Em torno da casa

Jornal O Estado do Maranhão 
Toda minha infância e adolescência, eu as vivi em um bangalô no Monte Castelo, em frente ao Senai, na avenida Getúlio Vargas, parte do Caminho Grande dos tempos antigos, de onde somente saí para constituir minha própria família. Tenho lembranças muito tênues da mudança para lá, no início dos anos cinqüenta, vindos nós da rua Cândido Ribeiro, talvez em 1952. Tento deduzir o ano a partir das histórias ouvidas depois dos mais velhos em bate-papos familiares. Quase todos os que poderiam, hoje, dar-me alguma informação já retornaram ao pó, têm a memória enfraquecida pelo tempo e pela vida ou também não se lembram bem.
Uma daquelas narrativas era sobre a ocasião de nossa ida para o Areial, como era chamado o bairro, classificado de fim de mundo por muita gente. Falava, pelo que eu podia perceber das conversas, da morte de meu avô materno, Luís de Melo Raposo, poucos dias antes do nascimento, em dezembro de 1949, de meu irmão Luís Carlos. Ele devia ter uns três anos quando nos mudamos. Era o terceiro degrau, eu o segundo, na escadinha de irmãos que iria aumentar todos os anos até completar sete batentes.
A outra história era sobre o quinto degrau, José Ricardo. Eu ouvia dizerem ser ele o primeiro a vir à luz naquelas lonjuras, em 1953, e ser Cursino, o quarto na escada, o último a nascer na casa do centro da cidade, em dezembro de 1951. Portanto, o ano mais provável da mudança é 1952 mesmo.
Algumas vezes, eu bem pequeno, fui com meus pais visitar a casa, durante a construção. Eu olhava aquilo tudo e pensava, não tão consciente como digo agora, se seria possível morar naquela confusão de barro e cimento. Digo ter visto as obras, mas, será que as vi de verdade? De tão imprecisa a lembrança, não posso dizer com certeza. Nunca podemos estar totalmente seguros de muitas de nossas recordações. Elas podem ser apenas construções ou reconstruções feitas a partir de coisas ouvidas após aquilo que achamos ter vivido. De uma certa forma, podem ser, tão-somente, um pedaço das recordações coletivas da família, incorporadas à imaginação individual de tão repetidas.
Certeza tenho, sim, da avenida sem asfalto, com a poeira vermelha acumulando-se por todos os lugares da casa, nas camas, nos móveis, nas mesas, em tudo e em todos, e do bonde elétrico se arrastando em direção do Anil, com seu som agudo e penetrante nascido do atrito do ferro das rodas contra o dos trilhos. Andava quase com a mesma lentidão das carroças puxadas a burro que circulavam o dia inteiro pelo bairro todo, conduzidas pelos carroceiros de chicotes de couro às mãos. Nunca pude saber se o estalo seco vinha do golpe vibrado no ar ou no próprio lombo dos animais.
Sobre aquelas balizas metálicas, caminhos de ferro estendidos por boa parte da acanhada cidade, iríamos, poucos anos depois, colocar lâmpadas velhas para serem trituradas à passagem do veículo pesado e vagaroso. O pó de vidro resultante seria a matéria prima do cerol que usávamos nas linhas dos nossos papagaios, nas batalhas aéreas de fins de semana. Mas, na maioria das vezes, era mesmo em pilões de ferro que preparávamos o material dessa emocionante guerra feita de linha, papel, talas de bambu e sangue dos dedos feridos pela linha cortante.
Os gritos de “lá vai” anunciavam a vitória nas lanceadas. Era quando um dos papagaios, vibrante e desafiador até certo momento, no seguinte como que se abandonava à derrota, ao sentir cortada pela linha de um outro a que o sustentava, indo cair lá longe, depois de uma lenta, leve e longa dança. Os meninos das ruas, com suas compridas varas, corriam para apanhá-lo, ressuscitá-lo e novamente colocá-lo soberano nas alturas, por breve tempo.
Sempre que me ocorre pensar naquela casa e em fatos de minha infância passados em torno dela, lembro-me destes versos de um poema do escritor Luiz Alfredo Raposo, meu primo, dedicado à minha mãe nos seus oitenta anos: “Com suas saias godês e aquele sorriso americano,/ela era princesa e castelã da Casa do Areial.”

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