20 de janeiro de 2002

Pesadelo

Jornal O Estado do Maranhão
Não tem sido raro eu ter pesadelos, ultimamente. Eles não têm dia nem hora para me atormentar, pois aparecem quando bem querem. Às vezes, passo horas sem poder dormir, por medo do sofrimento. Mas, quando consigo dormir, acordo sobressaltado. É a tortura de ficar acordado, estando morto de sono, ou de ter de enfrentar o martírio do pesadelo, querendo ficar acordado. Que fazer? Tento ficar acordado, mas durmo. Tento dormir, mas acordo. Não durmo nem fico acordado. Durma-se com um barulho desses! Ou melhor, não se durma mesmo com o silêncio da madrugada!
Por favor, não chamem nenhum analista, desses de avaliar a cuca das pessoas. Nem o próprio Freud resolveria meu problema. Ele é insolúvel. A fonte dos meus males, ele não a reconheceria, de tão moderna. Imagino o sofrimento de milhões de pessoas pelo mundo afora, que padecem do mesmo tormento. Tudo tenho feito a fim de evitar o estresse, eliminar o problema, ter paz. Sem resultado positivo nenhum. Chás quase não têm efeito, comprimidos muito menos, exercícios pouco ajudam. É o lixo a me perseguir. Ele chega pelo correio eletrônico da internet.
A batalha é diária. É só abrir a caixa postal para encontrar tudo o que não pedi. Os assuntos variam de sexo a promessas de salvação da alma. De maneiras milagrosas de ganhar dinheiro a pedidos para filantropias. De apelos para a salvação do urubu da cabeça vermelha de uma região perdida da África à defesa da matança do excesso de cangurus na Austrália.
Pense em qualquer assunto, caro leitor, o mais esdrúxulo que possa imaginar, o mais bizarro. Garanto já ter recebido um lixo eletrônico a respeito dele. Todo mundo com endereço eletrônico já recebeu. A coisa é nova porque a internet é nova. Mas já anda a merecer uma tese sociológica acadêmica, daquelas bem complicadas. Ou não seria a psiquiatria que melhor analisaria o fenômeno? ou a psicanálise?
Uma das coisas mais ridículas dessas mensagens é um esclarecimento apresentado por algumas, em péssimas traduções das originadas nos Estados Unidos. Avisam que o envio não solicitado é feito “com a complacência” da seção 1, parágrafo (a) (2) do decreto S. 1618, em seu título terceiro, aprovado por um encontro qualquer de internautas. A tal seção diria que, se for disponibilizada uma forma de retirar o destinatário da lista do remetente na mensagem, ela não será considerada spam. Este é o termo inglês utilizado no jargão da internet para caracterizar ofertas comerciais através do correio eletrônico, sem o consentimento do recebedor.
. Que diabo é “com a complacência” neste caso? Significa o sujeito cometer uma idiotice dessa e a legislação ficar olhando, complacente? Que língua é essa? É inglês com palavras do português. A expressão original é in compliance with, em cumprimento do, ou de acordo com o, na língua de gente alfabetizada. Não é preciso saber inglês para ver que a expressão não tem pé nem cabeça. Basta saber ler português.
Digam se isso tudo não é de causar pesadelos. Eu estou ali, entre adormecido e acordado. De repente, vejo-me trabalhando no computador. Abro meu correio. Encontro tantos spams que eu teria de levar dias para baixar todas as mensagens, com suas ofertas malucas. O computador trava, infectado com os vírus de algumas delas. Vou perder o prazo do artigo semanal para o jornal. Não tem nenhum computador por perto. É assim o pesadelo. Aí acordo alarmado.
Há, também, a divulgação de histórias absurdas. Uma é a do homem dopado por uma bela loura, num motel. Ele teve um rim extraído e, quando acordou, encontrou no espelho uma mensagem escrita com batom mandando-o procurar um hospital. Ficção barata. Classe B.
Terei de ir, dentro de poucos dias, em viagem de negócios secretos, ao Afeganistão. Lá não vou ter acesso à internet. Não poderei livrar-me diariamente das milhares de mensagens indesejadas. Elas irão se acumular no meu correio nos quinze dias de ausência, para meu desespero. Quando eu voltar, meu pesadelo não será mais pesadelo. Será realidade.

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