tornarem-se completamente negros, ficando invisíveis aos instrumentos de observação astronômica. Sua presença somente pode ser percebida por seus efeitos gravitacionais sobre outros corpos celestes. Por exemplo, quando os astrônomos vêem um astro aparentemente girando em torno do nada concluem pela existência de um deles.
Pois bem, esse que se aproxima tão velozmente da Terra está a uma distância de seis mil anos-luz. Ele somente chegará nas “proximidades” do Sol e, portanto, da Terra, daqui a 230 milhões de anos. Para comparar, é interessante mencionar os cálculos sobre a idade do universo que o dão como tendo até quatorze bilhões de anos. Vê-se, dessa forma, como são relativas as coisas.
O que parece uma eternidade, visto da nossa perspectiva humana, não passa de uma pequena parte do tempo decorrido desde a explosão chamada Big Bang, marco do início do universo, ressalvada a outra hipótese, de o mundo ter sido criado em sete dias, sem explosão nenhuma, além da explosão da vontade do criador de tudo, conforme os relatos tradicionais das religiões. Mas, antes daqueles quatorze bilhões de anos, não existia o tempo? Haveria talvez uma espécie de tempo negativo, com respeito ao qual se poderia fazer uma contagem regressiva até o zero do começo de tudo?
A enganosa sensação de eternidade da caminhada do buraco negro é semelhante às ilusões inscritas nas lápides vistas freqüentemente nos cemitérios, como as que vi no Dia de Finados há poucas semanas. Falam de saudades e lembranças eternas de mortos queridos e recentes. Dos antigos, daqueles desaparecidos há tempo suficiente para uma ou duas as gerações terem passado, as lembranças vão pouco a pouco sumindo. Nós lembramos dos pais mortos, menos dos avós, menos ainda, ou quase nada, dos bisavós e, recuando mais, nem sequer o nome dos pais destes guardamos. Da mesma forma, visitamos os mortos de um mês, pouco os de um ano e quem sabe quantas vezes os de dez.
Há não muito tempo, aqui em São Luís, uma lista foi divulgada com os nomes de defuntos cujas famílias tinham débitos relativos à falta de pagamento de taxas do cemitério do Gavião. Entre os mencionados estavam alguns que em vida haviam sido importantes homens de negócios ou políticos poderosos. Mas, por terem morrido havia bastante tempo, que já começava a parecer uma eternidade, não tinham ninguém mais, entre seus descendentes, para zelar por sua memória. Morreram uma vez, fisicamente, morreram novamente quando foram esquecidos pela própria descendência e morreram a terceira vez quando, sem culpa nenhuma, tiveram seus nomes expostos daquela forma. Cansaram-se de morrer, certamente.
Pensar sobre isso tudo serve para nos mostrar não a transitoriedade da vida, mas, em um certo sentido, da morte. Primeiro, existe o sentimento de que será lembrada eternamente. A dor pela perda recente parece nunca passar. Depois, a própria morte vai morrendo nas lembranças dos que ficaram vivos, dando novamente a sensação, embora momentânea, de sermos eternos e não apenas pedaços de uma eternidade que gostaríamos de possuir.

17 de novembro de 2002

Pobres soltos

Jornal O Estado do Maranhão
Em agosto último, no dia 4, fiz alguns comentários aqui sobre a decretação, por um juiz de Timon, da prisão de Bingo, um vira-lata. Eu procurava dar voz ao pobre animal, contra a injustiça sofrida. Tentei mostrar seu comportamento anterior, humano, pacato e ordeiro. Mencionei também a possibilidade de ele ter tido boas razões para seu ato de morder um vizinho chato e barulhento.
Lembrei-me da descoberta de Rogério Magri, ex-metalúrgico que não chegou a presidente, mas foi ministro do Trabalho do governo Collor. Ele anunciou ao mundo que cachorro também é humano, contudo não tão irracional, creio. Menos irracional, com certeza, do que essa menina de São Paulo, Suzane von Richthofen. Ela premeditou – não direi de modo frio, porque todas as premeditações o são, porém inumana –, o assassinato de seus pais e levou seu namorado e um irmão dele, até a casa da família dela, há duas semanas, a fim de executarem barbaramente o casal, crime difícil de entender racionalmente. O crime de Bingo, se ele cometeu algum, em nada era comparável a esse de agora, mas o fez passar muitos meses na cadeia.
Algum tempo depois, ao procurar na Internet mais notícias sobre Bingo, descobri um artigo sobre o cachorro, de João Ubaldo Ribeiro, chamado “O Fim da Impunidade”, publicado no mesmo dia 4, no jornal O Estado de São Paulo. Embora bastante compreensivo a respeito da atitude de Bingo, chegando, até, a perguntar se o animal não havia “mordido em legítima defesa ou, como diz uma figura do direito penal, movido por violenta emoção após injusta provocação da vítima”, o escritor baiano expôs outro aspecto da situação.
Ele procurou olhar o lado positivo do infortúnio do animal – positivo, digo eu, do ponto de vista dos outros humanos, os mais irracionais: “Por outro lado, será que esse fato não está acabando com a nossa famosa impunidade, ou pelo menos mostrando que é possível a um condenado brasileiro permanecer mais de um ano na cadeia, fato raríssimo, como sabemos, principalmente em ocorrências corriqueiras, como um seqüestro ou uma fraude bancária?”
Não, se julgarmos por um outro juiz maranhense, Douglas Martins, de Araioses. O caso é este. Ele mandou soltar, em uma decisão inusitada, quatro presos da cidade, todos pobres, acusados de crime contra o patrimônio, todavia deixando estupradores, homicidas e traficantes de drogas na cadeia. O prefeito do município de Água Doce, o presidente e o secretário da Câmara tinham sido acusados de corrupção e malversação do patrimônio público. Elas tiveram a prisão preventiva decretada pelo juiz, mas obtiveram um habeas corpus, escapando da prisão. Na avaliação do juiz, a impunidade continua. Daí seu inconformismo.
O magistrado fala de um problema real, o da corrupção, mal endêmico que, afora seus aspectos morais, traz conseqüências negativas para a economia do país, pois diminui sua eficiência, aumenta o chamado custo Brasil e afugenta muitos investidores estrangeiros e nacionais.
Mas, falar de impunidade faz lembrar de dois outros problemas. Um, é a ausência quase completa de ricos e a onipresença de pobres em nosso desumano sistema penitenciário. Estes últimos representam uma grande parcela da população carcerária, maior do que a parcela deles em toda a população. Quem não tem dinheiro para pagar bons e caros advogados, ou não dispõe de influência, vai dar com os costados nessa casas de produzir marginais. Quem tem, safa-se.
O outro problema é o nosso sistema de administração de justiça. Ele é tão formalista, confuso, caro, lento e refratário a mudanças, pelo menos na visão de leigos como eu, que exclui de seus benefícios os cidadãos humildes, justamente os mais necessitados de justiça. No meio da confusão das leis, os magistrados, dos tribunais de primeira instância e dos superiores, são obrigados a tomar decisões que, às vezes, não são entendidas pela sociedade e até por seus colegas de profissão.
A hora é de reformar e acabar com a história de somente pobre ficar na cadeia.

