21 de fevereiro de 2016

Sem demora

Jornal O Estado do Maranhão

          Importante, importantíssima, a decisão do Supremo Tribunal Federal – STF de admitir que as pessoas condenadas na segunda instância da Justiça comecem imediatamente a cumprir a pena de prisão, mesmo se possível recorrer aos tribunais superiores. Com o novo entendimento, substituto daquele que vigorava desde 2009, a impunidade, de triste fama no Direito Penal brasileiro, poderá diminuir muito, com a particularidade de atingir mais diretamente quem se beneficiava do entendimento anterior do STF: os réus com recursos financeiros suficientes para contratar caríssimas bancas de advogados, também capazes de utilizar infindáveis recursos a fim de manterem seus clientes à solta até, quem sabe, o tempo desse sentença irrevogável e imune a recursos e chicanas advocatícias e os enviasse de retorno ao pó, origem comum de todos nós, culpados ou inocentes. No Paraíso, ou não, poderiam dar explicações mais detalhadas acerca de suas virtudes e pecados terrenos. Prejudicados eram os sem-dinheiro, que, sem estoque suficiente do vil metal (afinal, o país está em crise e não sobra dinheiro nem para a classe média, aquela tão odiada por Marilena Chauí), ficavam logo presos, pois recursos jurídicos ou financeiros não tinham. Ou melhor, não tinham o primeiro por falta do segundo.


          Daqui por diante, a decisão de segunda instância dada por um tribunal estadual ou por um tribunal regional federal bastará ao fim de mandar os condenados à prisão de imediato. Invertem-se as coisas agora. Será do interesse destes deixar de protelar o andamento do processo. Preso, seu desejo será de andar depressa e de usar apenas os recursos que, verdadeiramente, lhes deem a esperança de deixar a prisão. Com acerto, disse o juiz Sérgio Moro: “A decisão do Supremo só merece elogios e reinsere o Brasil nos parâmetros sobre a matéria utilizados internacionalmente. A decisão fechou uma das janelas da impunidade no processo penal brasileiro”.


          Como esperado, no entanto, muitos advogados, bancas de advogados e a Ordem dos Advogados do Brasil, coerentemente, destaque-se, avaliaram a novidade como retrocesso no sistema. Falou-se, até, em ruptura da ordem constitucional. Mas, o fato evidente é que o entendimento anterior era enviesado contra os pobres. Não se fala tanto de dar igual acesso à justiça a abastados e despossuídos? Estariam os contrários ao novo procedimento dispostos a apoiar apropriada devastação da floresta de recursos judiciais ainda vigentes no Brasil, muitos deles com sentido meramente procrastinatório? Não queremos todos nós maior celeridade na assistência jurisdicional a todos, em condições de igualdade? Ou tudo é mera retórica enganadora?

          O ministro Teori Zavascki, um dos sete da maioria formada na apreciação da matéria, depois de argumentar que a possibilidade de recorrer em liberdade estimula os réus a utilizarem recursos até obterem a prescrição, resumiu com precisão: “Ao invés de constituir um instrumento de garantia da presunção de não culpabilidade do apenado, [os recursos] acabam representando um mecanismo inibidor da efetividade da jurisdição penal”.

