5 de outubro de 2013

Abaixo, transcrevo texto do advogado e jornalista Carlos Nina, sobre a tortura que os moradores da Lagoa da Jansen vêm sofrendo com a poluição sonora, ameaça à segurança das pessoas, etc.



Carlos Nina*


Em julho deste ano escrevi e publiquei, sob o título “Método Ludovico para os condenados da Lagoa”, artigo no qual fiz uma comparação entre o famoso método criado por Anthony Burgess em seu livro Laranja mecânica (1962) e a tortura que rotineiramente é imposta, oficial, oficiosa e impunemente,  contra os moradores da Lagoa da Jansen, em São Luís.
A tortura recomeçou com a divulgação e a armação da parafernália que vai, mais uma vez, atormentar os residentes daquela área neste final de semana.
Como disse naquele artigo (disponível no site www.consensual.com.br), a Lagoa da Jansen, área de lazer construída pela Governadora Roseana Sarney para desfrute prazeroso dos que a usam para passear, caminhar, correr, andar de bicicleta, levar crianças para brincar, foi transformada num verdadeiro castigo para os moradores da região, condenados sem direito à defesa e sem ninguém a socorrê-los.
São pessoas simples, estudantes e trabalhadores que precisam acordar cedo para cumprir suas responsabilidades; bebês, crianças, idosos e pessoas enfermas que precisam de sossego; famílias que gostariam de desfrutar noites e fins-de-semana tranquilos no aconchego de seus lares, mas que foram condenadas a conviver com o barulho ensurdecedor de shows, transmitidos por alto-falantes potentes para serem ouvidos o mais alto e longe possível, alcançando todos os condenados do local.
Os bons prazeres domésticos também foram proibidos com a tortura imposta aos condenados da Lagoa, que ficam impedidos de ouvir boa música, fazer uma leitura qualquer ou reunir amigos em sua residência para uma conversa descontraída.
Os que se beneficiam dessa exploração abusiva, que só usam a Lagoa para estimular o uso indevido daquela área pública só sentirão os efeitos dessa tortura se dependerem de alguém, um médico, por exemplo, que precisar de uma boa noite de sono para, pela manhã, manter os olhos abertos, mas tal não conseguir porque passou a noite sob tortura sonora e amanheceu com o barulho dentro do cérebro, escorrendo pelos ouvidos e poros longamente intoxicados por excesso de decibéis.
O desvirtuamento da finalidade da área da Lagoa já é fato consumado. Ali estão reiterada, emblemática e acintosamente expressas variadas e impunes violações às normas de proteção ao meio ambiente, de poluição sonora, de respeito à dignidade da pessoa humana, à paz e a segurança pública. E não adianta recorrer a ninguém. Se pedido de providência e denúncia resolvesse o problema, há muito a paz e o respeito já teriam sido ali restabelecidos.
Mas só os condenados da Lagoa sabem o quanto constrange e dói esse castigo. Além do estresse causado pela tortura que é não deixar a pessoa dormir, quer seja bebê, criança, jovem, adulto ou idoso, há o agravamento da indignação pelo abuso, pela impunidade, pela afronta, pelo desrespeito, com a absoluta omissão e conivência das autoridades que deveriam coibir, reprimir e punir essas violações.
Apesar da angústia que a notícia causa, da surdez que o barulho produz e da revolta pela impotência diante do abuso, tento refletir sobre os danos que são causados ao fetos das grávidas sujeitas a essa situação; os reflexos no humor e na disposição de profissionais da saúde, que precisam levantar cedo e estar descansados para fazer cirurgias; ou de professores que devem transmitir valores de cidadania a seus alunos; o temor dos residentes com a segurança no retorno de suas longas jornadas de trabalho; ou o desassossego de simples aposentados que gostariam de ter justas e merecidas boas noites de sono.
Para agravar a situação, até a opção dos moradores de mudar da área foi prejudicada, porque casas e apartamentos do local ficaram desvalorizados. A Lagoa, que seria um fator de valorização urbana, inclusive por dispor de concha acústica com área para shows públicos e gratuitos, no porte apropriado para a preservação do ambiente e respeitar o direito dos ali residentes, tem contribuído para desvalorizar os imóveis da região. Afinal, quem quer, conscientemente, adquirir um imóvel numa área onde são realizados com frequência shows com equipamentos de som ensurdecedores? Quem quer morar numa área onde, constantemente, as ruas são entulhadas de veículos e não raro até as entradas das garagens são obstruídas porque aquele local não foi projetado para esse tipo de evento? Quem quer morar num bairro onde os riscos de violência se agravam por conta da baderna que se sucede a partir desses abusos, atravessando a madrugada? Quem quer morar numa área onde o Poder Público, por omissão ou aprovação, trabalha contra seus moradores?
Os residentes do local, apesar de indignados, não reagem coletivamente. Esperam de órgãos públicos omissos que cumpram sua finalidade. Desencantados, resignados, impotentes, sabem que por trás desses eventos está o próprio (abuso do) Poder. Por isso não reagem a essa omissão, fermentada pela simbiose de Poder intimidando e corrompendo Poder. Fazer o quê?
Se boa parte dos condenados da Lagoa conhecer a luta que Lino Moreira travou e trava contra abuso semelhante que atazanava a vida de quem mora na Península da Ponta d’Areia, também na Ilha do Amor (agora, do Barulho), pode estimular-se para, também, reagir, em defesa de seus direitos. Ele não desistiu um minuto sequer, nem foi tentado a isso pelas advertências de que não adiantaria lutar, pelo desinteresse de algumas das autoridades às quais recorreu e, também, por e-mails ameaçadores. Seguiu a velha máxima de Rudolf von Hiering, para quem o direito não assiste aos que dormem. No caso da Lagoa, nem aos que ficam acordados contra a própria vontade.
Alguns acreditam que é a sina da Ilha. Baseiam-se na história de uma grande serpente que cresce ao redor de São Luís, e que, quando a cabeça encontrar a cauda, afundará a Ilha. Mas isso é lenda, inspiração vazada na obra de Josué Montello e na música de Cesar Teixeira, dentre outros. Mas a Serpente da Lagoa da Jansen está lá, real, com a cabeça e parte do corpo à mostra. Tem até seus pontos de observação, que às vezes disfarça com folhagens, como provam as fotos que ilustram este texto. É a essa cobra que outros atribuem o sofrimento a que foram condenados os moradores da Lagoa da Jansen, em São Luís. Talvez até seja a essa cobra que Zeca Baleiro se refira quando diz em seus versos que quer ver a serpente acordar “pra nunca mais a cidade dormir”. A cidade dorme. Só quem não dorme é quem mora na Lagoa ou em outros lugares da cidade onde esse mesmo desrespeito, essa mesma omissão e conivência ocorre.
A julgar pela maneira como andam as coisas, é melhor acreditar na lenda, pois, quem sabe, se a Ilha afundar para recomeçar, as pessoas aprendam a respeitar seus semelhantes. Quem sabe, também, assim, particulares deixem de enriquecer ilegitimamente em detrimento da comunidade e do bem comum.