10 de novembro de 2002

Consenso

Jornal O Estado do Maranhão
Poucos anos atrás, desenvolveu-se no Brasil uma polêmica, nos meios acadêmicos, na imprensa, entre os políticos, do governo e da oposição, e em todo lugar, sobre o equilíbrio das contas do governo. Alguns, a minoria, desprezados como “neoliberais”, defendiam o equilíbrio orçamentário. Outros diziam que orçamentos sistematicamente deficitários, com ou sem fontes adequadas de financiamento, não tinham nada a ver com o processo inflacionário de então.
A inflação não viria daí, mas de um hipotético conflito sobre a distribuição da renda, com os diversos agentes econômicos tentando apropriar-se, simultaneamente, de parcelas crescentes do produto nacional. Mas, evidentemente, uma explicação teria de ser dada ao fato de passar-se de uma situação de harmonia a respeito do pedaço da riqueza nacional de que o capital e o trabalho se apropriavam, para outra de conflito.
Invocava-se, a partir daí, uma explicação ideológica. O aumento da consciência da classe trabalhadora acerca de sua exploração pelos capitalistas levaria a um aumento de suas demandas de participação na renda da nação. A resistência da classe dominante em ceder parte de sua própria renda, ou de concordar em apropriar-se de fatias menores de um produto em expansão, levaria o governo a tentar resolver a disputa através de políticas monetárias expansivas que resultavam em aumento continuado dos preços.
Dizia-se, também, que “um pouco de inflação” poderia até ser benéfico para a economia. Entre outras vantagens, ela poderia gerar, por meio do imposto inflacionário, gerador de receitas extras apropriadas pelo setor público, os recursos para programas sociais destinados aos mais pobres e para novos investimentos governamentais em infra-estrutura e em setores estratégicos da economia.
A estabilização da moeda, com a derrubada da inflação – que atinge negativamente mais os mais pobres –, a níveis comparáveis à de países do primeiro mundo, tornou essa discussão obsoleta. Não houve segredo nenhum. De uma forma simplificada, podemos dizer que se tratou, tão-somente, da aplicação de princípios macroeconômicos sólidos, relativos às políticas fiscal e monetária, fora dos quais não há mágica possível.
Do início do Plano Real até aqui, algumas reformas necessárias à consolidação da estabilidade foram feitas. Outras deixaram de sê-lo, como a previdenciária. A tarefa ficou para o governo do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva. Poderá ele realizá-la, e realizar as outras, como a tributária, por exemplo?
Formou-se no país um tal acordo a respeito da necessidade de dar-se um combate sem tréguas ao mal inflacionário que, durante a recente campanha para presidente da República, os pedidos de rompimento com o FMI, de revogação da Lei de Responsabilidade Fiscal, que é instrumento tão importante para aquela tarefa, e outras sandices ficaram por conta, apenas, do Partido da Causa Operária – PCO e do Partido Socialista dos Trabalhadores Unificados – PSTU, aquele do mote “contra burguês, vote 16”.
Ouço, agora, algumas críticas ao PT e a Lula por terem se rendido a esse consenso. Acusam o PT e o futuro presidente de incoerência. Mas, é bom ter em mente que coerência é, muitas vezes, uma forma de teimosia e uma recusa aos novos tempos. É melhor ser a metamorfose ambulante da canção popular e não persistir na bobagem. Se houve mudanças, foram para melhor. Foi a triunfo do bom senso.
O novo governo demonstra, ao assumir compromissos com a estabilidade, ter a compreensão da realidade brasileira e do funcionamento de uma economia de mercado. As restrições econômicas, políticas e sociais, internas e externas, terão de ser levadas em consideração. Governar, tomar as decisões ajustadas a cada momento, não é apenas uma questão de “vontade política”. Essa, todos, ou quase todos, os governantes têm. O que lhes falta quase sempre, a fim de fazer tudo que desejariam, são as famosas “condições objetivas”, sobre as quais o pessoal de uma certa esquerda tanto gosta de falar.

3 de novembro de 2002

Moleza

Jornal O Estado do Maranhão 
A história da humanidade tem sido, em grande parte, e continuará a ser até a consumação dos séculos, de dominação do mais fraco pelo mais forte. Impérios nascem e crescem pela agressão a vizinhos indefesos. Sociedades econômica e militarmente poderosas não têm duvidado em dominar pela força inimigos reais ou imaginários, visando à imposição violenta de seus próprios interesses.
Visto de outro ângulo, os economicamente mais influentes, no interior de cada sociedade, sempre, ou quase sempre, mantêm o controle dos mecanismos de poder. De outra forma, deixarão de ser poderosos. Os outros têm de se conformar com uma posição subalterna. Mesmo onde existiu ou existe um aparente igualitarismo, nunca deixou de haver essa divisão social, não importa sob qual regime político.
Nisso tudo, Karl Marx, excelente em análise e péssimo em previsão, hoje com baixa cotação no mercado das idéias, tinha razão. Pode-se discutir se esse fenômeno é uma inevitabilidade de todas as sociedades, se a tendência à dominação é inerente ao ser humano, se há uma base genética para esse comportamento, se este é necessário à sobrevivência de grupos organizados, e muitos outros aspectos dessa realidade. Mas, é difícil, acho, deixar de percebê-la.
Mas, vejam agora esta novidade. Como se não fossem bastantes todas essas injustiças com as classes populares, aparece mais uma, quando menos se esperava. Muita gente pensava e apregoava que o sujeito que pega no pesado, tem baixa escolaridade, dá duro em trabalhos exigentes no emprego da força física e ganha salário mínimo, fosse bom de cama, em comparação com o que tem alto nível de educação, pega leve, pelo menos fisicamente, e tem renda alta.
Era como se o trabalhador braçal fosse pau pra toda obra no terreno sexual e o intelectual vivesse dando mole o tempo todo, principalmente para as supostamente frustradas companheiras. Prevalecia a idéia de que o homem do povo, por ser puro e virtuoso, não teria os traumas que atrapalham os ricos, tão travados em seu desempenho, pela preocupação de não perder sua fortuna, que nem a pau poderiam melhorar na cama ou em qualquer outro lugar.
Tudo balela, segundo o Ecos, ou Estudo do Comportamento Sexual do Brasil, feito pelo Projeto Sexualidade, do Hospital das Clínicas de São Paulo. Pelo estudo, ocorre exatamente o inverso. A disfunção erétil, um eufemismo para aquela vacilação mencionada por Pelé no comercial da vitamina milagrosa chamada Vitasay, aflige mais os mais pobres.
Aliás, as pobres vítimas, vítimas pobres também, e outros eventuais aflitos, recebem do famoso garoto-propaganda a promessa de “uma forcinha”, ninguém sabe com que grau de confiabilidade, visto o produto não ser nenhum Viagra. É a tal história de sucesso trazer sucesso e fracasso, fracasso. O rico é o tal porque é rico e o pobre não consegue nada porque é pobre. É desse tipo de injustiça de que precisamos nos livrar em primeiro lugar, se quisermos transformar de verdade este país.
Como o futuro governo do presidente eleito Lula traz, finalmente, esperanças de resolução dos problemas da pobreza e desigualdade, depois desses anos todos de indiferença pela vida sexual dos brasileiros desamparados, já se vê uma conseqüência inesperada, mas sem nenhuma dúvida benéfica, caso as altas expectativas do homem comum, que na verdade é um duro, venham a ser atendidas: a igualdade e harmonia no campo amoroso.
Nenhum trabalhador poderá mais chegar em casa, depois de uma dura jornada de trabalho, e botar no governo a culpa pelo próprio desempenho no amor. Ou pela falta de desempenho. Nunca mais as trabalhadoras ouvirão as velhas desculpas de seus companheiros: “Desculpe, querida, essas políticas neoliberais estão me deixando sem forças”. Ou então: “Meu bem, você não vai acreditar, mas os culpados de tudo isso são o FMI e o Banco Mundial, com aquela mania de meter o bedelho na vida íntima dos brasileiros”. Ou ainda: “Amor, essa tal de globalização está me dando uma dor de cabeça e uma moleza...”.