15 de fevereiro de 2016

O Entregador das Manhãs

Luiz Alfredo Raposo

Economista. Bancário aposentado

Madrugador inveterado, hoje às quatro e meia da matina já estava eu na rede do terraço, dando um balanço das aflições com o Brasil, meu xodó de Grupo Escolar. De repente, pá, aquela pancadinha surda no verde do jardim. Era o pacote do jornal que acabara de aterrissar. Fato costumeiro das antemanhãs, dessa vez ele bateu diferente. Sim, senhor, a despeito de tudo, o jornaleiro não perdera o ânimo nem a condução: levantara antes do sol e saíra para a abençoada batalha do dia. Ele era o Brasil que eu estava procurando, vivo e válido apesar da ferida cruel da crise. Ah, que sacudidela cordial foi aquela! Em reação-homenagem, larguei de mão o macio da rede e vim direto batucar essas linhas.
O que mais assusta numa crise como a atual nem é a crise em si: é ver que o país corre o sério risco de estar em marcha batida para uma forma qualquer de moratória da dívida pública. Me explico quase sem tecnicalidades. No passado ano de 2015, dizem os números oficiais, a receita pública não foi sequer suficiente para pagar “a operação da máquina”. No jargão técnico, gerou-se um resultado primário ligeiramente negativo. Significa que foi preciso criar uma nova dívida para zerar o primário e pagar a conta de juros, que é despesa financeira, não operacional. Suposta uma taxa de juros média de 14% a.a., a dívida terá, então, crescido a uma taxa nominal um pouco acima de 14%. Segundo a mesma fonte, isso levou o volume da dívida bruta no final do ano a 65% do pib. Associado a esses números, apurou-se um déficit (nominal) de algo como 9% do pib de 2015. Nessa dinâmica alucinante (e este ano, piora, é batata), não demora muito, o mercado vai terminar convencido de que a dívida entrou em “bola de neve”. Ficou impagável. Será a sirene de alarme, e o gatilho de um tipo qualquer de moratória. Porquanto alguns atos reflexos fatalmente irão se produzir: ou o gesto discricionário do abatimento parcial do principal, da redução forçada da conta de juros, do alongamento compulsório dos prazos dos títulos; ou o calote puro e simples (somado ao avolumamento dos atrasos com fornecedores e prestadores de serviços, dos restos a pagar a juro zero!). Ou, mais insidioso e perverso, o placet das autoridades para um pulo da inflação (p. ex., para a casa dos 20% a.a.) com a consequente corrosão da parcela da dívida não indexada. Ora, sabemos nós, os mais velhos, com moratória (e com inflação) não se brinca. Dá numa moderna tragédia grega. Ou, se preferirem o realismo fantástico, em anos de solidão de romance latino-americano. Num grande sertão sem veredas... Nossos hermanos platinos que o digam, eles viveram isso, ultimamente.

Alarmismo, retrucará algum entendido oficial. As reservas externas são um ativo acima de US$ 300 bilhões e parte substancial da dívida virou créditos aos bancos públicos, a serem devolvidos ao Tesouro. E ainda há a possibilidade de repatriação de capitais nacionais, objeto de uma lei recente. Eu responderia a ele que essa conversa é antiga, e não impediu que a situação macroeconômica se deteriorasse e o país perdesse o adesivo de bom pagador de duas das três principais agências de rating. Das reservas um volume substancial (calculo que uns US$ 70 a 80 bilhões) corresponde a operações de hedge cambial feitas pelo Banco Central, que, a rigor, são dívida curta em moeda forte, e de renovação incerta. Ademais, pode-se dizer, sem errar de muito, que as reservas não foram “ganhas”, obtidas por superávits de balanço de pagamento (no qual somos cronicamente e historicamente deficitários). Resultaram, sim, da entrada de capitais externos. E boa parte deles são capitais de curto prazo, que, apesar de não constarem do balanço da autoridade monetária, constituem um passivo externo exigível a qualquer momento. E quem acredita a sério na repatriação de um volume significativo de recursos, num momento em que o país vive sob o signo da economia do medo? As reservas, as reservas estão aí para não serem usadas (para variarem homeopaticamente, dia a dia, um pouquinho para baixo, um pouquinho para cima). Como carta de seguro (caro!) contra a ameaça de algo ainda pior que uma crise fiscal: a crise cambial, inferno pelo qual já passamos e a que ninguém quer retornar. Não é outra a razão de nosso Fundo Soberano parecer piada perto do de outros países. Do da pequenina Noruega, por exemplo (oriundo de receitas com o petróleo do Mar do Norte). Ah, com relação a isso pelo menos, estou tranquilo: o governo, nem governo nenhum chegaria à insânia de mexer pra valer nas reservas, pensando em resolver desequilíbrios fiscais.

