28 de janeiro de 2007

PAC

Jornal O Estado do Maranhão

O governo federal acaba de lançar o Plano de Aceleração do Crescimento – PAC. Não houve tempo ainda para uma análise detalhada de todas as possíveis implicações das medidas anunciadas como “o maior programa estratégico de investimentos do Brasil nas últimas quatro décadas”, segundo o documento oficial do Ministério da Fazenda, mas, é possível verificar que do total de R$ 503,9 bilhões destinados à infraestrutura, nas áreas de transporte, energia, saneamento, habitação e recursos hídricos, apenas R$ 67,8 bilhões ou 13,5% virão do próprio governo, recursos já consignados no orçamento de 2007 da União, ou que o seriam nos dos anos seguintes, não representando, portanto, algo adicional, ou seja, acima do que seria orçado de qualquer maneira, mesmo sem plano nenhum. Os cálculos levaram em consideração investimentos das estatais e do setor privado para alcançar os R$ 436,1 bilhões restantes. Ora, a não ser que o governo decida intervir em suas empresas a fim de obrigá-las a investir nessas áreas, o que não coincidiria necessariamente com o interesse delas e de seus acionistas e não garantiria o melhor rendimento de seu capital, o que poderia afetar seus valor de mercado, nada garante a coincidência das intenções delas com as do PAC. Se não houver dirigismo desse tipo, então estarão fazendo engenharia de obra feita e tudo se torna uma grande jogada de marketing. Foram anunciados dispositivos complementares de estímulo ao crédito e ao financiamento, de melhora do ambiente de investimento, de desoneração e administração tributária, bem como mudanças fiscais de longo prazo, no pressuposto otimista – todos os governos são otimistas – de que sua adoção irá criar no empresariado o entusiasmo que o levará a elevar seus investimentos. No entanto, uma das variáveis de maior influência sobre estes, a taxa de juros, que é um dos preços básicos da economia, junto com salários e taxa de câmbio, está fora do controle do Executivo – como aliás é certo, como o é a autonomia de fato do Banco Central –, que pode apenas, como o faz no PAC, apostar na redução da taxa básica de juro no futuro. Ademais, como se sabe, a execução orçamentária no Brasil é inflexível devido ao excesso de vinculações setoriais, à dificuldade de redução da despesa com pessoal, e a outras causas não tratadas no PAC. Tal característica torna quase impossível a redução dos gastos públicos correntes, levando a uma política fiscal impotente do lado da despesa, à desconfiança pelo setor privado na capacidade do governo em compensar eventual redução da receita resultante do PAC e à correta manutenção pelo Banco de uma política monetária apertada. Entre as medidas de estímulo ao crédito e financiamento, uma revela-se muito difícil de ser implementada. É a utilização de recursos do FGTS na criação de um fundo a ser aplicado em infraestrutura, que necessita de aprovação pelo Congresso, de concordância política de entidades representativas dos trabalhadores e, quase com certeza, de decisões judiciais. Em resumo, o PAC está organizado em dois grandes blocos. Um, de investimentos públicos em infra-estrutura e o outro de incentivo ao investimento privado. Seu sucesso está condicionado, em grande parte, à resposta do empresariado. Se ela for limitada, o fracasso será inevitável. Terá chance de sucesso no caso contrário. Preocupante é a pressão pouco sutil expressa pelo ministro da Fazenda, Guido Mantega, no lançamento do plano, sobre o Banco Central, para redução das taxas de juro a qualquer preço. A prevalecer esse golpe não só o PAC estará ameaçado mas a própria estabilidade econômica do país. Num momento em que José Dirceu, sempre influente no governo, clama, como agora, pela demissão do presidente do BC, Henrique Meireles, ele não pode ser afastado.

