22 de fevereiro de 2004

Carnaval Malhado

Jornal O Estado do Maranhão 
Uma das novidades do Carnaval deste ano em nossa cidade é o Rei Momo malhado. Não sei quem teve a idéia, mas sei que não foi, vamos dizer, feliz nem baseada em sólidos princípios democráticos.
Explico-me. De saída, haverá com certeza uma confusão semântica com respeito ao nome. Algumas pessoas – por certo, apenas as menos familiarizadas com essa terminologia um tanto pesada – poderão pensar em malhado no sentido de portador de malhas ou manchas, como as de um bezerro malhado, por exemplo; ou no de surra com malho ou relho. Poderiam, nesta última hipótese, achar que o rei foi malhado por alguma turma invejosa da majestade dele.
Seria este um tipo de malhação em tudo diferente daquela das academias. No caso do malho, os malhadores batem nos adversários, não com pesos, mas a pezadas, sem piedade. No outro, os também malhadores “batem peso”, segundo antiga expressão fora de moda hoje em dia. Ou, o que é a mesma coisa, comem ferro e, às vezes, acabam por se ferrar, na tentativa de ostentar músculos avantajados. Alguns terminam se bombando, mas ficam bombardeados com doenças das quais dificilmente podem sarar. Tornam-se então os não-sarados.
Isso, porém, não é nada em comparação com a natureza discriminatória dessa tentativa de mudança numa das mais caras tradições de nossa terra. Se refletirmos bem, iremos ver que engordar é uma das coisas mais fáceis da vida, como bem sabe quem já tentou algum dia emagrecer, isto é, todo mundo. O peso do nosso corpo, contrariando os efeitos da lei da gravidade sobre os demais corpos, tende sempre a subir, nunca a descer. Ora, se é assim, haverá sempre um grande número de pessoas capazes de cumprir o primeiro pré-requisito para o acesso ao título de Rei Momo tradicional: ser gordo. Portanto, a oportunidade está democraticamente aberta a quase todos os cidadãos. Qualquer pessoa é um projeto de Momo.
Com o rei malhado a história é diferente. Quantas pessoas, entre nossos milhões de patrícios, especialmente depois de uma certa idade, poderão alcançar o cobiçado, contudo inalcançável, na maioria das ocasiões, status de malhado? Pouquíssimas, comparadas com o número daquelas com o potencial momesco clássico. Estamos, assim, diante de uma redução da oportunidade do cidadão comum de chegar à realeza e, por conseguinte, de um cerceamento do espírito democrático da nação brasileira. Coisa, suspeito, de alguma conspiração da globalização e do capitalismo selvagem que se comprazem em impor-nos valores estranhos à nossa rica cultura.
Essas considerações, somente, já poderiam servir de argumento contra essa novidade infeliz. Há mais, no entanto.
Vamos analisar uma situação hipotética, mas possível de acontecer, em que alguém, com ambição ao título de Rei Momo, tenha seguido todas as recomendações dos especialistas, com o objetivo de chegar ao Carnaval com os quilos e a silhueta ideais para derrotar a concorrência na busca pela coroa que, por sinal, dá o direito ao rei de desfilar na companhia de belas princesas.
O sujeito passou um ano inteiro arriscando as coronárias, o coração, o estômago, o sistema circulatório e seu próprio vigor masculino. Sacrificou sua saúde abusando de churrascos, pizzas, refrigerantes, cervejas, doces e sorvetes. Tudo com a esperança de botar a mão no título do campeonato, para usar uma metáfora tão ao gosto de Lula, outro que jamais poderia chegar lá, pois não se conhece nenhum presidente Momo.
Aí, chega alguém e lhe dá a surpreendente notícia. Agora o cara tem de ser malhado se quiser desfrutar a honra máxima do Carnaval. Todo o sacrifício foi em vão? De nada adiantaram a férrea disciplina e o cuidadoso preparo a fim de exercer o mando nos três dias de folia? Poucas surpresas serão tão frustrantes quanto esse verdadeiro golpe de Estado. Onde ficam os direitos adquiridos? Só porque usa um cinto de boxeador, o rei malhado tem o direito de usurpar um trono?
Desse jeito, nosso Carnaval, em vez de molhado pelas chuvas, como todo ano, vai acabar malhado daqui em diante.

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