Com respeito aos créditos do Tesouro aos bancos públicos (R$ 500 bilhões nos últimos seis anos), é pagar para ver. Primeiro, a qualidade de parte da carteira. Os financiamentos externos (à exportação de serviços, corrigirá o servidor), parte substancial foi concedida a países aos quais ninguém vende fiado uma mariola. Não pagando eles, ficarão as empresas exportadoras, as empreiteiras, em maus lençóis. E como irão honrar seus compromissos com os bancos? Entregando seus ativos dados em garantia e fazendo dos bancos as maiores empreiteiras do universo? De resto, até aqui o governo tem se comportado, nesse particular, como o escorpião da fábula de Orwell que, em qualquer circunstância, não sabia fazer outra coisa senão ferroar. Depois das carradas de constatações do despropósito, da inanidade de tamanho volume de empréstimos, nesse começo de ano uma das novidades que o governo apresentou foi... mais financiamento dos bancos públicos!

Voltando à moratória: para fugir à maldição, o governo precisa agir rápido, no campo da despesa. Primeiro, para dar o exemplo, cortar na própria carne. Por exemplo, eliminar (e bastam simples decretos!) as dezenas de milhares de “cargos em comissão”, criados para dar entrada no serviço público sem concurso a cupinchas e aliados. Depois obter aprovação congressual para uma série de medidas saneadoras, que liberem o administrador público da pressão de gastar o que não pode, o que os recursos do erário não permitem. Cito apenas algumas:

-estabelecimento de tetos para algumas despesas “politizáveis”, como propaganda oficial e subvenções sociais;

-rebaixamento dos tetos das despesas com as casas legislativas estaduais e municipais estabelecidas pela LRF;

-eliminação das vinculações de despesas, ou melhor, dos pisos para despesas setoriais (com educação, saúde etc.). Remanesceriam só as vinculações constitucionalmente criadas (fundos de participação e regionais);

-eliminação das desonerações fiscais e previdenciárias criadas a partir de 2009 “para dar proteção a setores ameaçados pela concorrência externa”. A desvalorização cambial pós-eleição (só em 2015 foi de 50%) dá hoje proteção suficiente à economia em geral, como provam as contas externas mais recentes;

-eliminação gradativa dos subsídios creditícios concedidos através dos bancos oficiais com recursos do Tesouro Nacional. Basta que os bancos devolvam os recursos à medida que as amortizações forem sendo recebidas dos clientes. Dessa maneira, ao final eles voltarão a operar com suas fontes tradicionais;

-complementação da privatizações do setor elétrico, interrompidas quando da chegada do PT ao poder. Ultimamente, elas foram retomadas, mas em meio a tantas vacilações do governo e a tanta oposição dentro do PT, que é de temer pelo resultado;

-proposta de reforma previdenciária, que fixe uma idade mínima para a aposentadoria, a ser combinada com um mínimo de tempo de serviço. Não terá grande efeito imediato, mas vai mudar a direção do vento. Dará uma percepção diferente quanto aos rumos econômicos futuros do país.

Medidas assim ajudarão a devolver ao capital privado uma confiança que é vital para o que mais importa: tirar o país da crise, relançar a economia. A propósito, andar pelo Brasil hoje é como visitar uma área num pós-guerra: tudo escangalhado, obsoleto, em falta. Rodovias esburacadas ou no papel (cadê o Arco Norte, em Pernambuco?), ferrovias inoperantes, portos desaparelhados, hidrovias por abrir, áreas urbanas sem água e saneamento, escassez crítica de geração e distribuição de energia elétrica, obras públicas interrompidas (cadê a Transposição? E a Transnordestina?) etc., etc. Só que, olhando pelo avesso, vê-se aí a oportunidade de um gigantesco programa de infraestrutura. Seu efeito imediato será a alta de alguns p.p. na taxa de investimento e a consequente recuperação do dinamismo da economia; a prazo mais longo, a modernização: ganhos gerais de produtividade, redução do custo-Brasil etc. Ora, um programa como esse só se faz hoje com capital privado, ou seja, pelo regime de concessões. Até as tão faladas PPPs são dificilmente aplicáveis, já que um do Ps é a perna quebrada do “público”.