27 de outubro de 2002

Em torno da casa

Jornal O Estado do Maranhão 
Toda minha infância e adolescência, eu as vivi em um bangalô no Monte Castelo, em frente ao Senai, na avenida Getúlio Vargas, parte do Caminho Grande dos tempos antigos, de onde somente saí para constituir minha própria família. Tenho lembranças muito tênues da mudança para lá, no início dos anos cinqüenta, vindos nós da rua Cândido Ribeiro, talvez em 1952. Tento deduzir o ano a partir das histórias ouvidas depois dos mais velhos em bate-papos familiares. Quase todos os que poderiam, hoje, dar-me alguma informação já retornaram ao pó, têm a memória enfraquecida pelo tempo e pela vida ou também não se lembram bem.
Uma daquelas narrativas era sobre a ocasião de nossa ida para o Areial, como era chamado o bairro, classificado de fim de mundo por muita gente. Falava, pelo que eu podia perceber das conversas, da morte de meu avô materno, Luís de Melo Raposo, poucos dias antes do nascimento, em dezembro de 1949, de meu irmão Luís Carlos. Ele devia ter uns três anos quando nos mudamos. Era o terceiro degrau, eu o segundo, na escadinha de irmãos que iria aumentar todos os anos até completar sete batentes.
A outra história era sobre o quinto degrau, José Ricardo. Eu ouvia dizerem ser ele o primeiro a vir à luz naquelas lonjuras, em 1953, e ser Cursino, o quarto na escada, o último a nascer na casa do centro da cidade, em dezembro de 1951. Portanto, o ano mais provável da mudança é 1952 mesmo.
Algumas vezes, eu bem pequeno, fui com meus pais visitar a casa, durante a construção. Eu olhava aquilo tudo e pensava, não tão consciente como digo agora, se seria possível morar naquela confusão de barro e cimento. Digo ter visto as obras, mas, será que as vi de verdade? De tão imprecisa a lembrança, não posso dizer com certeza. Nunca podemos estar totalmente seguros de muitas de nossas recordações. Elas podem ser apenas construções ou reconstruções feitas a partir de coisas ouvidas após aquilo que achamos ter vivido. De uma certa forma, podem ser, tão-somente, um pedaço das recordações coletivas da família, incorporadas à imaginação individual de tão repetidas.
Certeza tenho, sim, da avenida sem asfalto, com a poeira vermelha acumulando-se por todos os lugares da casa, nas camas, nos móveis, nas mesas, em tudo e em todos, e do bonde elétrico se arrastando em direção do Anil, com seu som agudo e penetrante nascido do atrito do ferro das rodas contra o dos trilhos. Andava quase com a mesma lentidão das carroças puxadas a burro que circulavam o dia inteiro pelo bairro todo, conduzidas pelos carroceiros de chicotes de couro às mãos. Nunca pude saber se o estalo seco vinha do golpe vibrado no ar ou no próprio lombo dos animais.
Sobre aquelas balizas metálicas, caminhos de ferro estendidos por boa parte da acanhada cidade, iríamos, poucos anos depois, colocar lâmpadas velhas para serem trituradas à passagem do veículo pesado e vagaroso. O pó de vidro resultante seria a matéria prima do cerol que usávamos nas linhas dos nossos papagaios, nas batalhas aéreas de fins de semana. Mas, na maioria das vezes, era mesmo em pilões de ferro que preparávamos o material dessa emocionante guerra feita de linha, papel, talas de bambu e sangue dos dedos feridos pela linha cortante.
Os gritos de “lá vai” anunciavam a vitória nas lanceadas. Era quando um dos papagaios, vibrante e desafiador até certo momento, no seguinte como que se abandonava à derrota, ao sentir cortada pela linha de um outro a que o sustentava, indo cair lá longe, depois de uma lenta, leve e longa dança. Os meninos das ruas, com suas compridas varas, corriam para apanhá-lo, ressuscitá-lo e novamente colocá-lo soberano nas alturas, por breve tempo.
Sempre que me ocorre pensar naquela casa e em fatos de minha infância passados em torno dela, lembro-me destes versos de um poema do escritor Luiz Alfredo Raposo, meu primo, dedicado à minha mãe nos seus oitenta anos: “Com suas saias godês e aquele sorriso americano,/ela era princesa e castelã da Casa do Areial.”

20 de outubro de 2002

Machado e o Maranhão

Jornal O Estado do Maranhão 
Era freqüente a citação de escritores e coisas do Maranhão por Machado de Assis, nos seus artigos na imprensa do Rio de Janeiro. Jean-Michel Massa, autor de A juventude de Machado de Assis, observando essa ocorrência, ao coligir e anotar várias crônicas de Machado para os Dispersos de Machado de Assis, tentou explicá-la dizendo haver uma benevolência do escritor carioca com o Grupo Maranhense e o Estado, por causa de sua amizade com Joaquim Serra.
No entanto, conforme argumentei há meses, aqui, melhor explicação está na admiração de Machado pelo talento do Grupo. Na época, o Rio de Janeiro era ainda uma cidade provinciana, embora experimentasse um acelerado crescimento. O Maranhão, por seu lado, gozava de prestígio literário em todo o Império, em boa parte originado no surto de crescimento econômico desde o final do século XVIII. Assim, não deveria causar surpresa um escritor do Rio de Janeiro admirar os maranhenses, a ponto de mencioná-los repetidas vezes.
Independentemente, porém, desses motivos, as referências são interessante. Uma das mais curiosas foi a de um morador de Viana, feita em 1864, no dia 11 de setembro, no Diário do Rio de Janeiro. O vienense vira, ou imaginara ver, lágrimas nos olhos de uma imagem de Santa Teresa. Machado deixa escapar uma ponta do ceticismo que, com o passar dos anos – ele tinha, então, 25 anos – se tornaria mais acentuado e amargo, ao comentar: “Fora longe se continuasse a referir estas ocorrências que puseram em alvoroço os crédulos vianenses.”
No dia 7 de março de 1865, no mesmo jornal, ele dá uma boa notícia. Os manuscritos dos dramas Beatriz di Cenci e Boabdil, de Gonçalves Dias, considerados perdidos, haviam aparecido. Incomum foi o modo como foram encontrados. Sua viúva, Olímpia da Costa Gonçalves Dias, colocara um anúncio pedindo a entrega de qualquer papel do poeta maranhense que pudesse estar em mãos de particulares. Machado diz que, vinte e quatro horas depois, um escravo estivera na casa de Olímpia e lhe entregara uma caixa contendo os dramas bem como várias poesias dele e alguns de seus trabalhos sobre educação pública. Em seguida, desaparecera. Afirma, também, ter a imprensa do Maranhão dado a notícia antes da do Rio.
A notícia seria retificada pela viúva, conforme a crônica do dia 21, do mesmo mês de março. A devolução se dera, em verdade, somente cinco dias depois da colocação do anúncio, tendo sido noticiada primeiramente pela imprensa carioca, a 5 de fevereiro. Machado atribui seu erro, quanto ao número de dias decorridos até a entrega, à imprensa do Maranhão, mas admite ter se equivocado a respeito da prioridade da imprensa do Maranhão.
Haverá melhor dia para comentar uma sátira com o título O dia de Finados do que o próprio Dia de Finados? Machado o fez em 1877, na Ilustração Brasileira. Depois de alguns comentários sobre essa peça do maranhense Artur Azevedo, ele acrescenta que num ponto o autor havia ido longe demais, quando mostra uma jovem mulher, abatida pela dor da morte do marido, casando-se novamente um ano depois. “A culpa não é da viúva, é da lei que rege esta máquina, lei benéfica, tristemente benéfica, mediante a qual a dor tem que acabar, como acaba o prazer, como acaba tudo. É a natureza que sacrifica o indivíduo à espécie”. Bem machadianas, essas observações.
Em 1888, Machado narra, em 21 de maio, na Imprensa Fluminense, poucos dias, portanto, após a Abolição da Escravatura, um fato passado em Bacabal. A lei da libertação fora obedecida em todo o Império, menos naquela cidade. Diz que, se morassem no Maranhão alguns ex-escravos do Rio de Janeiro que, alforriados anteriormente, adquiriram seus próprios escravos, menor seria sua melancolia pela perda destes, pois, sendo ex-senhores, agora, depois da Lei Áurea, não deixariam de ser ex-escravos. Seu comentário: “Bem diz o Eclesiastes: Algumas vezes tem o homem domínio sobre outro homem para desgraça sua. O melhor de tudo, acrescento eu, é possuir-se a gente a si mesmo”.