21 de janeiro de 2007

Perda irreparável

Jornal O Estado do Maranhão

A vida pode nos golpear justamente quando tudo parece em seu lugar e nada indica a iminência de uma grande dor. O infortúnio costuma acontecer nos momentos em que nem nos lembramos da possibilidade de tudo de repente mudar, se tornar o contrário do que era e nos atingir com a força que só a indiferença do acaso, do destino, da fatalidade – ou o nome que se queira dar a isso –, pelo sofrimento das pessoas boas, é capaz de infligir. Surpresa dolorosa como essa aconteceu há poucos dias com a família de Raimundo Nonato Viveiros, o Viveiros de nossas brincadeiras de infância no Monte Castelo, bairro onde crescemos juntos e iniciamos uma amizade de criança que se prolongou nos adultos de hoje e já dura mais de 40 anos. Jogávamos bola, empinávamos papagaios, íamos ao cinema, a festinhas, sem imaginar que a existência pudesse reservar algum dia a um de nós sofrimentos algum, mesmo pequeno, pois outras não eram nossas preocupações senão as de estudar, apenas para não sermos postos de castigo por dona Nora, a mãe dele, ou por dona Maria, a minha, tomar nossas cervejas no bar do Nezinho nos fins de semana, ao crescermos mais um pouco, e criar coragem de conquistar uma namorada, coisa não tão fácil como agora, quando os jovens muitas vezes esperam com justificadas razões pela iniciativa das jovens. Não havia muita diferença entre nossas casas. Estar numa era quase a mesma coisa que estar na outra. Viveiros é um admirável exemplo do poder da determinação de vencer, porém nunca acreditou ser necessário “derrotar” os colegas para alcançar sucesso na carreira, crença algo incomum nos dias de hoje, em que, muitas vezes, a competição sem regras é a regra da competição pelo status social e econômico. Tornou-se, à força de muito estudo e disciplina um médico conceituado, um cirurgião admirado por seus pares e pela sociedade. Seus pacientes são unânimes em atestar a maneira humanitária com que ele os trata e a empatia dele com eles, essa capacidade rara e, até, indispensável ao exercício da medicina, de colocar-se no lugar de pessoas com males por vezes incuráveis, a fim de tentar entender o sofrimento alheio e sentir como e com o outro. Teresa, sua esposa, também da área médica, é enfermeira formada pela Universidade Federal do Maranhão, e, de igual forma como o marido, exemplo de dedicação, bastando, para comprovar minha afirmação, ver seu trabalho no Hospital Nina Rodrigues. Lá, vem dando, com bom humor e gentileza todos seus, e com grande capacidade de trabalho, importante contribuição à humanização da assistência médica e, mais importante, ao combate do preconceito contra os necessitados de tratamento naquele hospital. Eles, Viveiros e Teresa, durante mais de 30 anos construíram uma família feliz, com Delane, Breno e Ludimila, cada um desses três filhos seguindo suas inclinações com apoio dos pais e se expressando diante do mundo à sua própria maneira. Tudo parecia perfeito, mas a fatalidade traiçoeira, sem aviso, sem o mais leve sopro de advertência, sem dar sequer um pequeno sinal do perigo, resolveu cometer a injustiça de levar Breno, ele que gostava de aviões, num desastre de automóvel. Deu-se, vimos todos, uma violação da ordem natural das coisas, pela qual os pais morrem antes dos filhos, de modo a estes poderem chorar a morte daqueles e depois dar seguimento à vida. A perda é irreparável e não será esquecida. Como disse Viveiros em sua chegada da Austrália, onde se encontrava por ocasião do acidente, pedaços dele e de Teresa foram arrancados. O tempo, no entanto, que atenua a tristeza, e também a alegria, e tudo, irá aos poucos enfraquecendo a dor e fortalecendo as incontáveis boas lembranças de Breno. Assim, ele não irá embora jamais. Antes, permanecerá com seus pais, irmãs e amigos.