Ocorre que o capital, reza o adágio, é o bicho mais arisco da floresta. Não se empenha num negócio, sobretudo com o governo, a menos de acreditar que os contratos serão honrados sem mudar um iota. Uma condição para isso é que as finanças públicas estejam arrumadas. Todos sabem que governo em apuros de numerário age como qualquer punguista: mete a mão no bolso dos outros, sem cerimônia. A segunda condição é que ele, o capital, seja recebido com um sorriso. E não com o pé-atrás dos infectados com o vírus do anticapitalismo. Virus resistente, remanescente em muita gente boa da espécie “ex”: alguns ex-comunistas, alguns ex-de esquerda católica etc.

É pena que eu não entre em detalhes sobre a influência perniciosa desse vírus nos últimos anos. Devo ficar no foco da questão, de que o governo precisa agir rápido. Mas que governo? O governo atual revelou-se um mecânico especialista em quebrar. Plantou e adubou o desastre nacional presente. Para se reeleger por uma apertadíssima margem, a presidente-candidata mentiu deslavadamente. Tudo ia do bom para o melhor dos mundos, crise era intriga da oposição. E “nem que a vaca tussa” ela faria certas “ruindades”. Começou a fazer na semana seguinte. E a situação, foi-se ver, era mesmo tenebrosa. O resultado é que o governo já nasceu desmoralizado. Desculpem, mas dá até vontade de dizer: parecendo o reinado de um rei Luís que tenha perdido o senso e delegado tudo a uma Maria Antonieta sem graça e sem nobreza, de uma bulgaridade enorme. Ah, quando ela se for, o sentimento geral será de que já foi tarde. E nunca que aparecerá Burke nenhum para lhe tecer a coroa de uma elegia (I saw her...glittering like the morning-star...).

O Flamengo, dirigido hoje por um presidente-estadista, é uma nação com 40 milhões de torcedores. Os apoiadores que restaram a esse governo estão muito, mas muito aquém disso. São do tamanho de uma torcida de time da série C. E, seja dito em honra dos torcedores, sem um pingo do entusiasmo deles. O pior é que os ex-apoiadores viraram antiapoiadores, gente indignada, enganada ou prejudicada. Por isso, não tem esse governo força política para fazer nem propor nada. Muito menos algo na linha da agenda acima rascunhada. E 2015 é bem prova disso: começou mal, e que fez ele? O que ele fez foi deixar que a situação econômica ainda piorasse espantosamente. E, sitiado num palácio-prisão, num Alvorada-Versailles, não conseguiu mais botar o sapatinho na calçada, nem falar ao país sem que sua voz fosse abafada por enormes e espontâneos panelaços e businaços. É um morto-vivo. Um cristal partido.

A conclusão, a dramática e dolorosa conclusão a que eu chego é a de que, para cumprir a agenda acima, só se a caneta mudar de mãos. Só um governo novo, zero-quilômetro. Começar de novo, apesar de todo cansaço, como na canção-hino de Ivan Lins. Não dá para esperar, 2019 pertence à eternidade. O governo novo estreará com o precioso cacife inicial de um discurso: “vamos consertar o que os anos de petismo arrebentaram. Somos o síndico de um condomínio em ruínas e precisamos da participação (i.é, no mínimo, da tolerância) de todos os condôminos. Pois de um mutirão de salvação se trata”.