13 de outubro de 2002

Reforma política

Jornal O Estado do Maranhão
Os Estados mais populosos do Brasil, particularmente os do Sul, sempre se queixaram de sub-representação na Câmara dos Deputados. É comum ouvir-se dizer, de um eleitor do Acre, para ficarmos no exemplo citado com mais freqüência, que ele vale diversas vezes um do Estado de São Paulo porque, para ser eleito neste, um deputado federal precisa de muito mais votos do que no outro. Se, no caso paulista, por hipótese, forem necessários cem mil votos para eleger um desses representantes e no acreano apenas dez mil, então, claro, o eleitor do Acre equivale a dez sulistas.
Essa é, de fato, a situação. Ela surge de uma limitação imposta pela Constituição federal, com respeito à representação dos Estados na Câmara. O número de representantes de cada um aí é estabelecido na proporção direta, em princípio, de sua população. A maiores populações, portanto, deveriam corresponder, linearmente, maiores representações. Caso não houvesse limite algum, uma unidade da federação com uma população dez vezes maior do que a de outra teria uma bancada também dez vezes maior. A Constituição federal, todavia, no seu artigo 45, parágrafo primeiro, determina que as bancadas não podem ter menos de oito ou mais de setenta deputados. Esse dispositivo causa uma quebra na proporcionalidade estrita, com respeito aos Estados mais e menos populosos.
No primeiro caso, o limite cria uma sub-representação, fazendo com que, em lugar de São Paulo ter, vamos supor, oitenta deputados, número diretamente proporcional á sua população, ele fique no limite de setenta. No caso das unidades federativas menos populosas, dá-se o inverso. Em vez de terem um ou dois deputados, na proporção direta de suas populações, eles acabam ficando com oito, o número mínimo.
Mas, a questão não se esgota em apontar essa distorção, porque a intenção do constituinte foi exatamente essa, de contrapor ao poder econômico estadual que, na maioria dos casos, anda junto com o tamanho da população, uma limitação política, expressa no tamanho da representação dos Estados na Câmara. Não fosse assim, o poderio econômico dos mais populosos seria reforçado pela superioridade numérica de sua representação, criando, dessa forma, a possibilidade de um indesejável desequilíbrio federativo.
Por todas essas razões, é uma ironia a eleição, justamente em São Paulo, de deputados com cerca de duzentos ou trezentos votos. Embora por motivos diferentes dos relacionados aos critérios de estabelecimento do número de deputados de cada Estado, esses eleitores paulistas passaram a valer muitas vezes mais do que os acreanos. A razão está no arcaico sistema de eleição proporcional ainda adotado no Brasil e na Finlândia, apenas. Um candidato, Enéas, de um partido nanico, teve uma quantidade muito grande de votos, sem que isso representasse necessariamente apoio ao partido. Tratava-se somente de um tributo popular ao histrionismo do candidato.
Ao obter uma grande votação, Enéas “elegeu”, na carona de seu bom desempenho individual, vários candidatos de seu partido. No Maranhão, pessoas com uma boa votação não se elegeram, enquanto outras, com pouquíssimos votos, ganharam um mandato. Como, aliás, acontece em todos os pleitos. A aberração surge desse sistema de eleição proporcional, pelo qual um partido que conte com um “puxador” de votos é capaz de eleger outros de seus filiados com uma quantidade pequena de sufrágios, deixando de fora pretendentes de outros partidos com mais votos, mas sem os tais “puxadores”.
Acredito que já exista no país um consenso, reforçado pela ocorrência dessa distorção, que o povo não entende, sobre a necessidade de uma reforma político-partidária. Poderíamos adotar o sistema distrital de escolha dos deputados, a fidelidade partidária e o financiamento público das campanhas. Essas seriam medidas indispensáveis para dar mais estabilidade e representatividade ao sistema obsoleto atualmente em vigor e facilitar a implantação de outras reformas necessárias ao Brasil.

6 de outubro de 2002

Democracia em marcha

Jornal O Estado do Maranhão
O Brasil mostra ao mundo, ao realizar as eleições de hoje, a solidez e a maturidade de sua democracia. Quem viveu, como eu vivi, os anos ditatoriais após o golpe de Estado de 1964 e, especialmente, os seguintes à edição do AI-5 em dezembro de 1968, pode avaliar a importância de termos hoje uma disputa eleitoral com a perspectiva de vitória de um candidato de um partido, o PT, cujas origens no movimento sindical, contudo, não gera rumores de intervenções das Forças Armadas no processo político nem de mudanças nas regras da disputa nem de interferência aberta ou oculta dos Estados Unidos. Mas, já foi assim.
Uma afirmação como essa, pode parecer estranha às novas gerações. Elas cresceram vendo a realização periódica de eleições livres, sem questionamentos de seus resultados. Os jovens não conheceram, a não ser nos livros de história, os chamados senadores biônicos, eleitos indiretamente por indicação do presidente da República, este, por sua vez, um general selecionado nos quartéis e confirmado formalmente no Congresso Nacional controlado; os governadores escolhidos indiretamente pelas Assembléias estaduais, as quais tinham capacidade nula de dizer não aos desejos da caserna; o bipartidarismo artificial criado à força, no qual somente o partido do governo, a Aliança Renovadora Nacional, Arena, podia triunfar, sob pena de mudarem-se as regras da eleição a fim de transformar a derrota em vitória; a cassação de mandatos e de diretos políticos de parlamentares de oposição e, até, de governistas rebeldes; a deposição de ocupantes do Executivo; a perseguição a magistrados, aos movimentos sociais e ao estudantil; as prisões arbitrárias seguidas de tortura; a censura prévia à imprensa e a todas as formas de expressão artística; e muitas outras arbitrariedades desconhecidas hoje.
A volta à democracia, porém, não esteve livre de dificuldades. Passada a euforia do crescimento econômico acelerado do fim dos anos sessenta e primeira metade dos anos setenta, para o qual contribuíram várias circunstâncias favoráveis nos mercados internacionais, veio a crise do petróleo, decorrente do conflito entre árabes e israelenses, que, depois de uma pequena defasagem, afetou negativamente a economia brasileira. A pouca legitimidade política conferida ao regime militar pela expansão econômica anterior, desapareceu. Veio daí o processo de abertura “lenta, gradual e segura”, conforme expressão do general Ernesto Geisel, quando ocupava a Presidência da República.
É preciso mencionar, para fazer-se justiça, o papel de grande importância desempenhado pelo presidente José Sarney na condução do país durante esse processo de transição rumo à plenitude do estado de direito. Em um momento em que nossas instituições, mal recuperadas de um longo período de mutilação e castração, ainda estavam tentando reafirmar sua importância para a vida do país, ouvia ele a toda hora um mau conselho. Era o de “dar um murro na mesa”, atitude ensaiada pelo general Figueiredo, quando presidente, com resultados desastrosos. A compreensão, pelo presidente Sarney, de que a consolidação democrática deveria ter o menor grau possível de agitação institucional, permitiu-lhe, em meio a grandes dificuldades na economia, ter um comportamento sereno e conciliatório. Ele foi capaz, assim, de entregar a presidência a seu sucessor tendo a certeza da impossibilidade de qualquer retrocesso. Essa, penso, foi sua grande obra política.
Neste momento, o mundo nos admira pela nossa estabilidade institucional democrática, mas também econômica, esta tornada possível pela outra. Tornamo-nos imunes às desconfianças e ao nervosismo do mercado. É prova de nossa maturidade como nação. Além disso, podemos ter orgulho de sermos o único país a ter uma eleição totalmente informatizada, com acentuada diminuição da probabilidade de fraude como a da Florida.
Isso tudo nos autoriza a apontar os grandes vencedores do pleito de hoje: a democracia e a sociedade brasileiras.