14 de janeiro de 2007

Davi

Jornal O Estado do Maranhão

Bem se poderia chamá-lo de Vida porque Davi a tem em seu nome, como também nos olhos castanhos, brilhantes, sérios e ao mesmo tempo risonhos e alertas. Ele, curioso, observa tudo à esquerda e à direita, olha para cima e para baixo, e sem que se lhe ouça perguntar nada, pedir explicação de coisa alguma, já faz com o olhar todas as perguntas eternas dos humanos. Depois, quando pede algo, esboça um sorriso ou choro – a distância entre um e outro é pequena –, e agita os braços e mãos pequenas, com um gesto rápido e muito dele que o acompanhará ao longo de uma existência longa e feliz. Quando o vi pela primeira vez há quase três meses pensei nas incontáveis gerações que o trouxeram até aqui com o fim de nos iluminar. As vindouras, do mesmo modo, levarão os filhos, netos e bisnetos dele mais adiante, até o apagar dos tempos. Lembrei então, mirando o passado, de meus pais, avós e bisavós, especialmente do meu bisavô português que não conheci, mas quase o sentindo presente, Manuel Domingues dos Santos, casado com aquela mulher pequenina e frágil, Rita Gaspar, em quem eu percebi o bebê que ela fora noventa e nove anos antes daquele dia em que a vi pela primeira e única vez, poucos dias antes de sua morte, ambos de meados do século XIX, vindos, ele, de terras distantes e, ela, de mais perto, da Baixada Maranhense, a fim de acrescentar sua contribuição à felicidade e a alegria de termos Davi. Olhando depois na outra direção, vi seus filhos, meus bisnetos. Eu poderei, quem sabe, conhecê-los ainda, antes do grande retorno. Eles poderão chegar ao século XXII, pois se vive cada vez mais, embora nem sempre com mais felicidade. Isso não apenas é contemplar quatro séculos, do XIX ao XXII. É viver quatro séculos. Deve ser essa e só essa a significação de se dizer que a vida não acaba com a morte individual. Por isso, eu jamais diria, como o português Saramago na crônica Retratos de Antepassados: “Não me incomoda saber que para lá da terceira geração reinam as trevas completas”. Não, para mim elas não reinam nem reinarão. Esse fluxo de vida, essa corrente infinita que dá a sensação de eternidade, me permite ver claramente que estou tão perto da multidão dos que vieram quanto dos que virão, não havendo, assim, maneira de as trevas prevalecerem. Eu vejo isso claramente, como se estivessem aqui e agora todos os meus antecessores na aventura de viver e todos os meus infinitos sucessores. As gerações estarão sempre ligadas umas às outras, não importando a que distância no tempo estejam, quantas tenham existido entre uma e outra ou quantas sejam necessárias para despertar em nós a idéia da continuidade da nossa espécie, da permanência do ser humano. O mito de Adão é, por assim dizer, um não-mito, mas não história, e é de fato sábia a longa enumeração de seus descendentes feita no Velho Testamento, livro da milenar sabedoria judaica. Pois agora chegou o tempo de Davi, filho de meu filho, que traz com ele renovação de vida, como se fosse a mesma vida de todos os nossos antepassados, mas ainda assim diferente, única, insubstituível e preciosa. O mundo o olha e ele olha com firmeza o mundo onde lutará contra gigantes filisteus, a exemplo do outro, o rei, e os derrotará, com uma funda na mão e um sorriso nos lábios, e abaterá todos os dragões da maldade, e afastará sem vacilar um minuto sequer todas as ameaças em seu caminho. Construirá uma nação, ainda como o outro, e em todas as circunstâncias será um soberano justo e sábio. Escreverá livros – uma biblioteca inteira –, e nada o afastará da retidão, da justiça, da verdade e da sabedoria. Em tudo ele terá alegrias e nenhuma tristeza, amará e será amado. Estar com Davi é sentir o seu fascínio e esta verdade incontestável: Davi dá vida. Da vida, Davi é dádiva. Ave, Davi.