Mas que governo substituirá o atual? O que a Constituição estatuir, quanto a isso não há tergiversação possível. E o novo governo terá de atender, além da agenda esboçada, a uma enorme demanda por moralidade. A verdade é que, par un surcroît de malheur, para cúmulo do azar, além de toda imperícia e irresponsabilidade, além da mentira feito pira, roubou-se demais nos governos petistas. Diria um petista moderado, abusou-se desse direito... A roubalheira assumiu o caráter de escândalo bíblico, daqueles de escandalizar os pequeninos (e aos escandalosos Jesus prometeu, rubro de raiva, que trancaria a porta do reino do céu). O PT, partido de massas, promoveu, diria o amigo de uma certa filosofia, um salto qualitativo no roubo do dinheiro público. Abandonou o roubo artesanal e adotou o roubo em massa, de escala e métodos industriais. Os ladrões à moda antiga praticavam furtos ocasionais e roubavam milhões, em companhia de uns poucos comparsas. Mas “aparelhar” por anos a fio a Petrobrás e dela roubar R$ 40 bilhões não é trabalho de oficina. Nem se improvisa: pressupõe uma moderna organização, com liderança atuante e um batalhão de colaboradores, organograma, plano de cargos e funções, manual de rotinas etc., ao estilo de uma grande corporação. Nesse ponto pelo menos eles se revelaram modernos... Mas os jovens patriotas de Curitiba, procuradores, agentes da Polícia Federal, congregados em torno do juiz Sérgio Moro vêm desvendando, capítulo por capítulo, esse folhetim de horror. E o braço da Justiça vai caindo sobre os culpados. O povo aplaude cada gesto desses moços e, com isso, dá munição e alento à luta deles. E fica querendo para si uma coisa maior: não apenas um outro governo, que governe, mas um governo decente.

Indissociável do compromisso com a moralidade, é imperativo ao futuro governo vencer a tentação do populismo, essa zika política latino-americana. Corresponde isso a um compromisso salutar com o realismo. Com a verdade. Para atendê-lo, é preciso ter a coragem de bater-se de frente contra algumas ideias ligadas a uma certa mentalidade antipolítica que o populismo difundiu. Uma das verdades a serem gritadas dos telhados é que inexiste alternativa civilizada para a política. Outra, que nada se constrói em cima da ideia de que os políticos são todos uns salafrários (uma indignação assim, além de injusta, só fomenta o niilismo político). Ou de que política, só se fosse feita por gente imaculada (é a utopia de uma república angélica, levando ao mesmo cruzar de braços. Esperar que os anjos desçam do céu e se apresentem candidatos...). Cabe, sim, olhar a contraface do inevitável da política e pensar: política não é só para políticos. Nem pode ser um jogo jogado no vazio... A cidadania tem o sagrado direito de atuar, pela palavra e pela ação, nas ruas da cidade real ou virtual. Para que? Para atualizar as cláusulas do mandato que conferiu; para, à luz de suas necessidades, re-formular a seus representantes o que quer ver representado.

Cumpre ainda exorcizar o mal dos catões políticos, que é a demonização de todo e qualquer interesse particular. O interesse, como o ar atmosférico, está em todo lugar e é, na verdade, outro nome para o egoísmo. E o egoísmo, em si, nem vício é, já que mora em todo homem. O Criador o inventou para que cada um cuide melhor de si: corte delicadamente sua unha encravada, enquanto o vizinho bota no lugar certo o algodãozinho sobre um calo dolorido. O erro dos catões é despejar todos os interesses , todos os egoísmos no mesmo saco, igualando, assim, o do empresário industrial que deseja trens modernos e pontuais, para que, no horário exato, seus empregados, presentes e prestantes, possam dar partida nas máquinas; e o do coronel dos grotões, que, no íntimo, gosta quando o governo não instala o ambulatório médico, pois assim ele poderá fazer a um cliente necessitado o “favor” de levá-lo até a cidade para enfaixar o tornozelo. As sociedades mais avançadas alcançaram uma compreensão tal dessa distinção, que o “lobby” virou atividade legal, com regulamento e tudo.