29 de setembro de 2002

O ano-sousândrade

Jornal O Estado do Maranhão
Joaquim de Sousa Andrade, Sousândrade, morreu em 21 de abril de 1902. Completam-se agora, portanto, cem anos de sua morte, motivo mais do que suficiente e justo para a Academia Maranhense de Letras considerar este 2002, como o fez, o Ano-Sousândrade. A Academia, como parte dos eventos que vem realizando nos últimos meses em homenagem a Sousândrade, realizou uma sessão especial em seu auditório, na última quinta-feira, dia 26, a fim de lançar, junto com a Gerência de Desenvolvimento Humano do Estado e com a de Desenvolvimento Regional de São Luís, o Concurso Ano-Sousândrade e um livro do professor Sebastião Moreira Duarte, acadêmico, ocupante da cadeira no. 1, fundada por Barbosa de Godois.
O concurso destina-se aos alunos da rede pública estadual do ensino médio da Grande São Luís, englobando os municípios de São Luís, São José de Ribamar, Raposa e Paço do Lumiar. O melhor trabalho de cada unidade de ensino, e, no geral, os dez melhores, que poderão abordar qualquer aspecto da vida ou da obra de Sousândrade, farão parte de uma coletânea a ser editada pela Academia. Dessa publicação, constará uma síntese bibliográfica do poeta. Será uma oportunidade de os estudantes poderem mostrar seus talentos e, simultaneamente, estrear em livro e não em jornal, este o caminho mais comum das estréias literárias. Eles poderão entregar seus trabalhos à Comissão Organizadora de suas escolas até o dia 24 de outubro, devendo o resultado ser divulgado pela Academia até o dia 17 de novembro deste ano.
O livro do professor Duarte, que poderá servir de valioso subsídio para os participantes do concurso, tem como título A épica e a época de Sousândrade. Ele incluiu dois estudos nesse trabalho. Intitulou o primeiro “O Guesa: Reaproximação ao Problema da Épica”. O segundo foi denominado “Sousândrade e a Epopéia do Segundo Reinado”. Como bem assinalado por Jomar Moraes, presidente da Academia, na orelha do livro, o professor tem uma valiosa contribuição a oferecer aos estudos sousandradinos. Afinal de contas, sua tese de doutorado em literatura latino-americana, apresentada à Universidade de Illinois, em Urbana-Champaign, nos Estados Unidos, tratava exatamente da obra do poeta maranhense, tendo como título O Guesa de Sousândrade e o Canto General de Pablo Neruda. O segundo estudo foi extraído dessa tese. O primeiro já havia sido publicado em O périplo e o porto, obra do professor publicada em 1992, pela Editora da Universidade Federal do Maranhão – Edufma.
A fortuna crítica de Sousândrade foi, durante muito tempo, quase inexistente. Durante pouco mais de sessenta anos depois de sua morte, o poeta descansou obscuro, de uma atribulada vida. Havia silêncio acerca de sua obra, ou avaliações dando-o como menor e confuso. Em 1964, porém, os irmãos Campos, Augusto e Haroldo, publicaram uma monumental antologia crítica de sua poesia, a Re Visão de Sousândrade, que, em terceira edição, saiu neste ano, pela editora Perspectiva. Esse trabalho foi considerado definitivo por muitos especialistas em literatura. Graças a ele, o poeta pôde ser reavaliado e considerado em sua correta dimensão. Não se pode esquecer, no entanto, que a redescoberta deve-se em parte, também, mas não na mesma dimensão dos irmãos Campos, a Fausto Cunha, em artigo pioneiro de 1954.
 Tendo iniciado sua produção como um poeta romântico, ainda que com dicção muito própria, com Harpas Selvagens, em 1857, Sousândrade passou a ser reconhecido como um precursor do modernismo e antecipador de formas que somente mais tarde viriam a ser usadas pelos modernistas. Sua principal obra é O Guesa, publicado em livro, em Nova York, em 1888.
Em 1890, foi presidente da Intendência Municipal de São Luís e professor de grego no Liceu Maranhense. Idealizou a bandeira do Maranhão e foi presidente da comissão de preparação do projeto da constituição republicana do Estado.
Justas são as homenagens ao grande poeta e homem de ação maranhense, no centenário de sua morte.

22 de setembro de 2002

O craque gojoba

Jornal O Estado do Maranhão
Pergunta-me um leitor a razão de eu, tendo algumas vezes escrito sobre futebol, especialmente durante a última Copa do Mundo, vencida pela quinta vez pelo Brasil, nunca ter feito uma única e escassa referência ao futebol maranhense. Paro, penso e chego a uma conclusão. Não tendo nada de positivo para dele dizer, preferi calar. Tinha optado por não me manifestar sobre uma situação de completa decadência futebolística, como a que se observa em nosso Estado. Mas, devo dizer também, que esse silêncio foi, em certo grau, inconsciente, como agora percebo.
Sei, todos bem sabem, da impossibilidade de exigir-se de nosso futebol desempenho comparável ao dos Estados mais ricos. Seria fora de propósito tomarmos como referência São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e outros Estados do Sul e Sudeste. A diferença, em termos, principalmente, de nível de renda, é grande. Tira-nos qualquer possibilidade de competir com eles, com chances mínimas de sucesso. A questão é, em grande parte, econômica. Não existe um mercado local com poder de compra capaz de sustentar receitas mínimas para os clubes. Essa é a razão da escassez de recursos para investimento por parte dos times maranhenses.
No entanto, se – e esse é um grande se – houvesse uma mentalidade empresarial na direção desses clubes, voltada para a formação de jovens jogadores maranhenses, com a exclusão de interesses estranhos ao futebol, seríamos mais competitivos. Mesmo com toda a desorganização implantada pela CBF nos campeonatos regionais e no nacional. Poderíamos, obter melhores resultados nas competições no Norte e Nordeste, como já obtivemos antes, quando elas eram mais freqüentes.
Mas, já que falei em passado e em futebol, não posso deixar de referir um encontro que tive na última semana. Vou ao aniversário de meu cunhado Marcelino Machado, de idade incerta. De repente, o passado surge à minha frente, na entrada da casa. Reconheci logo um grande jogador maranhense de outros tempos, que até então eu não conhecia pessoalmente, José Raimundo Silva Moraes, Gojoba.
Eu o vi jogar muitas vezes pelo Moto Clube e pelo Sampaio Correia, no fim dos anos sessenta e em parte dos setenta, no Estádio Nhozinho Santos. Atuou também no Ceará. Em Pernambuco, fez parte da seleção do Estado. Em um jogo contra a Alemanha, em 1965, o gol da vitória da equipe pernambucana, por um a zero, foi dele. A diretoria do América, na época um time grande, presente ao jogo, junto com o time, que treinava em Recife, tentou adquirir seu passe. Os dirigentes do Sport Club do Recife, excitados pela excelente atuação de Gojoba na partida, exigiram um preço exorbitante, impedindo sua transferência para o futebol carioca. Pretendido por clubes de Portugal, teve sua venda vetada pelo técnico do Esport, Rubens Minelli. Este alegava ser ele imprescindível ao time. Numa situação de mais oportunidades, como a de hoje, ele não teria sido impedido de brilhar fora do Brasil.
Gojoba jogava na posição de volante. Com ótimo porte atlético, que conserva até hoje, defendia e atacava com igual eficiência e vigor. Isto não significava maus-tratos à bola, à base de pontapés. Não. Ele dava tratos à bola, antes de tratar bem a bola, roubada dos adversários e conduzida até o campo do oponente, ou lançada aos companheiros, com elegância e precisão. Ele, é exato afirmar, deslizava no campo, de uma área à outra, em um vai-e-vem incessante. Uma espécie de Gilberto Silva, da Seleção do Brasil atualmente.
Esse craque, prata de casa, é prova de que, para a obtenção de bons resultados, não se precisam importar caminhões de jogadores, que no fim da temporada vão embora, sem nada deixar, a não ser dívidas. É evidência de que nenhuma lei da genética ou da geografia impede o nascimento de bons jogadores em solo maranhense.
Em sua época, não era incomum os times daqui destacarem-se nos torneios e nos jogos amistosos regionais. Hoje se vêem quase só derrotas e vexames. Com cabeças-de-bagre e pernas-de-pau de fora.