* Advogado e jornalista.


A área privatizada e os apartamentos privilegiados
pela proximidade do local de emissão dos decibéis

Área privatizada e, à direita, a inútil concha acústica

A Serpente da Lagoa vista do outro lado

A Serpente da Lagoa aproximando-se
de seus Buracos de Observação

A Serpente da Lagoa seguindo na direção
de seus Buracos de Observação

A Serpente da Lagoa passando atrás da placa da Lagoa

Buraco de Observação P 1 da Serpente

Buraco de Observação P 2 da Serpente,
com direito a saudável aroma de esgoto

Close do Buraco de Observação P 2 da Serpente,
onde ela palitava os dentes

Disfarce da Serpente da Lagoa para ver o carnaval do
Buraco de Observação P 2

Outro ângulo do disfarce usado pela Serpente no carnaval

Buraco de Observação P 2 da Serpente da Lagoa,
onde a dita continua palitando os dentes

Close do eficiente órgão estatal de proteção ambiental

Close do órgão estatal de proteção ambiental e,
ao fundo, a área privatizada objeto da proteção estatal

Placa comprobatória da eficiência do
órgão estatal de proteção ambiental

Residências, à esquerda, e órgão estatal
de proteção ambiental à direita

Mensagem de esperança dos motradores de que
Mário Meirelles possa mudar a história da Lagoa

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