1 de setembro de 2002

As valois

Jornal O Estado do Maranhão
A gente pegava o ônibus a pouca distância de nossa casa, defronte do Senai, perto do Cine Monte Castelo, no bairro do mesmo nome. Íamos em nossos uniformes com as letras ST, iniciais de Santa Terezinha, escola das irmãs Valois, bordadas no bolso esquerdo da camisa branca de mangas curtas. O percurso, de pouco mais de mil metros, até lá, na esquina da avenida Getúlio Vargas com uma rua que leva ao bairro do Matadouro, hoje Liberdade, parecia uma longa jornada.
Os ônibus, quase sempre cheios, principalmente de comerciários rumo ao centro da cidade, e de pacatos funcionários públicos, eram lentos, velhos e maltratados. Eram, porém, os únicos coletivos da pequena cidade, em que poucas pessoas possuíam automóvel, coisa de gente rica. Os cobradores permaneciam em um incessante ir e voltar da parte dianteira à traseira do ônibus, sacudindo moedas enfileiradas na palma da mão voltada para cima, em um tilintar até hoje em meus ouvidos, chamando os passageiros ao pagamento da passagem.
Esses veículos davam a impressão de querer, a qualquer hora, parar, revoltados com a lotação excessiva, mas inevitável por causa do pequeno tamanho da frota, e com a eterna falta de manutenção. Não nos importávamos com isso, nem com o calor e a lentidão com que se arrastavam, fumaçando e engulhando. Mas nós os sentíamos como queridos e íntimos companheiros. Bem ou mal, faziam o favor de transportar-nos diariamente. Deles, conhecíamos os humores, as manias e o temperamento. Suas reações em nada nos surpreendiam. Se paravam, é porque tinham bons motivos. Essa a nossa resignada filosofia de usuários sem opção.
Os nomes eram bem conhecidos. “O Primor já passou”, comentávamos na parada. “O Mimoso deu prego no Canto da Fabril”. A notícia viera pelo ônibus chamado Viação Santo Antônio dirigido pelo Zé Maria. Seu Domingos, tão velho quanto a Arca de Noé, na nossa medida de criança, mas que não devia passar dos quarenta e cinco anos, era o motorista do Gigante da Ilha.
Saltávamos quase à porta da escola. Meu pai, Carlos Saturnino Moreira, seguia, sem descer do ônibus, para o seu comércio de representação e conta própria, na firma Azevedo & Moreira, na Praia Grande. Creio ter sido seu Azevedo, o outro sócio dessa firma, a primeira pessoa em quem ouvi um sotaque lusitano, que ele nunca perdeu nem atenuou nas suas muitas décadas de produtiva vida no Brasil.
Na pequena escola, então instalada em duas salas da residência das irmãs Valois, funcionavam duas ou três turmas pela manhã e outras tantas à tarde. Lá, encontrávamos nossas professoras Edite, Luísa e Maria Helena, todas da família Valois, e mais dona Elsa.
Essas educadoras sempre deram um dos melhores exemplos de autênticas católicas que, sem nenhuma carolice, praticavam, e ainda praticam, serenamente, no seu dia a dia, os preceitos de sua fé, por meio de um trabalho educativo, incomum virtude e raro traço de caráter em nossa sociedade de extremo individualismo.
Para elas, vale o lema “façam o que eu digo e façam o que eu faço, também”. Essa era a razão, penso, de nos sentirmos tão bem em suas salas de aula. Ensinaram letras e números a várias gerações de maranhenses, de todas as classes sociais, e demonstraram diuturnamente que mais força tem o exemplo do que a mera pregação. Educar tem sido, para elas, sobretudo, um apostolado.
Cada uma tinha seu próprio estilo. Maria Helena era alegre e descontraída, Luísa, mais disciplinadora. A mim, contudo, sempre pareceu ser Edite, hoje com mais de noventa anos, a síntese possível da família. Tinha, e tem, uma elegância natural, evocatória de uma dama no seu chá das cinco num jardim inglês. Suave, mas com uma firmeza evidente, principalmente, no timbre metálico de sua voz, Edite Valois ensinava com uma pedagogia, nela instintiva, mais tarde chamada de moderna: compreensiva, próxima do aluno, mas com a medida exata de limites que uma personalidade em formação precisa ter. A ela e suas irmãs, muito devem várias gerações de maranhenses.

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