15 de setembro de 2002

Retórica insustentável

Jornal O Estado do Maranhão
Em outubro de 2001, escrevi um artigo, aqui em O Estado do Maranhão, falando sobre o conceito de desenvolvimento sustentável e sua gradativa aceitação, por parte dos governos, no mundo todo. Eu terminei dizendo que haveria um encontro neste ano de 2002, em Johannesburg, África do Sul, a fim de avaliar o progresso alcançado na sua incorporação às políticas públicas, nos dez anos entre 1992 e 2002, e marcar a realização da Rio-92. “Será a hora de os países apresentarem os resultados de suas políticas para a implantação do desenvolvimento sustentável. Era para valer ou tratava-se de retórica, apenas?”. Agora, com o término do encontro, chamado Rio +10, realizado entre os dias 26 de agosto e 4 de setembro, julgamentos de seus resultados estão sendo feitos e continuarão a sê-lo durante algum tempo.
É preciso levar-se em conta, nas avaliações, que o conceito de desenvolvimento sustentável incluiu a idéia de diminuição da pobreza e das desigualdades econômica e social. Contém, também, a visão de preservação do ambiente e seus recursos naturais. As principais áreas em discussão no encontro, escolhidas com base na aceitação dessas noções, foram energia, agricultura, biodiversidade, água e ajuda ao desenvolvimento.
A maioria dos participantes considerou a Rio +10 decepcionante. Ela foi imaginada justamente como uma ocasião de implementação de planos de ação destinados a tornar efetivos os compromissos com a sustentabilidade assumidos na Rio-92. Resultou ser, lamentavelmente, um encontro em busca da salvação da reunião de 1992.
Os Estados Unidos adotaram a posição, bastante clara a todos, inclusive europeus, de andar em marcha a ré nos seus comprometimentos anteriores. Como é de amplo conhecimento, os americanos são os maiores consumidores mundiais de petróleo e seus derivados. Isso os torna os maiores emissores de gases, como o CO2, causadores da retenção de calor na atmosfera, resultando no efeito de estufa, que eleva a temperatura da Terra, com as conhecidas conseqüências negativas.
No entanto, em aliança com alguns países árabes, grandes produtores de petróleo, os americanos derrotaram o Brasil e a União Européia, que haviam feito uma proposta. Esta estabelecia que, da energia consumida no mundo, 10% fossem produzidos a partir de fontes renováveis. Concordou-se, somente, em, “com senso de urgência, aumentar substancialmente a fatia mundial de energias renováveis”, sem o estabelecimento, porém, de prazos e metas específicas, e em “instar os países que ainda não o fizeram a ratificar o Protocolo de Kyoto”, que trata da redução da emissão de gases-estufa.
O compromisso de destinação de 0,7% do Produto Interno Bruto – PIB dos países ricos, como ajuda ao desenvolvimento, acordado na Rio-92, foi ratificado, embora, na realidade, entre 1992 e 2002 a percentagem tenha caído até 0,22%. Mas, os Estados Unidos colocaram ressalvas, tornado-o, na prática, algo sem chance de ser cumprido.
Em apenas duas áreas, das cinco em discussão na Rio +10, foi possível estabelecer compromissos com metas e prazos. Uma área foi a de saneamento, com o objetivo de reduzir à metade, até 2015, o número de pessoas sem acesso a água potável e esgotos; a outra foi a de biodiversidade, de diminuir a perda de espécies até 2004, mas sem quantificação de metas, e, também, de restaurar os estoques de peixe a níveis sustentáveis até 2015, onde for possível.
De positivo, na Rio +10, houve o anúncio da decisão da Rússia, China e Canadá, de ratificarem o Protocolo de Kyoto, levando o governo americano a uma situação de isolamento internacional, pela recusa em seguir o exemplo dos outros.
Diante das difíceis circunstâncias, muitos comemoram. Apesar do boicote americano, dizem, pelo menos os princípios do desenvolvimento sustentável, aceitos na Rio-92, não foram rejeitados. Essa, a ironia dessa história. Quantos anos mais serão necessários para substituir-se a retórica vazia e insustentável da sustentabilidade por ações concretas?

8 de setembro de 2002

Bandeira Tribuzi

Jornal O Estado do Maranhão
Há dias vinha eu pensando sobre os vinte e cinco anos da morte, completados hoje, do grande poeta Bandeira Tribuzi. De repente, uma coincidência, outro nome dado às tramas do destino, interpôs-se entre mim e algumas recordações da época em que nós dois fomos companheiros de trabalho no Banco de Desenvolvimento do Maranhão.
Essa trama, atirou-me às mãos, aparentemente por acaso, mas, verdadeiramente, por desígnio anterior à luz e ao tempo, pelas mãos de Fernando Silva, justamente uma fotografia do pai de Tribuzi, Joaquim Pinheiro Ferreira Gomes, de 1946, tirada em São Martinho de Gândara, freguesia do Concelho de Oliveira de Azemeis. Naquele tempo, o poeta estudava em Portugal. Seu pai, durante muitos anos um importante comerciante português em São Luís, da firma Pinheiro Gomes & Cia, aparece na foto ladeado pelo pai de Fernando, Adelino Silva, por Antônio Borges, outro comerciante português do Maranhão, e por um cunhado deste, João Baptista Neves de Oliveira.
O caso é este. José Primeiro Borges, filho de Antônio Borges, fora seminarista em Portugal, na mesma época de Tribuzi, chegando a tomar o hábito, a que renunciou depois. Veio morar, posteriormente, no Rio de Janeiro. Há mais de quarenta anos ele não vinha ao Maranhão nem via Fernando, que estivera presente à celebração de sua primeira missa, em Travassô. Quando os dois se encontraram há poucos dias em São Luís, pela primeira vez depois desse tempo todo, Fernando mostrou a ele a fotografia e, dias depois, a mim, ao contar-me essa história.
Fiquei olhando e vi, no pai de Tribuzi, o filho, fisicamente. O mesmo rosto retangular e fino, e até os mesmos óculos de aros delgados com lentes redondas, semelhantes aos de uma foto de Tribuzi, que Maria, sua mulher, mostrou-me uma vez. Faziam lembrar Fernando Pessoa.
Aquele senhor de aspecto severo, que nunca vi em vida, mas tão vivo na foto, em seu terno de listas verticais claras e chapéu de feltro, com um jornal na mão, O Imparcial, não sabia, naquela hora, que seu filho rejeitaria a missão de servo da igreja de seus maiores, para aceitar outra missão, dupla, de servo e mestre da arte poética.
Na sua volta de Portugal, Tribuzi revelou-se de grande importância na introdução do Modernismo no Maranhão, vinte e cinco anos após a Semana de Arte Moderna de São Paulo, uma indicação do nosso atraso cultural. Tornou-se, pela força de seu talento e de suas idéias, uma referência cultural em sua querida cidade, para a qual compôs uma canção tornada seu hino. Quando, pois, anunciaram sua admissão, em 1970, no Banco de Desenvolvimento, instalado em um prédio na esquina da rua do Sol com a de Santaninha, a excitação foi grande entre todos nós, jovens técnicos de lá, crentes em poder mudar facilmente o mundo, os homens e tudo.
Dizia-se antigamente que ninguém é herói na visão de seu criado, para significar que a intimidade pode destruir a imagem das pessoas, feita à distância. Se isso for verdade, não o será sempre. Neste caso, a convivência diária mais aumentou nossa admiração por Bandeira Tribuzi. Contra nossos ímpetos ainda juvenis, de revolta pelas mazelas de nossa sociedade, era ele quem, com a voz da experiência de quem havia sido preso e perseguido pela ditadura, chamava-nos ao bom senso e à realidade.
Foi ele quem me orientou na elaboração de uma exposição sobre a implantação de um pólo siderúrgico em São Luís, submetida ao CNPq, em 1977, como requisito para obtenção de uma bolsa que me permitiu obter o grau de mestre e doutor em economia na Universidade de Notre Dame, em Indiana, Estados Unidos.
Dele, ficou-me a imagem de um homem bom, cordial, generoso, leal e, como eu, apaixonado por futebol. Com ele, convivi quase diariamente até sua internação no Hospital Português, de onde sairia morto, como resultado de um ataque cardíaco. Ainda hoje, guardo com carinho um exemplar de seu último livro, Breve memorial do longo tempo, que ele me deu com a dedicatória da qual muito me orgulho: “A Lino que é irmão”.