Sobretudo, há que ficar rouco de tanto repetir: moralidade é menos uma questão de pessoas do que de instituições. Depende mais de instituições políticas virtuosas do que de políticos virtuosos. Trata-se, aqui, de aplicar aquele teorema da Cibernética, segundo o qual, mediante certos procedimentos (p.ex., a duplicação de controles), é possível com peças falíveis construir um mecanismo infalível. Os políticos (leia-se Cícero) estão e estarão onde sempre estiveram: divididos em variados graus entre os cuidados de sua casa e os de sua república. As instituições é que precisam moralizar-se, higienizar-se.

O novo governo deverá, assim, partir de pressupostos como esses ao abrir a frente da moralidade. O que sugere algumas providências óbvias a serem submetidas à aprovação do Congresso. Só para exemplificar:

-propor um código de governança corporativa para as empresas estatais. E não será preciso inventar nada, é ver a experiência nacional (de algumas estatais) e internacional e adaptar. De fato, no mundo inteiro as grandes empresas, públicas e privadas, se regem por códigos semelhantes. As corporações privadas não deixam de ser públicas (umas quase repúblicas) num específico sentido: não têm dono, sócio controlador. Qualquer delas é uma comunidade numerosa de acionistas, nenhum dos quais possui mais do que uma fração muito modesta do capital acionário. Organizam-se em “partidos” esses acionistas-eleitores e disputam o comando da empresa, e, em caso de vitória, contratam executivos que agem dentro do Código e permanecem enquanto derem bons resultados econômico-financeiros.

-no terreno da moralidade política stricto sensu, propor alterar a lei partidária, de sorte a reduzir o número de legendas a um máximo de cinco ou seis, número capaz de cobrir o espectro ideológico. Um quadro partidário assim desenhado melhorará a qualidade de algo imprescindível à governabilidade no Brasil (independentemente de o regime ser ou não presidencialista): a negociação Executivo-Congresso para a formação de uma coalisão de governo. O resultado será uma redução do custo-trabalho das negociações e isso não só agilizará as ações como servirá de inibidor de mensalões e petrolões...

-há, ainda, que propor modificações na lei eleitoral, de forma a reduzir o custo de campanha (logo, a necessidade de financiamento). Algo já se encontra encaminhado, como o encurtamento do prazo de propaganda, certas limitações na formatação dos programas de rádio e TV. Nas eleições para vereador e deputado, há que fazer uma experiência com alguma modalidade de voto distrital.

O fundamental é que caia o custo para os candidatos. E falo em experiência porque acho salutar na criação institucional uma espécie de dúvida metódica: não aderir a priori a uma ideia por melhor que pareça, por mais bem intencionada que seja. Experimentar. Se der um bom resultado, ótimo. Se não, não serve. É a transposição do princípio bíblico de julgar a árvore pelos frutos.

De resto, não se pode esquecer o efeito moralizador que teria uma retomada do programa de privatizações dos anos 90. É que, além de outras virtudes, a privatização privatiza a corrupção...

E a liderança escalada constitucionalmente para o novo governo? Estará ela à altura da situação? Para ser sincero, é a menor das minhas preocupações. Basta que não tenha prontuário... Falei de Edmund Burke, lembro agora Thomas Paine, autor do Common Sense, aquele panfleto que ajudou na luta pela independência americana. Ali, disse ele, e ficou, que os tempos difíceis têm o dom de revelar os homens. O momento põe a tarefa, como um problema diante de um enxadrista. Grandes serão aqueles que souberem responder. Noutras palavras, não há liderança prévia a uma crise como a que vivemos. E uma coisa é certa: o país sobreviverá a ela. Que a enfrente com coragem, sabedoria, senso de grandeza e sem sair um milímetro do Estado de Direito. Passada a tormenta, conheceremos os novos heróis.

Poço da Panela (Recife), Carnaval de 2016

Machado de Assis no Amazon