7 de janeiro de 2007

Más obras

Jornal O Estado do Maranhão

Esta semana, os Estados Unidos, através de prepostos do governo do Iraque, enforcaram Saddam Hussein, ex-ditador do país, considerado com justiça um dos mais sanguinários governantes numa região do mundo conhecida por sua violência. Alguns, ou muitos, dirão que ele teve o castigo merecido, estando o assunto encerrado. Não sei se ele merecia a punição cruel e irreversível, mas o assunto não se esgota com a morte dele. Sou contra a pena de morte, por razões que não vou discutir agora. Entre os países desenvolvidos, ela só existe nos Estados Unidos, sendo o Texas, estado de Bush, pródigo no seu uso, inclusive durante seu período como governador. Todos os outros países condenaram a execução, menos a Inglaterra. Sua forma degradante igualou na barbárie os executores ao executado a quem fizeram o favor de abreviar o sofrimento, bem maior caso ele fosse punido com a prisão perpétua. No vídeo que circula na internet, mostrando o ato bárbaro do começo ao fim, pode-se ver, apesar da má qualidade das imagens, e ouvir, mesmo sem entender árabe, um clima tribal de ódio e vingança, presente desde o início do arremedo de processo montado por policiais e juízes treinados pelo governo americano. O tribunal criado às pressas já havia dado o veredito fatal desde antes do início dos procedimentos formais, impondo a justiça dos vencedores. Aliás, esse foi sempre um dos objetivos declarados do cristão renovado George Bush: fazer o que seu pai com muita prudência não quis fazer quando o Iraque invadiu o Kuait e foi expulso de lá pelos americanos. Ficou-me a impressão de serem aquelas cenas grotescas apenas a vingança de uma tribo, a dos xiitas, dominantes no governo iraquiano, contra outra, a dos sunitas, minoria religiosa daquele país, a que pertencia Saddam. Não foi a aplicação impessoal e imparcial da justiça, mas, sim, do primitivo e bíblico “olho por olho, dente por dente”. Em meio a insultos a um homem que estava a segundos da morte e a um bate-boca entre os carrascos e o condenado sem possibilidade de defender-se naquele momento, a não ser verbalmente, como ele o fez, os carrascos xiitas, em nome do mesmo Alá dos sunitas, de repente o calaram, acionando o mecanismo de enforcamento e dançaram de alegria em torno do morto, ainda o insultando e continuando a filmar e fotografar o espetáculo macabro. Ninguém coloca em dúvida os crimes de Saddam nem questiona a justeza de ele ser punido. Não é essa o ponto em debate. Se fosse, teríamos de discutir o destino de outros ditadores de aliados dos Estados Unidos, como o do Paquistão. O que se pedia era o devido processo legal, não um arremedo de julgamento, e o cumprimento da sentença, qualquer uma, menos a de morte, com respeito. Os americanos apressaram-se em eximir-se de responsabilidade pelo crime. No entanto, eles tiveram sob custódia, durante três anos, o ditador e o entregaram sem demora a seus inimigos, amigos dos gringos, poucos minutos antes da execução, sabendo que daí nada decente poderia resultar. Ao agir dessa maneira medieval, em desrespeito a leis internacionais proibitivas da pena de morte, eles chegaram perto de aumentar a estatura, se já não fizeram, de um homem pequeno do ponto de vista moral, brutal e desapiedado, que não irá pagar por todos os seus crimes contra seu próprio povo. Não quiseram sujar as mãos e transferiram a tarefa a nativos ansiosos por cumpri-la. Será surpresa ver-se a imagem de alguém que enfrentou a morte com altivez – até assassinos como ele têm lampejos de dignidade – e não se dobrou, sobrepor-se à de um homem frio e impiedoso? Agora poderá nascer um mártir. Ele assombrará Bush daqui por diante, como um fantasma. Esse não poderá ser enforcado. Dessas más obras, de Bush e de Saddam, também se faz história e se fazem mitos.

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