1 de setembro de 2002

As valois

Jornal O Estado do Maranhão
A gente pegava o ônibus a pouca distância de nossa casa, defronte do Senai, perto do Cine Monte Castelo, no bairro do mesmo nome. Íamos em nossos uniformes com as letras ST, iniciais de Santa Terezinha, escola das irmãs Valois, bordadas no bolso esquerdo da camisa branca de mangas curtas. O percurso, de pouco mais de mil metros, até lá, na esquina da avenida Getúlio Vargas com uma rua que leva ao bairro do Matadouro, hoje Liberdade, parecia uma longa jornada.
Os ônibus, quase sempre cheios, principalmente de comerciários rumo ao centro da cidade, e de pacatos funcionários públicos, eram lentos, velhos e maltratados. Eram, porém, os únicos coletivos da pequena cidade, em que poucas pessoas possuíam automóvel, coisa de gente rica. Os cobradores permaneciam em um incessante ir e voltar da parte dianteira à traseira do ônibus, sacudindo moedas enfileiradas na palma da mão voltada para cima, em um tilintar até hoje em meus ouvidos, chamando os passageiros ao pagamento da passagem.
Esses veículos davam a impressão de querer, a qualquer hora, parar, revoltados com a lotação excessiva, mas inevitável por causa do pequeno tamanho da frota, e com a eterna falta de manutenção. Não nos importávamos com isso, nem com o calor e a lentidão com que se arrastavam, fumaçando e engulhando. Mas nós os sentíamos como queridos e íntimos companheiros. Bem ou mal, faziam o favor de transportar-nos diariamente. Deles, conhecíamos os humores, as manias e o temperamento. Suas reações em nada nos surpreendiam. Se paravam, é porque tinham bons motivos. Essa a nossa resignada filosofia de usuários sem opção.
Os nomes eram bem conhecidos. “O Primor já passou”, comentávamos na parada. “O Mimoso deu prego no Canto da Fabril”. A notícia viera pelo ônibus chamado Viação Santo Antônio dirigido pelo Zé Maria. Seu Domingos, tão velho quanto a Arca de Noé, na nossa medida de criança, mas que não devia passar dos quarenta e cinco anos, era o motorista do Gigante da Ilha.
Saltávamos quase à porta da escola. Meu pai, Carlos Saturnino Moreira, seguia, sem descer do ônibus, para o seu comércio de representação e conta própria, na firma Azevedo & Moreira, na Praia Grande. Creio ter sido seu Azevedo, o outro sócio dessa firma, a primeira pessoa em quem ouvi um sotaque lusitano, que ele nunca perdeu nem atenuou nas suas muitas décadas de produtiva vida no Brasil.
Na pequena escola, então instalada em duas salas da residência das irmãs Valois, funcionavam duas ou três turmas pela manhã e outras tantas à tarde. Lá, encontrávamos nossas professoras Edite, Luísa e Maria Helena, todas da família Valois, e mais dona Elsa.
Essas educadoras sempre deram um dos melhores exemplos de autênticas católicas que, sem nenhuma carolice, praticavam, e ainda praticam, serenamente, no seu dia a dia, os preceitos de sua fé, por meio de um trabalho educativo, incomum virtude e raro traço de caráter em nossa sociedade de extremo individualismo.
Para elas, vale o lema “façam o que eu digo e façam o que eu faço, também”. Essa era a razão, penso, de nos sentirmos tão bem em suas salas de aula. Ensinaram letras e números a várias gerações de maranhenses, de todas as classes sociais, e demonstraram diuturnamente que mais força tem o exemplo do que a mera pregação. Educar tem sido, para elas, sobretudo, um apostolado.
Cada uma tinha seu próprio estilo. Maria Helena era alegre e descontraída, Luísa, mais disciplinadora. A mim, contudo, sempre pareceu ser Edite, hoje com mais de noventa anos, a síntese possível da família. Tinha, e tem, uma elegância natural, evocatória de uma dama no seu chá das cinco num jardim inglês. Suave, mas com uma firmeza evidente, principalmente, no timbre metálico de sua voz, Edite Valois ensinava com uma pedagogia, nela instintiva, mais tarde chamada de moderna: compreensiva, próxima do aluno, mas com a medida exata de limites que uma personalidade em formação precisa ter. A ela e suas irmãs, muito devem várias gerações de maranhenses.

18 de agosto de 2002

Rio + 10

Jornal O Estado do Maranhão
A Cúpula Mundial para o Desenvolvimento Sustentável, conhecida como Rio +10, numa referência à Rio-92, será realizada entre 26 de agosto e 4 de setembro, em Johannesburg, África do Sul. Seus organizadores divulgaram recentemente um estudo das Nações Unidas, “Desafio Global, Oportunidades Globais”, que servirá de base às discussões do encontro. Algumas das conclusões são bastante pessimistas.
Caso o atual padrão de desenvolvimento seja mantido por mais vinte e cinco anos, o uso de combustíveis fósseis e a emissão de gases geradores do efeito-estufa aumentarão consideravelmente. Quase três bilhões e meio de pessoas sofrerão inevitavelmente de falta de água e as florestas continuarão a desaparecer rapidamente. Segundo, ainda, o estudo, a poluição atmosférica causa, atualmente, a morte de três milhões de pessoas. Outras trezentas milhões sofrem de malária, um bilhão não têm acesso a água potável e dois bilhões a saneamento básico. Em outro estudo, a Organização Mundial de Saúde estimou que a má qualidade ambiental contribui atualmente com 25% de todas as doenças passíveis de prevenção no mundo.
Nitin Desai, o secretário-geral da cúpula, disse que “esses problemas têm de ser enfrentados agora. Temos de mudar o atual modelo de desenvolvimento ou correr o risco de ameaçar ainda mais a segurança da espécie humana no mundo todo”. O secretário-geral da Onu, Kofi Annan, destacou a necessidade de dar-se atenção a cinco áreas, nos debates: recursos hídricos e saneamento, energia, saúde, agricultura e, finalmente, biodiversidade e proteção de ecossistemas.
Todavia, nem todas as notícias são ruins. A taxa de crescimento da população mundial vem diminuindo sistematicamente, o que torna possível que as famílias, assim diminuídas em número de filhos, invistam mais na educação, nutrição e saúde de suas crianças. A pobreza está declinando na Ásia e na América Latina, assim como a fome, lentamente, em todas as regiões, exceto na África. Na Ásia, o padrão de vida está, gradativamente, alcançando o dos países desenvolvidos.
Estarão presentes em Johannesburg cerca de sessenta mil pessoas, entre elas mais de cem presidentes e primeiros-ministros. Os resultados esperados incluem uma declaração política dos líderes, comprometendo seus governos e sociedades a tomar medidas efetivas para implementar o desenvolvimento sustentável; um plano de ação que sirva de guia à efetivação dos compromissos assumidos; e uma compilação não-negociada de novos compromissos e iniciativas tomados em parceria para ações específicas, no âmbito regional e no nacional (as chamadas Iniciativas Tipo II).
Na opinião deIgnacy Sachs, diretor-honorário do Centro de Pesquisas sobre o Brasil Contemporâneo, da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris, o Brasil pode liderar os países do Sul na adoção desse modelo de desenvolvimento. “Do ponto de vista conceitual, houve um avanço significativo, mas estamos a um longo caminho da prática do Desenvolvimento Sustentável”.
Os resultados do Programa Piloto de Proteção às Florestas Tropicais do Brasil – PPG7, que, em seu segmento do Maranhão, tive a oportunidade de coordenar, na qualidade de Secretário do Meio Ambiente do Estado, serão apresentados no encontro. Eles irão mostrar um exemplo de um esforço de adoção do uso sustentável de recursos naturais em combinação com o combate à pobreza.
É lamentável, porém, que, embora incorporado ao discurso oficial de quase todos os países, a partir da Rio-92, o conceito de desenvolvimento sustentável ainda não tenha sido, até agora, incorporado a suas políticas públicas. Na maioria das vezes, compõe apenas uma retórica vazia de conteúdo e de resultados práticos.  Aliás, de tanto ser usada abusivamente, a palavra sustentável, aqui no Brasil, pelo menos, tornou-se um chavão que se ouve a propósito de tudo e de nada. Tudo é sustentável no discurso e nada é na prática.
Um dos maiores desafios para a humanidade, hoje, é o de tornar essa idéia uma realidade.

11 de agosto de 2002

Promessas

Jornal O Estado do Maranhão
As eleições presidenciais sempre foram, e sempre serão, um prato cheio de promessas delirantes, inconsistentes e danosas à economia. Essa patologia acentua-se com a aproximação da data da votação. Quanto mais próxima esta, mais besteiras os candidatos produzem, com pose e ares de sabichões. Tem para qualquer gosto. Você vê necessidade de o país criar dez milhões de empregos? Algum pretendente ao poder promete ajoelhado. Os juros são altos? Nada de preocupação. Um decreto eliminará o problema que, por maldade e má fé, o governo atual não quis resolver. O salário é baixo, impedindo a compra da geladeira, do fogão, do automóvel, da televisão, dos brinquedos dos filhos, dos Cds de Xitãozinho e Xororó? Uma lei, aumentando o salário de todos, levará a classe operária ao paraíso, no primeiro dia de governo. Tudo muito fácil.
As aposentadorias são baixas, o funcionalismo público não teve acréscimos nos vencimentos? Vamos aumentá-los, para torná-los “dignos” e “justos”. A Previdência vai quebrar com o aumento? Não importa agora, depois se vê o resultado. Precisamos, com urgência, fazer crescer as exportações, diminuir os déficits comercial e em conta corrente de nossa economia? É só falar grosso com o pessoal lá de fora, agir como macho, para melhorar a situação. Os gringos irão tremer ante a coragem do nosso futuro presidente.
É dessa forma que os salvadores da pátria se comportam diante dos eleitores em época de eleição, na esperança de chegar ao poder e dirigir-nos durante quatro ou oito anos. Os candidatos propõem qualquer coisa, sem explicar consistentemente de onde virão os recursos para fazer tudo ao mesmo tempo. O eleitor brasileiro já está cansado desse tipo de promessa sem sentido.
Ninguém quer saber mais de planos de palanque que, de qualquer maneira, podem ser feitos facilmente pelas equipes de campanha. As pessoas querem saber como eles serão implementados. Planos servem, ou deveriam servir, para estabelecer prioridades e mostrar como os recursos necessários a sua realização serão obtidos, de onde virá o dinheiro, não para prometer o melhor dos mundos. O que se vê, infelizmente, são propostas que, simultaneamente, diminuem receitas, aumentam despesas e acenam com equilíbrio orçamentário. É uma mágica que a aritmética, enquanto dois mais dois continuar a ser quatro, não poderá fazer.
Mas o pior dessas fantásticas histórias eleitoreiras não está na parte econômica, mas na político-institucional. Circula por aí a fantasia de parlamentarizar o presidencialismo. Expressa dessa maneira, a idéia parece até inofensiva, tem um certo charme acadêmico e lembra alguma coisa vagamente moderna. Ou, melhor dizendo, modernosa.
Pela inusitada proposta, o presidente da República e o Congresso Nacional poderiam convocar eleições presidenciais e legislativas antecipadas, no âmbito do respectivo Poder, no caso de um impasse entre o Executivo e o Legislativo impedir a adoção de medidas de interesse da sociedade. Ora, o mandato fixo do presidente é uma das características fundamentais do presidencialismo e a dissolução do Parlamento um princípio básico do parlamentarismo.
Essa proposição híbrida, conjugada com o desejo de uso indiscriminado do recurso constitucional do plebiscito, com base em uma pretensa liderança “forte” do chefe do Executivo, configura uma confrontação antecipada com um Congresso supostamente refratário a mudanças indispensáveis ao país. É uma ameaça às instituições democráticas brasileiras. Um bonapartismo semelhante já foi tentado antes pelos presidentes Jânio e Collor, com as conseqüências calamitosas conhecidas de todos.
O acordo assinado pelo governo brasileiro, esta semana, com o FMI, que garantiu um empréstimo de trinta bilhões de dólares ao Brasil, aumenta a responsabilidade dos candidatos na manutenção da estabilidade econômica. Vamos esperar que esse compromisso da nação chame-os à realidade e contribua para pôr um fim nesse festival de promessas vazias e desestabilizadoras.

2 de agosto de 2002

Bingo

Jornal O Estado do Maranhão
Eu vi Bingo na televisão. O pobre caminhava surpreso, deprimido, alheio ao ambiente, indeciso, sem rumo, com o olhar perdido no horizonte, cheio de revolta contra as injustiças da vida. Não caminhava propriamente. O coitado era conduzido por um amigo que, de vez em quando, acariciava-lhe a cabeça e enxugava-lhe, furtivamente, incontroláveis lágrimas, saídas dos olhos melancólicos de Bingo.
Ele fora preso. Até aquele momento, não sabia por quê. O que acontecera? Qual o seu crime? Assaltara, roubara, matara, atentara contra a economia ou a segurança nacional, comandara um ataque especulativo contra a moeda nacional, dera um golpe no mercado financeiro, sumira com o dinheiro de fundos de pensão, renegara a pátria? Falara mal do presidente, do papa, dos evangélicos, dos militares, dos políticos? Envolvera-se em um incidente diplomático? Nada disso. Mordera um vizinho. Mordera? Sim, mordera.
Ele irritara-se com algo desagradável nos modos do vizinho e, usando um meio de expressão próprio de um cachorro, já que ele era um, dera-lhe uma mordida em parte do corpo que não sei qual seja. Com certeza, em um local deveras sensível, a julgar pela reação do ofendido. Este o denunciara a uma autoridade da cidade. Imediatamente, Bingo fora levado preso ao Centro de Controle de Zoonozes local, sem qualquer investigação aprofundada, sem nenhuma oportunidade de defesa.
Cachorro também é humano, como se sabe desde quando o Ministro do Trabalho do governo Collor, Rogério Magri, anunciou, indignado, essa descoberta. Falava de sua cadela, Orca, vista a bordo de um carro oficial, rumo a uma clínica veterinária. Não surpreende, portanto, a humana reação de Bingo, de irritação, e, depois, de tristeza e revolta, pela surpreendente prisão.
Quem nunca teve um vizinho chato, inconveniente ou mal-educado? Em Brasília, eu tive um. Baterista de um grupo de roque pauleira, ele levava toda a banda para ensaiar no apartamento ao lado do meu, nos fins de semana. Dava vontade de morder o sujeito. Por que Bingo não poderia sentir o mesmo impulso?
Mas, afinal, era ele um feroz pit bull, um enorme fila brasileiro, um apavorante rottweiler de filme de terror? Tinha uma história de viver mordendo todo mundo, só por maldade, para falsificar sua condição de humano e passar por espírito de porco, ou melhor, de cachorro? Não, de jeito nenhum. Considerando sua humanidade, até se poderia classificá-lo como um cara pacato, ordeiro e cumpridor dos deveres.
Em verdade, ele é uma mistura de poodle com pequinês. Por aí, imaginam-se logo suas limitações físicas. Não poderia ser um desordeiro, ainda que desejasse. Ninguém se sentiria intimidado pelos dentes dele. Vai ver, ele quis tão-só dar um susto no chato, não morder de verdade. Uma compreensível reação, um impulso momentâneo, mas incontrolável.
Era de ver os prantos e a desolação de sua dona. Digo dona e digo mal. Não seria adequado, ou politicamente correto, classificar um dos parceiros como tal em uma relação entre humanos. Melhor seria chamá-la de amiga, orientadora, companheira de Bingo, ou de qualquer outra coisa. Dona, nunca. Com muito senso de justiça e justificada revolta, ela perguntava por que não se prendiam esses bandidos que vivem à solta por aí ameaçando todo mundo, cometendo todo tipo de crime, comportando-se como autênticos cachorros doidos, prontos para atacar a qualquer momento.
Agora está lá, Bingo, no Centro, em perigo de contaminação por doenças de outros cachorros, quer dizer, de outros humanos, que viviam ao deus-dará pelas ruas sujas da cidade. Pior seria, contudo, ter o destino do cachorro de Bill Clinton. Depois de ter vivido muitos momentos de glória, como o primeiro-cachorro do país mais poderoso do mundo, o infeliz foi atropelado e morto ingloriamente, como um reles vira-lata.
Bingo, pelo menos, tem a esperança de que a autoridade se compadeça de sua triste situação e o faça retornar, vivo e alegre, para perto da sua humana amiga, mas para longe do seu desumano vizinho.

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